sexta-feira, 19 de março de 2021

Mais do mesmo somos nós

Démerson Dias


Aterradora profecia de Miguel Pau

     Existe um paradoxo entre discurso e prática na esquerda brasileira.

     Afirmamos ter derrotado a ditadura de 1964, supostamente, desde março de 1985.

     Se isso ocorreu, de fato, porque os esquadrões da morte seguiram atuando, converteram-se em milícias, elegeram um presidente da república e estão conduzindo o maior extermínio da história do território brasileiro desde a chacina das civilizações indígenas?

     A ditadura brasileira ressignificou miseravelmente nossa definição de democracia, chegou ao poder pelas urnas, rebaixou a patente de comando de general para capitão, e trocou Golbery e Geisel pelos seus cães de guarda mais depravados. Aqueles do tipo tão incompetentes que fazem explodir bombas no próprio colo no Rio Centro, ou brincam de espoleta na Adutora  do Guandu. No mais, só são “bicho feroz” com revólver na mão.

     O paradoxo entre nossa crença, em discursos e bandeiras, e a prática emancipatória, da qual afirmamos ser caudatários, se explicita pelas vertentes mais expressivas das esquerdas que se dividem em dois segmentos: um deles acredita que ainda existe uma constituição no país e que temos uma democracia em vigor. Como se fosse real, e saudável, uma democracia que admite a eleição de um fascista.

     Favor, não confundir com Trump, um especulador capitalista midiático, inspirando os fascistas. Trump é um capitalista boçal, seu arremedo brasileiro é quase igual, é fascista, só não é capitalista.

     O outro setor, embora se inspire e reivindique os heróis históricos que morreram por transformações no país, virou pacifista. Esse setor tem algumas ramificações, mas parece acreditar que quanto mais pessoas gritarem, o mais alto possível, "fora genocida", seremos capazes de instaurar um modelo radicalmente novo de mediação política, social e econômica no país.

     O que une esses setores não é a perspectiva do porvir, mas o fato de estarem nessa mesma posição nos últimos 36 anos.

     Como alguma autocrítica é recomendável, eu devo fazer parte de uma esquerda pueril e alienígena, que não entende como as coisas funcionam, e não acredita nas doutrinas.

     Alguns indignados com essa caracterização poderão aventar as milhares de greves realizadas, ou mesmo vitoriosas, nesse período. Todas foram guerrilhas pacíficas, consentidas, com efeitos fugazes, pontuais e que impulsionaram o aperfeiçoamento dos instrumentos de opressão, exploração e controle. Os ganhos dos capitalistas se mantêm e  aumentam, qual categoria, greve ou movimento, no mínimo, preservou suas conquistas? Foram 36 anos de fátuas vitórias e acossados, cada vez mais, ao abismo (400 mil já despencaram, só de Covid).

     Todos os setores da classe que vive do trabalho estão regredindo a condições sub democráticas e em praticamente todos os setores. Eu não quis dizer subumanas, desde a colonização, o país nunca deixou de ter trabalho e vidas em condições subumanas, apenas a percepção disso é refratada de tempos em tempos.

     Nenhuma de nossas conquistas perduraram. Aprovamos leis que não revertem sequer as situações pretendidas, mas o projeto de demolição do esforço constituinte de 88, praticamente, concluiu seus trabalhos com êxito aterrador. Com a auxílio luxuoso de governos de esquerda, diga-se.

     A situação sócio-institucional atual está aquém de 1946 ou mesmo de 1934. A reversão da lei Áurea é, basicamente, questão de tolerância estatística.

     Como o SUS parece ser a última pilastra que nos afasta da barbárie absoluta (ou alguém acredita existe realmente algum auxílio emergencial?), a pandemia talvez tenha surgido como um atalho conveniente para uma solução final, destinada a destroçar a ordem social que consideramos civilizada. O Brasil está por um triz, de voltar a condições sócio metabólicas medievais, com drones exibindo tudo ao vivo e a cores. Num "show de realidade" que promete, para breve, em primeira mão, imagens dos vermes trespassando cadáveres nas ruas.

     Se o capitalismo precisava de um laboratório para testar as distopias que induz, ganhou o Brasil como presente. E a isso damos o nome de democracia?

     Eu aqui, com minhas oscilações de humor, fico tentando decifrar quantas milhares de mortes serão necessárias para as esquerdas entenderem o que significa barbárie? E quantas mais até que decidam fazer algo a respeito (para transformar, não para entender, ou denunciar - a quem, mesmo?).

