sábado, 18 de fevereiro de 2017

Cultura, propriedade intelectual e apropriação cultural



Fotomontagem com imagens da internet



Cultura, propriedade intelectual e apropriação cultural
Démerson Dias

Não existe sequer um mestre das artes plásticas, qualquer seja sua era, sofisticação ou talento que não deva algo ao bípede humanoide que, certa vez, lambuzou sua mão de barro e percebeu que podia imprimi-la numa parede de rocha.
Um mercenário caçador de tesouros pode dilapidar um ambiente de prospecção arqueológica, se apropriar de um exemplar de arte rupestre e vende-lo para um fetichista ou colecionador de arte.
Um arqueólogo competente deverá se empenhar para preservar, decifrar e estudar aquela forma de expressão.
Um artista plástico, artesão, ou artista de rua podem se basear nela, copiá-la em camisetas, xilogravuras,  ou qualquer outro tipo de artesanato, ou arte.
Uma empresa que negocia marcas e imagens pode pagar para que um artista ou mercadólogo crie um conceito a partir dessa arte e massifique como marca registrada de algum produto.
Não existe bem cultural na humanidade que seja circunscrito a uma única comunidade, localidade, aldeia ou povoamento. Da mesma forma no capitalismo ultraconsumista em que vivemos nada mais consegue ser muito sagrado.
 A cultura é basicamente apropriação, acumulação e aperfeiçoamento em torno de algum elemento circunstanciado histórica e geograficamente. Assim como as funções utilitárias e estéticas se alternam indefinidamente.
A cultura não pode, ou não deve, pertencer a um único indivíduo ou grupo. O maior equívoco existente nesse território são as empresas, absolutamente incapazes de esboçar qualquer ideia, pensamento, ou imagem assenhorarem-se de uma formulação humana. No momento histórico em que a humanidade admitiu como válido o termo “pessoa jurídica” abriu um flanco definitivo para a expropriação de toda e qualquer criação humana por parte de grupos mercenários. É absolutamente esdrúxulo admitir que uma coisa (empresa) possa ser dona de uma produção humana apenas porque financiou direta, ou indiretamente, a criação de um bem cultural imaterial, ou conceitual (deixo a ciência de lado, porque lançaria o debate num cipoal). Só não estranhamos esse fato porque encaramos com uma naturalidade bestial a apropriação da força de trabalho, talento e, às vezes, da própria alma das pessoas.
Compreensível, mas lamentável o furor, de parte a parte, em torno do recente debate sobre o uso de turbante por uma paciente de câncer. Verídica ou não, essa específica a contenda a respeito de apropriação cultural, o tema está em voga como fruto, bem-vindo, da necessária afirmação étnica e identitária dos povos originários da África.
A defesa de valores é pertinente, mas todo embate apaixonado produz desvios. Fatalmente, quando pessoalizamos questões culturais estamos enterrando a possibilidade de encontrar as virtudes nesse debate. Da mesma forma que só existe uma raça humana, por mais que existam variáveis baseadas em circunstâncias geográficas e/ ou históricas, a cultura é produto comum a toda humanidade. A cultura só é rica por que é plural. Se é focalizada e exclusiva, aos poucos deixa de ser cultura. Da mesma forma, costumamos nos proteger do fato de que as formas de extermínio e exploração também fazem parte da cultura da humanidade.
O limite que define a plausibilidade desse debate deveria estar nas intenções, circunstâncias e pessoas envolvidas. Uma pessoa sem relação ancestral com a áfrica usar um turbante não pode ser equiparado, por exemplo com um missionário de uma religião iconoclasta chutar uma imagem de um personagem sagrado de outra religião.
Sobretudo, é fundamental entender a circunstância em que um item cultural é utilizado por alguém alheio àquela cultura é uma ofensa ou elogio. Elogios podem ser inadequados, claro, mas nesse caso será fundamental discutir circunstância, propósito e até mesmo território.
Asa Yoelson era um judeu lituano. À revelia de seu pai seguiu carreira como cantor e deixou sua marca na história do cinema, pintando o rosto de negro em “O cantor de Jazz”. Será que existe suficiente polêmica acerca de apropriação cultural na história de Al Jonson?
