domingo, 28 de fevereiro de 2021

A imunidade de rebanho e o comportamento de manada



A imunidade de rebanho e o comportamento de manada

Démerson Dias


Cemitério de Manaus / MICHAEL DANTAS / AFP

Tentando revisar o texto, percebi que me exaltei. Devo ter cometido arroubos e erros. Porém, silenciar diante do fascismo só nos lega o cemitério como destino.

Somos tomados por um misto de raiva e desespero quando lemos as notícias na mídia comercial burguesa.

A maior parte do tempo e do espaço, eles dedicam, enaltecem, endossam e comemoram, pois, finalmente, estão emplacando seu projeto de demolição nacional (a privatização venal do banco central era desejada há 30 anos). Entre um rojão de comemoração e outro, deixam escapar a situação do país real. Não é apenas o sistema de saúde que está em colapso, como as covas nos cemitérios seguirão sendo insuficientes. A mídia denuncia o colapso, mas incentiva tudo mais que o governo faz para destruir os serviços públicos, inclusive o SUS.

Comentava com um amigo que nem sequer nos lembramos mais da devoção com que uns e outros reivindicavam à imunidade de rebanho como salvação, assim como cloroquina, ivermectina e outras coisas grotescas. Claro que a maioria dos tolos que dizia isso, nem faziam ideia do que significava.

Desde 2013, o que vivemos foi o efeito de comportamento de manada dos idiotas, mentecaptos e nulidades que, reconhecendo-se, partiram em insana carreira tentando destruir e devorar tudo o que estranharam em décadas de silêncio vergonhoso.

Imagino que tenha sido um estorvo e desconforto para tantos que, por anos seguidos, não tinham caráter, nem coragem para defender suas deformidades morais. É a coragem dos covardes que só são expostas porque a gritaria da turba lhes confere um certo  anonimato.

Sim, estou inconformado porque preciso reconhecer que existe pior que a moral burguesa liberal, é a imoralidade fascista.
Estavam nos porões, enquanto as esquerdas e setores progressistas conseguiram ocupar os espaços sociais e públicos. Em 2013, alguma coisa aconteceu conosco, e parece que hoje, nós é que nos metemos em cantos escuros e envergonhados. Eles são poucos, mas convencem alguns pelo cansaço quando expressam ódios. E ódio é sentimento fácil. Assim como destruir é incomparavelmente mais simples do que tentar construir, ou mudar o que está ruim.

Estamos vivendo a primazia do lúmpen, porque parte de nós acreditou numa democracia conciliadora, enquanto permitiam que a burguesia corroesse valores essenciais à vida, em troca de sacrifícios ao deus-mercado.

Sobraram tantas mazelas que é impossível derrotar essa turba sem afirmar que não existe conciliação possível.
E o argumento deles são os berros e bizarrices aos berros que vociferam contra qualquer um que tente restaurar a sanidade social. Para eles, a forma é o conteúdo.

Não dá pra dizer apenas que eles gritam demais. Se eles estão falando demais, nós estamos fazendo de menos. A virtude (e verdade) revolucionária é a prática. Mais do  que nunca, não podemos nos calar. É preciso entender que mais dia, menos dia, eles viriam a campo espalhando suas trevas.

Não existe um jeito suave ou delicado de vencermos o que ocorre no país hoje. E o melhor suporte que podemos dar à linha de frente contra a covid é mandar o obscurantismo de volta às trevas. É fundamental sairmos dos armários em que nos metemos.

E reconheço que, para alguns que acreditavam numa esquerda virtuosa e incorruptível, possam ter caído em desânimo. Assim como aqueles que caíram junto com o Muro de Berlim e estão nos escombros até hoje. Então, sobra para a esquerda que não perdeu a lucidez acreditando em messias e messianismos de um lado, ou de outro, vir a campo.

A esquerda que não teme, nem se envergonha em dizer seu próprio nome, lutar a própria luta. Afinal, sem a participação ativa do campo socialista, o fascismo não teria sido derrotado pelos capitalistas que o tornaram possível.

Essa manada não será imunizada, a solução está entre o abate e levá-la de volta ao curral de onde não deveria ter saído, e jogar a chave fora. A parcela da sociedade que foi contaminada pelos zumbis do facismo não é majoritária. Como se diz, somos 70%. Mas precisamos ser mais que um número. Precisamos ser ação, intervenção e resistência explícitas. Não basta esclarecermos, porque estamos falando a convertidos de parte a parte.

Eles não se calarão. Como vimos com o protótipo de facistinha que foi policial infrator (como seu capitão) e virou deputado defendendo os assassinos de Marielle Franco, assim que acossados, se encolhem.

A intolerância não será derrotada com pacifismo, aceitação ou convicção democrática. Eles não são democratas, eles não acreditam em civilização alguma. Eles são os testemunhos da barbárie que preferem o caos do obscurantismo à luz da ciência, às belezas, e também transgressões das artes, à finalidade dos serviços públicos e comunitários que querem destruir. Ou entendemos que precisamos atropelar de forma inclemente essa onda, ou seremos nós as vítimas. Aliás, já estamos sendo. E 250 mil já pagaram com a vida por isso.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

A boa e as más notícias

 

Imagem de Rio 2096: Uma História de Amor e
Fúria. Animação de  Luiz Bolognesi.