     O governo neofascista produz reciclagens com velocidade assombrosa. Cada declaração, ou gesto, não dialoga com a realidade, mas com os imaginários dos aderentes e das oposições. Acomoda, ou assimila um desconforto, um constrangimento. O único desgaste real do Bolsonarismo, se presta apenas a uma reciclagem burguesa. Jamais a qualquer átimo de evolução democrática.

     Por enquanto, vão vencendo no país, os gatilhos de ajustes infinitesimais da contra-revolução preventiva. Daqui a pouco, Bolsonaro se converte no bode na sala, a demolição que patrocinou, permanecerá incólume, enquanto o país, “como nunca na história" poderá respirar, aliviado.

     E as esquerdas seguem em sua missão revolucionária de assistir a tudo, bestializadas.


quinta-feira, 11 de março de 2021

Fachin e o mal menor.

Démerson Dias


Vitor Teixeira

     Edson Fachin tentou salvar Moro e a LavaJato oferecendo, em troca, a inocência de Lula. Se, por um momento, pareceu “esmola demais”, ele apenas optou pelo mal menor. Tentou sabotar o julgamento de suspeição de Moro e o exame da extensão das maracutaias da lava jato em rede nacional. 

     A aposta de Fachin foi malandra, mas ingênua. Tentou bancar a tese de que o único erro de Moro foi a sede de fazer justiça a qualquer custo e chamar para si matérias que não eram de sua competência. MENTIRA!

     Tanto Moro, quanto seus colegas e os superiores no TRF4, quanto o STJ, quanto o STF sabiam que Moro estava exorbitando. E ninguém precisava de gravações para constatar. O “timing” indecentemente sincronizado entre acusação e juízo era vergonhosamente explícito. Aliás, uma das primeiras alegações da defesa foi o foro, Moro rechaçou e nenhum dos santos de agora se comoveu.

     Ao contrário, ENDOSSARAM a sanha persecutória. Sendo os episódios mais agravantes o impedimento ilegal de Gilmar Mendes para que Lula se tornasse ministro e o atentado constitucional sobre a prisão em secunda instância. Todos foram cúmplices. O mais decente seria que, depois de limparem a caca, entregassem seus cargos.

     E ainda existem as denúncias do advogado Tacla Duran que lançam denuncia situação de corrupção explícita sobre a Lava jato. Qualquer juiz que tivesse um mínimo de vergonha na cara teria tido interesse em apurar e esclarecer, como isso não foi feito, a versão que, por enquanto, procede é a do advogado: a Lavajato era um quartel de crime organizado e corrupção.

     Com os vazamentos, todos foram pegos com as calças nas mãos. Aqueles que ainda tinham uma réstia de caráter, ou senso de autopreservação, pularam da cadeira dizendo: “eu não sabia”, “gravíssimo” etc.

     Cabe uma ressalva a Ricardo Lewandowski. Desde o início e sem tergiversação, foi o único que se indignou com o ativismo reacionário.

     Como parece que não ficou claro, quem, a qualquer tempo apoiou, defendeu ou ignorou o lavajatismo, deu cobertura também às ações das milícias bolsonáricas contra os “pretos, pobres e brancos pobres como pretos”. O que ocorreu com Lula é o cotidiano das populações excluídas.

     A rigor, Lula teve uma sorte que não é pra todos. Se não fosse figura pública, e se não vivesse acima de cinco salários mínimos, teria sido torturado e morto. A LavaJato foi o descalabro do sistema sistema penal brasileiro subindo para o andar de cima. Não por acaso, a vítima era um “nordestino, aleijado pelo trabalho e semi-analfabeto”.  E Lula está errado quando diz que eles erraram. NÃO FOI ERRO!!!! Foi ação premeditada, intencional e perseguida com afinco (e desleixo, convenhamos).

     O desfecho não seria diferente de Sandro Barbosa do Nascimento, que sobreviveu à ação policial criminosa na Candelária, mas não a uma viagem de camburão. Seus assassinos, que foram inocentados, evitaram que fosse linchado para terem o privilégio apenas para si. (Em tempo, se você confunde justiça com vingança, por favor, me poupe pelos próximos 33 anos, até lá os saprófagos já devem ter feito sua parte).

     Moro e seus comparsas são apenas a versão MBA do banditismo nacional. Não importa se Lula cedeu à corrupção. Não existe mediação social livre da corrupção no capitalismo. Quem se acha incorruptível sob o capitalismo apenas não pensou a respeito o suficiente.

     O atual inquilino do Planalto já declarou que é sonegador contumaz, não é acidente que todos seus filhos transitem entre a civilidade idiota e a criminalidade convicta.