Existem inúmeras considerações de ordem formal a serem avaliadas que, aparentemente estão passando ao largo desse debate. Quando um artista copia arte de um afresco egípcio num tecido e vende como artesanato está lesando a cultura egípcia? E quando comemos tapioca ou pirão estamos subvertendo a culinária indígena?
Pra mencionar uma pergunta lançada por Gilberto Gil numa canção, a umbanda é uma apropriação africana do catolicismo, ou uma imposição europeia sobre a religião africana? Resistência ou rendição?
Li uma crítica segundo a qual o uso com finalidade puramente estética do turbante implicaria em apropriação cultural indevida porque trata-se de indumentária religiosa. Tese temerária, já que turbantes e túnicas são alguns dos itens de vestimentas mais transculturais que existem. Estampa, padrão de tecido, modelo representam justamente a “apropriação” específica que cada segmento social atribuiu ao adereço. Mas o turbante usado em nossos dias é o mesmo usado pelos povos africanos séculos atrás, ou também estes sofreram as adaptações derivadas de outras culturas, ou mesmo do modo de produção capitalista. Desconheço que só existam turbantes ritualísticos e artesanais.
A crítica à apropriação capitalista de bens culturais é pertinente. Mas tenho lido comentários que basicamente encaram a questão como direito ou proibição de consumir. Há, inclusive quem afirme que até o uso como opção estética seria condenável. É lastimável que tenhamos subordinado inclusive a estética ao seu valor monetário. Se houvesse um monopólio absoluto do turbante de origem africana bastaria ao capitalismo estilizar um turbante indiano, tingir o tecido no Marrocos e talvez até compar algum conceito e estampa de alguma comunidade Inuit. Ninguém teria condições de incomodá-lo. Mas uma pessoa jurídica é imensamente mais poderosa do que uma transeunte que considere que aquele adereço a deixará mais bonita. Ou as pessoas vestem coisas para ficarem mais feias?
Ou seja, alguns acusam a apropriação cultural como que defendendo a restrição ao uso comercial. Evidentemente, esse discurso só vai funcionar com indivíduos periféricos do mercado consumidor. Há décadas os turbantes frequentam os desfiles pret-a-porter. Inclusive Simone de Beauvoir. Clamores de apropriação passam ao largo daquelas passarelas. Seria pertinente indagar se só as pessoas à margem da cultura oficial estão praticando apropriação cultural?
Estética é aspecto cultural que funciona como motor evolucionário da espécie humana. Não é so válido, é obrigatório denunciarmos quando o deus mercado subverte itens culturais com finalidade de lucro (ou ainda como dominação ideológica) Mas quando esse debate desce às pessoas fatalmente estamos transitando para a cultura do totalitarismo.
Outra linha de argumentação duvidosa diz respeito à uma eventual imposição de que o uso deveria estar condicionado à valorização histórica e cultural e inclusive religiosa. Eis uma trilha perigosamente dogmática. Afirmar que só pode ter acesso a bem cultural quem compartilhar do ideário (político, científico, religioso etc) é sintoma de fundamentalismo.
Não existe um bem cultural sem antecedentes. Alguns, inclusive encontrados na própria natureza. Turbantes não fariam sentido entre as populações tropicais da região pantaneira ou amazônica. Mas ocorreu de forma indeterminada em uma faixa razoavelmente ampla entre África, Ásia e Europa.
Ainda que houvesse uma apropriação nociva, ela ocorreu décadas atrás. Por falar em Al Jonson, a portuguesa Carmem Miranda já havia se apropriado em terceira mão do turbante no início do século passado. Não consta que usava para aviltar a cultura africana embora tenha lucrado com seu uso.
No caso de símbolos culturais sempre lamento o preconceito com que o nazismo manchou a suástica. Símbolo semi universal da humanidade encontrado tanto na cultura nórdica quanto na hindu asiática.
Muito antes de ser símbolo do cristianismo a cruz era, por exemplo, adaga. Aliás, o cristianismo em si mesmo é uma religião sincrética. E evidente a relação da cruz com o símbolo quaternário, cuja origem se perde na história do simbolismo humano.