A boa e as más notícias
Démerson Dias

     Em meio aos acontecimentos nos últimos meses, é possível notar um enfraquecimento pontual na base do bolsonarismo. As tendências protofascistas vão perdendo espaço, a derrota de Trump e o vergonhoso, mas necessário recuo nas relações com a China, a infinidade de tropeços e desencontros no discurso obscurantista e a perda, por incompetência, de qualquer protagonismo em relação a condução das políticas contra pandemia, minaram a "estratégia" do núcleo bolsonarista.

     Com as divisões internas provocadas nas fileiras da gangue, setores da direita, e também do campo evangélico sem relações estreitas com o crime organizado, foram tomando distância do bolsonarismo, que padece de uma virulenta, mas previsível incapacidade de administrar relações para além do próprio umbigo.

     E o umbigo do bolsonarismo são as milícias. Esse segmento se fortaleceu, mesmo adotando um discurso sub-reptício, é provável que esteja buscando, de forma consistente, uma articulação entre facções de diversas regiões no país, que chega a 2021 com agrupamentos consolidados em cerca de 15 Estados do país (Milícias e Poder, Parte 2: Alves e Soares Refletem Sobre as Múltiplas Faces e Fases das Milícias no Rio - RioOnWatch).

     Esse movimento sustenta, também, o compromisso com setores neopentecostais, que permanecem fiéis, e/ou mancomunados, com as milícias.

     Esse bloco, por si só, tende a alcançar projeção e expressão política, ainda inusitada na história do país. E também será a principal herança e espaço de intervenção do bolsonarismo, que pode até sair da alçada de controle da família bolsonaro, diante de sua peculiar incompetência para construir qualquer coisa consistente. Mas seus agregados crescem à sombra. Encobertos, principalmente, pela incontinência verbal e intelectual do núcleo bolsonarista. 

     Um segmento não deve ser subestimado. Está presente nas estruturas de estado, dos três poderes, além dos setores policiais, e dispõem de recursos financeiros, o quê, cedo ou tarde, os levará aos espaços decisórios centrais da burguesia brasileira. Se é que não estou defasado.

     Se, de um lado, os empreendimentos governamentais do bolsonarismo se enfraquecem, como por exemplo a ampliação da tutela do centrão, seu poder nessas áreas "subterrâneas" se aprofunda. Esse fenômeno pode inaugurar uma nova fase do patrimonialismo brasileiro.

     O sentido de urgência em relação a esse cenário parece escapar quase que completamente aos setores de resistência social, e aos agentes políticos principais da esquerda. Desde seu primeiro dia de governo, o bolsonarismo tem sido muito eficaz, como projeto de demolição de direitos e garantias sociais estruturantes. Cada pequeno passo dado nessa direção desconstrói décadas de ação política e de conquistas sociais. 

     Se a constituição brasileira de 1988 já havia se tornado um arremedo fantasmagórico, estamos numa fase em que decisivamente o caráter formal de estado social e estado democrático, vão deixando de constituir a matriz política do país. 

     Os exemplos mais flagrantes e visíveis envolvem as nações indígenas e questões ambientais. Em certa medida o bolsonarismo representa, praticamente, uma nova (e final) onda de genocídio da população indígena. Seja pelo descaso em relação à pandemia, seja pela negligência em relação a ocupação dos territórios, e ainda dando condições para consolidação de um projeto extermínio cultural.

     Por essa perspectiva, os ensaios que se propõem a transformar a batalha contra a reeleição do bolsonarismo em 2022, no centro de uma estratégia de resistência no país, basicamente, estarão contribuindo para encobrir a guerra ideológica de amplo espectro, que está em curso no país, de forma explícita, desde 2013.

     Os lutadores urbanos e classes remediadas não possuem real alternativa de sobrevivência se não articularem uma composição estrita de forças com todos os setores marginalizados pelo "status quo". Uma unidade que inclua cidade e campo, povos originarios, ambientalistas progressistas, assentamentos e quilombolas, organizações suburbanas e favelas. 

     Pelas características dos adversários eu não descartaria, nem mesmo, segmentos paramilitares antagônicos às forças da ordem. O Brasil está em guerra, e essa guerra está na iminência de subir de patamar. Os que são vítimas apenas por efeito colateral não tem direito de fechar os olhos para as chacinas, fuzilamentos, emboscadas que estão vitimando lutadores sociais, transeuntes, e a população pobre, em especial a negra.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Podres Poderes


Podres Poderes
Démerson Dias

A eleição do Artur Lira para presidência da Câmara elucida do que é feito o conglomerado político chamado Legislativo e os reais interesses dos donos do poder no Brasil.