     Não espero que Lula queira decifrar o contexto inteiro. Se ele se empenhar em desconstruir seus acusadores e aderentes terá mais um tento histórico para reivindicar. 

     O sistema penal brasileiro é um atentado à humanidade. Todo sistema penal é um sintoma autoritário, assim como toda prisão é política.

     Magistrados, políticos, imprensa burguesa, todos alegam fazerem escolhas pelo mal menor. Pela sua perspectiva mal menor não é algo que vá beneficiar o país, é apenas o que vai parecer uma coisa boa, mas que vai permitir abocanhar ganhos ou finalidades vergonhosas.

     Que bom que a liberdade política de Lula foi restaurada. Pelas minhas contas é preciso liberar somente uns 386 mil na mesma situação em que estava Lula. Sem mencionar, é claro, as outras injustiças que o “mal menor” patrocina país adentro.

domingo, 7 de março de 2021

Se a revolução fosse hoje.


Démerson Dias


Caixa de Pandora 
 © 2015 - 2021 La-Chapeliere-Folle
    O estado em que se encontra a oposição ao bolsonarismo reflete, dentre tantas, uma constatação. Se a revolução fosse hoje, nenhuma esquerda saberia o que fazer com o país.
     Em certo sentido isso não é algo ruim, parte do que conhecemos, ou dos que se proclamam como esquerda está intelectualmente mais próxima de Demócrito do que de Marx.
     A esquerda se contenta em denunciar porque é menos arriscado agir pela negativa do que buscar meios e formas de fundar uma nova ordem. Se levar em conta o caráter pacifista de parte relevante da esquerda, um desafio imediato, depois de inventarmos um modo de sabotar e sequestrar o aparato repressor da burguesia, é a necessidade de ter uma solução para lidar com os devotos mais beligerantes da ditadura burguesa. Como o paredão deixou de ser opção automática, precisamos pautar as alternativas.
     Esse é um texto propositivo, ainda assim essa consideração introdutória é uma ressalva pelo meu ceticismo quanto a conseguirmos evoluir para uma solução política, no prazo necessário pela urgência do genocídio. O mais provável, é assistirmos, conformados, ainda que indignados, o aprofundamento do projeto ditatorial bolsonarista.
     Indo às proposições, como ocorre em processos de mudança de regime, o país seria governado por um colegiado de ativistas que reúnam condições de pôr em andamento um ajuste institucional emergencial. Preliminarmente, seu papel é garantir que instituições e organismos sigam funcionando até que seja superada a pandemia. A partir de então, esse colegiado se ocuparia de viabilizar o estabelecimento de uma prática política que garanta a inclusão de todos os setores da sociedade de forma digna, soberana e democrática.
     Para começar a construir uma agenda preliminar, seguem algumas considerações.
     Algo entre 40% e  60% da população carcerária estão presos de forma ilegal. Como a burguesia os trata pior do que gado, e nem dá pra comparar com o tratamento aos pets, nada mais justo do que soltar todos que estejam em prisão irregular, para que sua “vaga” seja ocupada por um burguês “radical”.
     Ainda assim, não seríamos tão inclemente quanto eles. Os estupidamente ricos, tipo lista da forbes, teriam que aguardar na prisão até que tivéssemos condição de analisar a situação caso a caso, na ordem inversa à da riqueza. Mas mesmo para esses criminosos, em médio prazo, seria facultada a solicitação de asilo político em algum país que os aceite. Para essa solicitação ser acolhida, preliminarmente seriam ressarcidos os danos materiais, econômicos e históricos devidos ao país. Além de uma estimativa desses danos, seriam automaticamente incluídos nesse cálculo os valores reivindicados por demandas trabalhistas ainda não julgadas.  Ao optar por essa forma de auto-exílio, o criminoso também abrirá mão, em favor da sociedade, dos bens e recursos existentes no país. Temos convicção que a meritocracia os levará a recompor suas fortunas em qualquer país do planeta.
     Mas todo proprietário grande, médio ou pequeno que não tenha sido considerado canalha, e se dispuser a colaborar com a nova ordem, manteria bens pessoais primários. Toda e qualquer empresa acima de 100 funcionários será administrada por um colegiado eleito em cada unidade, entre funcionários.
     Nos casos de conglomerados nacionais, ou regionais, será indicado um, ou mais co-gestores incumbidos de equalizar e compatibilizar os recursos, conforme custo e valor social.
     O banco central passa a funcionar como agência consultiva. Todas as agências bancárias passam para  o controle de seus funcionários, até que o novo governo estabeleça as diretrizes de extinção da gestão privada da economia. Eventualmente, clientes podem constituir comissões de co-gestão.
     A intervenção nos bancos é primordial. De um lado é preciso garantir que todas as pessoas que tenham recursos idôneos em estabelecimentos financeiros tenham certeza que, mesmo com percalços, todas as economias seriam preservadas, sem confisco, porém, com liberação condizente com as necessidades primárias do país, preservado o poder aquisitivo mínimo, ou relativo, para custear as despesas de cada unidade familiar.
     Mas a razão principal é que hoje, toda riqueza do país precisa ser voltada para as urgências pessoais e sociais. A lei de responsabilidade fiscal e o superavit primário serão  expurgados, revertidos e extintos. A criminalização de seus patrocinadores e mantenedores pode esperar tempos menos trágicos.