Acho necessário que qualquer etnia ou segmento valorize seu símbolos e resguarde sua identidade. Mas não saber distinguir quando uma opção mesmo estética representa valorização desse símbolo e confundir isso como degradação, ofensa, ou expropriação é basicamente inverter a lógica racista que devemos combater.
Nossas identidades nos valorizam, mas acima de tudo é preciso não ceder às fragmentações política e culturalmente arbitradas.
Esse capítulo de nossa cultura não estará superado enquanto não for consenso que não existe mais de uma raça humana no planeta. E isso não deve desmerecer qualquer etnia ou cultura. Quando eu canto um fado, luto kung-fu, uso turbante, ou fotografo um minarete não estou expropriando cultura, mas valorizando-a. Mas é preciso ter generosidade e respeito para não confundir afinidade e respeito com seu exato contrário, nem muito menos ver ofensa quando o que existe é elogio.
Acho importante deixar pelo menos apontado um aspecto que sintomaticamente passa ao largo de discussões como essa que poderiam dirimir praticamente qualquer polêmica. Quando vamos discutir especificidades culturais e étnicas relacionadas à ancestralidade africana, a qual ancestralidade especificamente estamos nos referindo? Já que não se trata todo unitário. Mas qual das etnias possui primazia nessa questão? Descendentes de Guiné, bantus, sudaneses etc? A afinidade que consolida os descendentes africanos como referência unitária é pós africana. Antes, disso existiam etnias distintas com valores e culturas diversos. Fico sempre com a impressão que tratamos como um país único o que é, em verdade, um continente. Com tantas variáveis quanto as que encontramos entre tupis, ianomâmis, xavantes etc.
Embates culturais jamais deveriam descer ao nível dos indivíduos, não existe um de nós sequer que não seja mestiço de inúmeras tendências culturais. O Brasil aliás, é expressão virtuosa dessa mescla. O grande expropriador segue incólume e absolutamente alheio ao embate entre ofendidos e ofensores.
Cultura deve existir como referência de identidade, quando reivindicada como propriedade passa a ocupar outro departamento das relações sociais. A prática que reivindica direito autoral, exclusividade de uso ou prerrogativa e direito a propriedade é a dos exploradores. Aos explorados, costuma caber a solidariedade, unidade e generosidade.
A questão central é justamente a virtude e finalidade da cultura. Cultura é bem comum e sua expropriação, essa sim é condenável. Convém ir às raízes da questão cultural, nestes tempos o que apela para a exclusividade não é cultura, é o mercado.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Sobre a barbárie que nos espreita






Sobre a barbárie que nos espreita
Démerson Dias*



Angústia, medo e estranhamento são sensações cotidianas que devem afligir qualquer humano que viva no Brasil neste início de 2017. Não posso agora aprofundar o primeiro equívoco desta frase, a crise é civilizatória, cíclica e estrutural. Ou seja, alcança todo o mundo civilizado em graus diversos, parece recuar em alguns momentos e nos afeta de maneira visceral, pois não bastarão alívios cosméticos. Alguns brasileiros querem crer que a versão brasileira da crise é a pior do mundo, ou ainda, é exclusiva, e às vezes conseguem crer, de fato. Mesmo com um Trump esfregado em nossas janelas. 
Tampouco posso me dedicar aos otimistas contumazes como um senhor numa conversa de taxi que, a cada vez que a conversa esbarrava na “realidade” dizia: “Mas vai melhorar!”. Ou ainda, os “coachs” do eterno entusiasmo e positividade.
A questão é que a dor, o medo, o desconforto, a depressão, não são, nem o mal em si, nem mesmo sua causa. Aprender a lidar com essas inseguranças não é apenas necessidade, é a única possibilidade de rompermos com o ciclo. E quanto mais a fundo formos, quanto mais radicais nossas investidas para desvendá-las, mais perto dessa ruptura estaremos. Usar chavões de auto-ajuda para localizar a crise não a torna mais suportável, é como tentar escondê-la debaixo do tapete. E o volume embaixo do tapete cada vez mais vai tomando conta do recinto todo, porque fugir do desafio não o torna mais fácil, simples. E não, isso não nos torna “vencedores”.