Lamento divergir de camaradas que ocupam e/ou valorizam a disputa institucional no parlamento. E, não o faço com a hipocrisia dos que só denunciam a "farsa democrática" quando não são capazes de granjear o escrutínio "popular".

A suposta democracia burguesa não é uma democracia e a burguesia brasileira esta comprometida até o rabo com o bozofascismo, seu "governo", o genocídio, e até mesmo com o pão com leite condensado.

O tripé institucional do Estado brasileiro caracteriza uma ditadura burguesa porque, nada acontece, em suas entranhas, que seja oposto ao conjunto dos interesses da classe burguesa.

Tal caracterização é o inverso da que acreditam os validadores da democracia burguesa, que a justificam porque, esporadicamente, pingam migalhas do banquete burguês. Como cada migalha custa empenho e esforço enorme dos representantes das classes excluídas, a farsa se auto justifica, já que, setores serviçais a segmentos distintos da burguesia, oferecem gamas distintas de resistência às demandas das classes assujeitadas.

A eleição de Artur Lira expressa o caráter, e as prioridades, do conjunto da burguesia brasileira. Deixaram o fascistinha brincar de trumpismo porque, parcela concorda, e o conjunto, é lento e burro, para interpretar as movimentações da burguesia internacional. 

Essa burguesia nacional é imediatista, reacionária, parasitária e, fundamentalmente, predisposta à vassalagem.

Ainda assim, parece que sempre existiram capatazes, dispostos a sujar as mãos a serviço dos déspotas.

Não consegui decifrar se a surpresa que Rodrigo Maia acusou, muito levemente, assim que abriu o painel de resultados, significa que achou Arthur Lira teve muitos votos, ou se Baleia Rossi teve poucos. Como ex-articulador do centrão, é bem provável que já conhecesse seu sucessor. 

Bolsonaro não tem capacidade intelectual para conduzir as negociações que garantiram o apoio decisivo do centrão. A mídia comercial, efetivo braço ideológico da burguesia na sociedade, precisa encobrir que o centrão é basicamente ideológico e burgues (Revista FAPESP - Edição 75 maio de 2002). Surgem as insinuações de votos comprados e pagos com emendas orçamentárias. Mas não é disso que se trata nessa conjuntura específica.

Arthur Lira e Baleia Rossi, qualquer dos dois, não são Inocêncio Oliveira, Severino Cavalcanti ou Eduardo Cunha. O centrão é a reconstituição do bloco gestor da ditadura.

Para o parlamentar que se vende, a grana é a recompensa. Ocorre que para que essa grana tenha comprado esses votos e não aqueles, dependeu de uma decisão ideológica ponderada a partir da reflexão sobre quais alternativas atendem melhor ao interesse do campo reacionário.

A corrupção é, praticamente, o álibi do centrão, para consagrar sua opção ideológica, sem que isso fique tão escancarado. Só por isso a mídia comercial tem a liberdade de falar contra seus próprios membros, já que o que denuncia é uma categoria que não se confunde como os protagonistas que a compõem.

Se ainda não perceberam, os alentadores da hipótese de impeachment de bolsonaro, voltam à estaca zero em suas ambições. Sendo essa a conclusão mais elementar. A inépcia administrativa do bolsonarismo é território fértil para as malandragens mais corriqueiras, ou mais criativas, do legislativo federal.

As reformas estruturantes, que não são de governos, mas da classe que comanda o poder, terão maior desenvoltura, não apenas para tramitarem, mas para passarem por crivo ideológico mais fino. O que é definitivamente impossível no ambiente de debate franco, que vinha se delineando, caso Baleia Rossi fosse vitorioso.

Qualquer democracia, mesmo a mais vulgar, faz muito mal para os negócios.

O que devemos assistir, para infelicidade, inclusive, da oposição a bolsonaro, é que o projeto de poder ao qual ele serve, terá maior desenvoltura para fazer recuar as posições atabalhoadas, vomitadas pelo presidente e anexos, e que perdem qualquer razão de ser com a derrota do trumpismo.

E não há espaço para comemorar, que seus maiores aliados internacionais, Trump e Bannon, estejam saindo de cena. Essa é a mais corriqueira das acomodações que a ditadura burguesa produz, e que, dentre suas virtudes, consegue acalmar as resistências otimistas.

Bolsonaro não será salvo pela eleição de Arthur Lira. E esse, não está fadado a cumprir papel político de peso. O que selará,  de fato, o destino de ambos, vai depender, em parte, das enrascadas que cometerem, ou se livrarem, do grau de otimismo e condescendência das oposições, formais e populares e, enquanto não forem destituídos do poder, da capacidade da burguesia de manter misancene que faz uma maioria enxergar democracia, onde subjaz uma ditadura, cujo feito mais prosaico, é comandar a maior guerra civil em curso no planeta.

O Brasil é o único país no mundo em que um genocídio é encarado com reticência, ou parcimônia, o que dá no mesmo, inclusive pelos porta-vozes, representantes e lideranças das vítimas.