     A primeira medida emergencial deve estabelecer o aparelhamento, disponibilização, ou produção de insumos e ressarcimento dos profissionais da saúde e correlatos que estão na linha de frente contra a pandemia. Entidades internacionais, ou países que se dispuserem a oferecer mão de obra de auxílio e suporte nas áreas médicas e sanitárias serão bem-vindos (contratações e convênios econômicos serão estudados caso a caso).
     O país deve estabelecer um gabinete de crise para enfrentamento da pandemia com caráter técnico, sanitário e científico, sem ingerência ideológica, e com supervisão e assessoramento da OMS. Secretários de saúde e seu staff, bem como outros agentes políticos engajados desde as primeiras horas no combate à pandemia serão preservados nas equipes de gestão da crise.
     Bancos e setores econômicos, bem como setores acadêmicos correlatos comporão fórum técnico para analisar as variáveis e necessidades econômicas para a implementação do confinamento e transição até o fim da pandemia, com ênfase na prevenção ao desabastecimento de todas as ordens. Estarão subordinados, em sentido amplo, ao governo central e a serviço do gabinete de crise.
    A organização monetária será preservada, mas conviverá com um processo transitório de redefinição das hierarquias monetárias. A prioridade é alcançar um equilíbrio monetário orientado pela necessidade de garantir às comunidades, famílias e indivíduos, condições de sobrevivência com dignidade, e às atividades produtivas condizentes com essas necessidades.
     Estados e municípios irão patrocinar a acomodação e subsistência das populações de rua, em seus diversos segmentos.     
     Para os grupos comunitários, como indígenas, quilombolas e assentamentos, serão destacadas comissões de acompanhamento local para garantir que todas as necessidades humanas, sociais e culturais sejam preservadas e protegidas em caráter emergencial. Todo território reivindicado por essas populações será interditado provisoriamente e disponibilizado para seu uso, até que haja condição de se estabelecer novos marcos territoriais, levando em conta necessidades ambientais, culturais e de subsistência. Ressalte-se que aspectos atávicos e religiosos são instâncias culturais primordiais dessas comunidades.
     Além das reformas agrária e urbana serão estabelecidos marcos para reorganização e planejamento urbano e territorial, levando em conta a reconstituição de biomas, preservação e recuperação de recursos e paisagens naturais. 
     Todos os profissionais urbanitários (limpeza urbana, transporte, infra-estrutura etc) seriam incorporados aos quadros dos estados e municípios e, em seu âmbito, vão elaborar e implementar (com suporte operacional das forças policiais, se necessário) planos de funcionamento, logística de circulação de pessoas nas cidades. O plano de contingência deve considerar um confinamento absoluto e emergencial de 25 dias, com circulação restrita e autorizada). 
     Educadores de todas as áreas, especialistas em linguagem e semiótica, e profissionais de mercadismo (marqueting) se organizarão em comissões, conforme distritos educacionais, para implementar uma solução emergencial para o ensino à distância que não massacre professores, nem alunos.
     Membros dos poderes que não fossem presos, passarão a atuar em duas comissões. Autoridades judiciárias e do ministério público seriam alocados num operativo para revisar situações emergenciais da gestão e emergências públicas e oferecerão ao governo central, alternativas de encaminhamento para essas questões.
     Os parlamentos em todos os níveis teriam as prerrogativas legislativas suspensas e se tornariam procuradores especiais da união, estados e municípios, conforme as comissões e bancadas. Algumas indicações terão caráter executivo, a ser estabelecido pelo governo central, a partir dos antecedentes de execução orçamentária.
     Governadores e prefeitos que não se dispusessem a colaborar não seriam presos, mas substituídos por uma junta provisória de funcionários públicos de carreira escolhidos no âmbito próprio. Em caso de necessidade, essa junta provisória pode ser indicada pelo governo central, ou constituída por um facilitador nomeado.
     Esse texto é inexequível e precário. Só não é brincadeira porque a necessidade de uma intervenção política abrangente é a única possibilidade do país encontrar o rumo da sanidade nas áreas humana, institucional, política e econômica.
     Cedo, ou antes, Bolsonaro será vitorioso nas sucessivas tentativas de romper com o ordenamento jurídico vigente. Vale-se da incapacidade das instituições e agentes políticos de perceberem quando uma medida de governo fere de morte os princípios e valores tidos como democráticos. O conluio governamental atual pode ser constituído de loucos, mas não tem nenhum bobo ali.
     Quando as instituições públicas são incapazes de cuidar da segurança sanitária das pessoas em meio a uma calamidade escandalosa e fatal, é inequívoco que existe desvio explícito de finalidade das funções e prerrogativas do estado.  Mas o país segue encarando como normalidade o sadismo da primeira “famiglia” e agregados.
     Enquanto a providência não vem, a gente, pelo menos, mostra que nossa indignação não é inconsequente. Todas as velas são válidas para romper o obscurantismo.

