domingo, 7 de março de 2021

Se a revolução fosse hoje.


Démerson Dias


Caixa de Pandora 
 © 2015 - 2021 La-Chapeliere-Folle
    O estado em que se encontra a oposição ao bolsonarismo reflete, dentre tantas, uma constatação. Se a revolução fosse hoje, nenhuma esquerda saberia o que fazer com o país.
     Em certo sentido isso não é algo ruim, parte do que conhecemos, ou dos que se proclamam como esquerda está intelectualmente mais próxima de Demócrito do que de Marx.
     A esquerda se contenta em denunciar porque é menos arriscado agir pela negativa do que buscar meios e formas de fundar uma nova ordem. Se levar em conta o caráter pacifista de parte relevante da esquerda, um desafio imediato, depois de inventarmos um modo de sabotar e sequestrar o aparato repressor da burguesia, é a necessidade de ter uma solução para lidar com os devotos mais beligerantes da ditadura burguesa. Como o paredão deixou de ser opção automática, precisamos pautar as alternativas.
     Esse é um texto propositivo, ainda assim essa consideração introdutória é uma ressalva pelo meu ceticismo quanto a conseguirmos evoluir para uma solução política, no prazo necessário pela urgência do genocídio. O mais provável, é assistirmos, conformados, ainda que indignados, o aprofundamento do projeto ditatorial bolsonarista.
     Indo às proposições, como ocorre em processos de mudança de regime, o país seria governado por um colegiado de ativistas que reúnam condições de pôr em andamento um ajuste institucional emergencial. Preliminarmente, seu papel é garantir que instituições e organismos sigam funcionando até que seja superada a pandemia. A partir de então, esse colegiado se ocuparia de viabilizar o estabelecimento de uma prática política que garanta a inclusão de todos os setores da sociedade de forma digna, soberana e democrática.
     Para começar a construir uma agenda preliminar, seguem algumas considerações.
     Algo entre 40% e  60% da população carcerária estão presos de forma ilegal. Como a burguesia os trata pior do que gado, e nem dá pra comparar com o tratamento aos pets, nada mais justo do que soltar todos que estejam em prisão irregular, para que sua “vaga” seja ocupada por um burguês “radical”.
     Ainda assim, não seríamos tão inclemente quanto eles. Os estupidamente ricos, tipo lista da forbes, teriam que aguardar na prisão até que tivéssemos condição de analisar a situação caso a caso, na ordem inversa à da riqueza. Mas mesmo para esses criminosos, em médio prazo, seria facultada a solicitação de asilo político em algum país que os aceite. Para essa solicitação ser acolhida, preliminarmente seriam ressarcidos os danos materiais, econômicos e históricos devidos ao país. Além de uma estimativa desses danos, seriam automaticamente incluídos nesse cálculo os valores reivindicados por demandas trabalhistas ainda não julgadas.  Ao optar por essa forma de auto-exílio, o criminoso também abrirá mão, em favor da sociedade, dos bens e recursos existentes no país. Temos convicção que a meritocracia os levará a recompor suas fortunas em qualquer país do planeta.
     Mas todo proprietário grande, médio ou pequeno que não tenha sido considerado canalha, e se dispuser a colaborar com a nova ordem, manteria bens pessoais primários. Toda e qualquer empresa acima de 100 funcionários será administrada por um colegiado eleito em cada unidade, entre funcionários.
     Nos casos de conglomerados nacionais, ou regionais, será indicado um, ou mais co-gestores incumbidos de equalizar e compatibilizar os recursos, conforme custo e valor social.
     O banco central passa a funcionar como agência consultiva. Todas as agências bancárias passam para  o controle de seus funcionários, até que o novo governo estabeleça as diretrizes de extinção da gestão privada da economia. Eventualmente, clientes podem constituir comissões de co-gestão.
     A intervenção nos bancos é primordial. De um lado é preciso garantir que todas as pessoas que tenham recursos idôneos em estabelecimentos financeiros tenham certeza que, mesmo com percalços, todas as economias seriam preservadas, sem confisco, porém, com liberação condizente com as necessidades primárias do país, preservado o poder aquisitivo mínimo, ou relativo, para custear as despesas de cada unidade familiar.
     Mas a razão principal é que hoje, toda riqueza do país precisa ser voltada para as urgências pessoais e sociais. A lei de responsabilidade fiscal e o superavit primário serão  expurgados, revertidos e extintos. A criminalização de seus patrocinadores e mantenedores pode esperar tempos menos trágicos.
     A primeira medida emergencial deve estabelecer o aparelhamento, disponibilização, ou produção de insumos e ressarcimento dos profissionais da saúde e correlatos que estão na linha de frente contra a pandemia. Entidades internacionais, ou países que se dispuserem a oferecer mão de obra de auxílio e suporte nas áreas médicas e sanitárias serão bem-vindos (contratações e convênios econômicos serão estudados caso a caso).