sexta-feira, 5 de março de 2021

E se ele for realmente um caso clínico?

 E se ele, realmente, for um caso clínico?

Démerson Dias


Il-vestito-dell_imperatore - L. Lucchese
    A permanência de Jair Bolsonaro na presidência constitui perigo grave e incessante. Ele não é mão por trás da arma, porém, ao utilizar o cargo para obstaculizar, sabotar, constranger e inviabilizar as ações e cuidados em relação à pandemia, agrava de forma lancinante os efeitos e consequências da COVID.

     Para alguns de nós já é escandaloso, no entanto, se algum dos defensores de bolsonaro ainda não sucumbiu ao surto psicótico coletivo, sugiro tentar encarar hipoteticamente as seguintes declarações a seguir:

     Perguntado sobre o fato do país ter superado a China em número de mortos, a principal autoridade responsável por adotar providências para o combate ao coronavírus responde "e daí?". E ainda devolve "quer que eu faça o quê?". Não conformado tenta constranger o país fazendo chacota quando afirma: "Sou Messias, mas não faço milagre". 28/4/20.

     Enquanto o mundo todo se desdobrava na busca de uma vacina contra o coronavírus, o  presidente comemora a suspensão desses estudos. Bolsonaro afirmou que ganhou quando o combate a covid sofreu um revés. Na ocasião, a Anvisa suspendeu a fase de testes em humanos do Instituto Butantan. A declaração do presidente foi "Mais uma que Bolsonaro ganha". Quem está ganhando qualquer coisa quando a pandemia está vencendo? (10/11/20)

     É estarrecedor que Bolsonaro esteja concorrendo consigo mesmo na capacidade de esculhambar o país, a população e as autoridades. Ou é parte de uma guerra de posições contra o combalido estado de direito que está soçobrando no país a passos bolsonáricos. Em tempo, se for isso, ele está vencendo.

     Enquanto o país volta a bater recordes diários sucessivos no número de mortos, compara a preocupação com a pandemia, e com as vidas, acima dos interesses econômicos a uma “frescura”, um “mimimi”. Se um parente, ou amigo seu morreu e você ouve, na sequência, o presidente do país dizendo isso, que tipo de reação pode ser esperada? Vá em frente, tem o meu apoio!

     Em ouro momento, no mesmo dia, chamou de idiota quem reclama a falta de vacinas, sendo que o governo federal negou e fez o possível e o impossível para inviabilizar o acesso do país ao tratamento (episódio das MPs 927/20 e 937/20).

     A avalanche de declarações parecem indicar que Bolsonaro recusa a veracidade, as consequência e a gravidade da situação. É como se, para ele, as mortes fossem mera acomodação estatística, ou efeitos colaterais aceitáveis.

     A existência de tantas e tamanhas inquietações me leva a sugerir uma hipótese. E se, de fato, o presidente padecer de algum distúrbio ou transtorno grave? Dissociativo, cognitivo, de humor, ou outro qualquer. Aleatoriamente, pincei de uma página do Senado Federal (19/04/2010) a seguinte descrição: “Psicopatia, sociopatia ou transtorno da personalidade antissocial é um comportamento caracterizado pelo padrão invasivo de desrespeito e violação dos direitos dos outros”.

     O cotejamento entre essa descrição com as declarações e atitudes de Bolsonaro. Será que Bolsonaro é atormentado e a única coisa que falta é (como no conto de Andersen, O rei está nu) uma criança singela e inocente mostrar isso ao país e ao mundo todo?


     E a chance das demais autoridades demonstrarem que não são coniventes exige bem mais que o silêncio, alguma atitude nos termos de suas responsabilidades e prerrogativas precisa ser adotada, sob pena de parecer omissão ou conivência.

        Ao menos uma autoridade parece estar disposta a romper institucionalmente com o ocupante do Planalto (convenhamos, cartas e manifestos . . .). Está corretíssimo o governador Flávio Dino ao apresentar queixa-crime contra o Presidente da República. A aceitação da queixa-crime pelo STF pode forçar o Congresso a discutir a suspensão do presidente.

     A permanência de Bolsonaro no cargo é questão de “periculum in mora”. “Bolsonaro é uma doença contagiosa e tem que ser retirado imediatamente do meio da sociedade” Já nos advertia ainda em 2017 Givânia Silva, uma das coordenadora da CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das comunidades Negras Rurais Quilombolas).

     O presidente deveria ser imediatamente interditado, bem como sua sua linha sucessória, executiva e legislativa que está comprometida com suas insanidades. Restando, como única saída possível, dentro do ordenamento vigente, que Luiz "mata no peito" Fux, ocupe temporariamente a presidência (e viabilize novas eleições nos termos da lei). De toda a linha sucessória, é a única autoridade que parece ter o mínimo de noção do que significa a pandemia, e as responsabilidades dos poderes constituídos em relação a ela.

    Parece ser essa a única possibilidade de darmos chance para que os profissionais da saúde e cientistas, consigam fazer seu trabalho em paz. Sem sabotagens, prevaricações, nem incitações criminosas de todo tipo.

     Por falar em responsabilidade, ao invés das reformas venais, existe uma reforma constitucional mais urgente e essencial nos tempos atuais. Ao artigo 86 da constituição federal, precisa ser acrescido, como condição para suspensão de mandato, ainda em seu inciso I: “Infrações contra os direitos humanos; que coloquem em risco a vida das pessoas; negligência diante de calamidades.”

     Sendo um razoável indício de que temos um mandatário fora da normalidade sanitária,  que uma proposta como essa seja aventada. Em décadas anteriores seria uma aberração. Hoje parece a única medida legislativa e cívica saudável. 

     Fora Bolsonaro! Pela Vida! Fechamento total! Vacina para todos, já!