     O país deve estabelecer um gabinete de crise para enfrentamento da pandemia com caráter técnico, sanitário e científico, sem ingerência ideológica, e com supervisão e assessoramento da OMS. Secretários de saúde e seu staff, bem como outros agentes políticos engajados desde as primeiras horas no combate à pandemia serão preservados nas equipes de gestão da crise.
     Bancos e setores econômicos, bem como setores acadêmicos correlatos comporão fórum técnico para analisar as variáveis e necessidades econômicas para a implementação do confinamento e transição até o fim da pandemia, com ênfase na prevenção ao desabastecimento de todas as ordens. Estarão subordinados, em sentido amplo, ao governo central e a serviço do gabinete de crise.
    A organização monetária será preservada, mas conviverá com um processo transitório de redefinição das hierarquias monetárias. A prioridade é alcançar um equilíbrio monetário orientado pela necessidade de garantir às comunidades, famílias e indivíduos, condições de sobrevivência com dignidade, e às atividades produtivas condizentes com essas necessidades.
     Estados e municípios irão patrocinar a acomodação e subsistência das populações de rua, em seus diversos segmentos.     
     Para os grupos comunitários, como indígenas, quilombolas e assentamentos, serão destacadas comissões de acompanhamento local para garantir que todas as necessidades humanas, sociais e culturais sejam preservadas e protegidas em caráter emergencial. Todo território reivindicado por essas populações será interditado provisoriamente e disponibilizado para seu uso, até que haja condição de se estabelecer novos marcos territoriais, levando em conta necessidades ambientais, culturais e de subsistência. Ressalte-se que aspectos atávicos e religiosos são instâncias culturais primordiais dessas comunidades.
     Além das reformas agrária e urbana serão estabelecidos marcos para reorganização e planejamento urbano e territorial, levando em conta a reconstituição de biomas, preservação e recuperação de recursos e paisagens naturais. 
     Todos os profissionais urbanitários (limpeza urbana, transporte, infra-estrutura etc) seriam incorporados aos quadros dos estados e municípios e, em seu âmbito, vão elaborar e implementar (com suporte operacional das forças policiais, se necessário) planos de funcionamento, logística de circulação de pessoas nas cidades. O plano de contingência deve considerar um confinamento absoluto e emergencial de 25 dias, com circulação restrita e autorizada). 
     Educadores de todas as áreas, especialistas em linguagem e semiótica, e profissionais de mercadismo (marqueting) se organizarão em comissões, conforme distritos educacionais, para implementar uma solução emergencial para o ensino à distância que não massacre professores, nem alunos.
     Membros dos poderes que não fossem presos, passarão a atuar em duas comissões. Autoridades judiciárias e do ministério público seriam alocados num operativo para revisar situações emergenciais da gestão e emergências públicas e oferecerão ao governo central, alternativas de encaminhamento para essas questões.
     Os parlamentos em todos os níveis teriam as prerrogativas legislativas suspensas e se tornariam procuradores especiais da união, estados e municípios, conforme as comissões e bancadas. Algumas indicações terão caráter executivo, a ser estabelecido pelo governo central, a partir dos antecedentes de execução orçamentária.
     Governadores e prefeitos que não se dispusessem a colaborar não seriam presos, mas substituídos por uma junta provisória de funcionários públicos de carreira escolhidos no âmbito próprio. Em caso de necessidade, essa junta provisória pode ser indicada pelo governo central, ou constituída por um facilitador nomeado.
     Esse texto é inexequível e precário. Só não é brincadeira porque a necessidade de uma intervenção política abrangente é a única possibilidade do país encontrar o rumo da sanidade nas áreas humana, institucional, política e econômica.
     Cedo, ou antes, Bolsonaro será vitorioso nas sucessivas tentativas de romper com o ordenamento jurídico vigente. Vale-se da incapacidade das instituições e agentes políticos de perceberem quando uma medida de governo fere de morte os princípios e valores tidos como democráticos. O conluio governamental atual pode ser constituído de loucos, mas não tem nenhum bobo ali.
     Quando as instituições públicas são incapazes de cuidar da segurança sanitária das pessoas em meio a uma calamidade escandalosa e fatal, é inequívoco que existe desvio explícito de finalidade das funções e prerrogativas do estado.  Mas o país segue encarando como normalidade o sadismo da primeira “famiglia” e agregados.
     Enquanto a providência não vem, a gente, pelo menos, mostra que nossa indignação não é inconsequente. Todas as velas são válidas para romper o obscurantismo.

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