quarta-feira, 3 de março de 2021

O vírus brasileiro


O vírus brasileiro

Démerson Dias

Dorian Gray -Ivan Albright (1943)
     Agora o Brasil tem uma variável do coronavírus pra chamar de sua. Deveriam chamá-la Bolsonaro.
     Enquanto o mundo vislumbra a luz no fim da pandemia, o Brasil ameaça a todos, com uma variável mais transmissível e mortal do Sars-CoV-2.
      Quem visita a página do Imperial College London, uma das primeiras instituições a lançar luzes sobre a pandemia, recebe a informação de que a variante P1, produzida em Manaus, é ameaça mundial e tornou-se a mais nova preocupação em torno da pandemia, fazendo com que todos os países sensatos fechem as portas para pessoas vindas do Brasil. Você não leu errado, eu também precisei reler várias vezes para acreditar. O descuido do Brasil em relação à pandemia, agora é ameaça a todo o planeta.
      Parece uma vingança insólita da história, enquanto há brasileiros falando que o mundo é uma conspiração comunista, o mundo começa a tomar medidas para se proteger da ameaça que o Brasil representa.
      Essa variante que se propaga mais rápido, é mais mortal e reincide nas pessoas que já tinham sido curadas. Cientistas temem que ela possa contornar os antivirais recém sintetizados.
      Escrevo, dentre outras coisas, para endossar o entendimento do doutor Atila Iamarino, para quem essa variante merece ser chamada de brasileira. Diferente de outras tantas variáveis, que não deveriam ser atribuídas a países, a variável P1 é resultado de um esforço governamental.
     Minha sugestão é “Betacoronavirus bolsonarica”.
      Quem acompanhou o episódio de 2/3/21 do Átila encontrou um cientista diferente daquele que nos conduziu, ao longo de um ano, com serenidade, pelo território do esclarecimento sobre pandemia. Um dos trabalhos mais impressionantes de divulgação científica.
     Dessa vez, ele expressava o cansaço que recai sobre todos os que estão a um ano debruçados sobre as evoluções do vírus, as estatísticas e a repercussão nas pessoas e países. recomendo enfaticamente essa “live” pois ele detalha como o surgimento da variante decorre inequivocamente do descaso premeditado do governo federal.
      Como ele, que vive o mesmo drama social que todos nós, e ainda está exposto às informações técnicas e quantitativas sobre a pandemia está esgotado e indignado, ainda que de forma contida, podemos deduzir a desconstrução psíquica, física e existencial dos milhões de profissionais, entre médicos, enfermeiros, assistentes e pesquisadores que estão na chamada linha de frente da guerra contra a Covid. Em verdade, eles são nossa “trincheira mater” nessa guerra.
      Para ficar apenas em dois expoentes que acompanho há mais tempo nesse tema, o outro doutor, Miguel Nicolelis, vai além e exorta o mundo a interditar (ênfase minha) o presidente brasileiro que permite que o país seja o maior experimento a céu aberto em favor do vírus.
      Endossando também Nicolelis, acredito que o esforço descomunal que o cara que abusa do planalto vem fazendo para atrapalhar o combate a pandemia, mais do que um caso de transtorno psíquico, precisa ser considerado, em perspectiva, um crime contra a humanidade e ameaça a todo planeta.
      O contexto brasileiro admite considerar a  factualidade de uma  guerra contra a covid porque a pandemia conta, aqui, com suporte militar especializado, capaz inclusive de confundir siglas que garantem ao vírus algumas horas a mais de letalidade.
     Não devemos considerar o fato uma questão de acaso ou incompetência. É passível de apuração e eventual responsabilização quando agente público enseja voluntariamente, ou não, danos à vida de pessoas. Isso só não foi estampado em manchetes porque a mídia é, em boa parte, sócia tutela capitalista/militar que se abate sobre o país.
     O setor militar brasileiro para além da covarde e brutal ditadura de 1964, possuía, algum resquício de respeito, pela atuação, em emergências, sobretudo, logísticas e estruturais no país. Tinha. O episódio das doses perdidas entre Amazonas (AM) e Amapá (AP) deterioram, pela incompetência, o currículo das forças armadas no pior e talvez único momento em que o país, pode se dizer, mais dependia de atuação humana e eminente desse setor.
      Confesso meu próprio abatimento. Acreditei que o arrojo do SUS, da classe científica associada às fileiras sociais que combatem o descaso governamental, conformariam uma trincheira consistente que seria capaz de conter o pior cenário da pandemia.
     Embora isso, em nada, comprometa a capacidade dos profissionais do setor sanitário e científico brasileiro.
      O próprio Nicolelis conseguiu articular em torno de si um consórcio de estados para combater a covid. Mas, confrontados pelas investidas do governo federal, seu alcance e condições operacionais foram francamente sabotadas.
      Duas dessas investidas,  entre centenas de medidas e declarações, impedem governos de comprar vacinas, e, em proposta em tramitação no congresso. elimina a obrigação de investimento mínimo em saúde e educação. Em português claro, o brasileiro pode morrer à míngua, porque o Estado está mandando à merda, ao deus dará, ao inferno, ou às favas como disse, certa vez, outro militar infeliz, a obrigação de garantir saúde e educação. Já se perguntou pra que serve o Estado?
      O Brasil, apesar do território continental possui soluções logísticas condizentes a essa dimensão. O SUS, apesar dos brutais ataques privatizantes, consegue dar cobertura básica a todo território nacional. Uma vantagem estratégica que poucos países no mundo dispunham. Se tivesse uma fração do que países civilizados aplicam no setor, teríamos minimizado as mortes.
   Não, o SUS não é precário. É fruto de uma mobilização fenomenal que, desde 1988, envolveu profissionais e ativistas sociais para que o país tivesse um sistema universal de saúde. Nesse mesmo período forças repulsivas da política e do deus-mercado tentam destruir esse projeto. E alguns governantes se empenham arduamente em nomear para essa área as pessoas mais incompetentes e venais, dispostas a literalmente matar a população, e os profissionais de saúde (a maioria são os chamados servidores públicos). Algo semelhante ocorre com a educação.
      Em termos estratégicos, somente um empenho extraordinário seria capaz de atrapalhar o Brasil de se igualar os países que melhor lidaram com a pandemia. Pois bem, fato é que as condições e estruturas brasileiras foram esgotadas. Isso não ocorre sem determinação política consistente. Esse é o Brasil, saltando no abismo, pandemia abaixo. Essa é mais uma guerra em curso em território nacional que mira em especial os mais pobres.
      Eu seria mais idiota do que pareço se concluísse esse texto sem denunciar a proposta de demolição administrativa que estão chamando de reforma administrativa. Se reformar fosse bom, militares e bancos estariam implorando e pagando por elas. Na verdade, o capitalismo está pagando, por que todas visam exclusivamente tirar dinheiro de quem já não tem, para dar a quem está jogando fora, ou comprando mansões de seis milhões.
     Instituições como FioCruz e Butantã (e tantas outras como Funai, IBGE, Incra, CT-Vacinas da UFMG) estão na mira desse cataclismo político que alguns teimam em chamar de governo. Pelas propostas de “reforma administrativa”, governos podem num dia de mau humor, com uma canetada, destruir riqueza pública, científica e histórica que constituem essas instituições. Exatamente as poucas coisas que ainda restam no país e produzem trabalhos úteis para a população. E só é assim porque a população não é composta por grandes empresários, ou banqueiros. Pode xingar que o nome disso é capitalismo mesmo. Esse também é codinome da pandemia.

segunda-feira, 1 de março de 2021

Somos nós em banho-maria

Somos nós em banho-maria

Démerson Dias

   Comemorei a prisão de Daniel Silveira e sua reiteração pela câmara dos deputados. A menção a Marielle Franco por Taliria Petrone e, em especial, por Marcelo Freixo me comoveram a ponto de perceber que nossa sede de justiça nos aproxima de narco dependentes. Comemoramos qualquer quanta de justiça, e sorvemos até os dedos para não deixar sobrar nada.
     Como esses delírios duram pouco, mal temos tempo para comemorar e já percebemos a conformação de um contorno na prisão que nos embala como ópio.
     A burguesia tem permitido quase tudo aos bolsonaristas. Não me refiro às milícias, ou ao genocídio, porque esses são as tarefas liminares que a burguesia lhes atribuiu. Aceitam bem os impropérios, e até se divertem com eles, assim como a cloroquina (que descartaram para uso logo nos primeiros relances), trumpismo, pão com leite condensado, e essas coisas.
     Pensando bem, Bolsonaro é basicamente um palhaço muito bem remunerado, nem bem é a caricatura da burguesia. Corrupção? Não é exclusiva da burguesia, mas é sua forma predileta de intermediação econômica, vide as prescrições fiscais do consenso de Washington.
     De quase tudo que se desmancha no ar na institucionalidade brasileira, o Supremo Tribunal Federal tem sido um pilar constante e quase sólido. Os bolsonaristas só não entendem por falta de capacidade neurológica. E a questão é elementar: a manutenção da "lei e da ordem".
     Só a consciência da luta de classes garante que as pessoas percebam o estado de barbárie. A burguesia pode absolutamente tudo nesse país, mas a sociedade, sobretudo os excluídos, não podem perceber isso, já que é, basicamente, o componente que falta para uma insurgência civil.
     Daí, que o STF funciona como esse marco abstrato. Não porque sejam inatacáveis, não porque o sistema de justiça é necessário, mas porque a ilusão de que alguma justiça existe é decisiva para nos manter na coleira.
     Daniel Silveira estaria livre, de fato, se sua verborrágica tivesse ajudado a precipitar o ajuste fiscal. Como não surtiu efeito, e ainda abriu uma remota possibilidade de que o conjunto da sociedade percebesse o misancene institucional, o escudo da ordem foi acionado como política de controle de danos.
     A confirmação pela Câmara de deputados do gesto do STF corrobora e legítima ação preventiva do judiciário. E agrega com componente ao contexto. O mesmo centrão, supostamente fisiológico, sem receber um centavo sequer, deu um soco no queixo do bolsonarismo, e não foi apenas para dizer quem é que manda.
     Bolsonaro foi basicamente um espasmo reacionário preventivo que funcionou como tranco de arrumação a escalada progressista originada na constituição de 1988. Foi, basicamente, o "dono da bola", dando uma banana para ilusão democrática dos setores progressistas, e sinalizando, da forma mais ostensiva possível, que democracia aqui, apenas sob o tacão do coturno. Mas eloquente, impossível.
     Como os bolsonaristas são estúpidos a ponto já acharem que possuem alguma virtude política, o legislativo cumpre o papel de mensageiro e mediador. E a mensagem é simples e clara o suficiente para ser entendida até mesmo pelo mentecapto bolsonarismo: o arreio pode virar forca.
     Contudo nada disso está centralmente voltado para as rusgas no interior da burguesia. A única estratégia que importa e manter a hegemonia sobre a sociedade.
     Estamos, como que na fábula do sapo na panela, em banho-maria.