Não é possível ser resiliente a tudo. Morrer não significa resiliência à vida, é apenas parte natural e decorrente de estar vivo. Não encontrar forças para superar os desafios não significa ser fraco, às vezes os desafios estão mesmo fora da nossa capacidade, mas negá-lo não vai torna-lo menor.
Quase não resisto a mencionar o zen, de onde foram destiladas boa parte das receitas de positividade e auto-ajuda, o ego não pode ocupar a centralidade da solução, pois é parte, quando não o todo, da centralidade do problema.
A questão que quero abordar sobre aquela frase inicial parte de outra abordagem.
Independe da profundidade do abismo, da lancinância da dor, se há chance de superar os percalços ela não estará na fuga, mas na contraposição. É preciso encarar o desafio de frente, pois é assim que ele nos confronta. Tampouco é possível tergiversar com o desastre, ele está em curso, não é recente e não vai desaparecer ao sopro de algum encanto.
Existe uma matriz econômica de onde ramificaram parte dos problemas. A crise de 2008 (subprime) não passou, não foi marola e o que foi lançado como solução apenas tornou-a mais dramática. Socializar a crise e bonificar seus inventores, que é a típica solução do capitalismo, apenas levou a crise a um estágio mais profundo.
A aparente primazia política é, em verdade, social. Só parece política porque os que a causaram (junto com seu partido, a mídia) precisam reivindicar estar no controle, como justificar sua inocência, porfiando que apenas por eles chegaremos a alguma solução.
Mas o ódio desvairado que assola algumas coletividades no planeta, agudamente no Brasil, demonstram a agonia de um modelo de valores que, não apenas não comporta mais as contradições (e possibilidades) internas, mas também esgotou seu repertório de “soluções”.
O passo seguinte implicará em novo encolhimento da quantidade de eleitos à salvação (claro, há novos ricos pululando no mundo, que horror!). No Brasil, as classes remediadas serão solapadas com mais virulência do que ofenderam os neoconsumidores de linha branca, carros e passagens aéreas.
 A parcela do mundo a ser salva da barbárie calculada precisa abocanhar mais algumas cabeças. Não é mais possível sustentar a exploração “necessária” apenas com o contingente de marginais. Diriam os crentes na mobilidade social que é preciso “cortar na carne”. Eles acreditam que são parte da classe predestinada
Tolice, a elite do mundo precisa apenas de mais despojos e agora almeja empobrecer antigos remediados.
No Brasil esse é o padrão da crise em seu aspecto institucional e econômico, os miseráveis que tiveram algum alento do assistencialismo engajado, serão o lastro que irá rebaixar uma parcela até então remediada. Aqueles que administravam o matadouro são convocados a entrar na fila do abate.
O clamor pela paz é fútil, a paz foi conspurcada há tempo demais e as primeiras vítimas das atrocidades, seus cadáveres, e os sucessores deles já estão ensurdecidos de tanto gritar por respeito.
Não me parece possível ainda determinar o custo humano da crise que vivemos, o que consigo vislumbrar é que novas matrizes de ação política e social precisam ser conectadas. Respostas à barbárie são ensaiadas em pequena escala aqui, ali, planeta adentro.
Os autoritarismos, salvadores da pátria, heróis e mesmo os gênios da humanidade perderam a primazia de sancionar seu legado. As soluções são colaborativas, não pela indulgência dos poderosos, mas justamente pela generosidade dos espoliados de poder, dos desvalidos.
Fora da estratosfera elitista, cercada por muros de preconceito e carne viva, somente poderão sobreviver os que souberem reconhecer seus iguais e trabalhar solidariamente pela autopreservação.
As sessões de ódio são contagiosas, mas se consomem, antes, a si mesmas. Assim como as crenças na positividade segregacionista, serão gravetos na turbulência. Apenas os que forem capazes de aceitar a virtude da pluralidade, a força da generosidade e a soma das identidades dentro da diversidade, terão condições de abrir caminho por sobre a barbárie. Os "deserdados" da terra precisam reconhecer a crise como um parto. Mas é fundamental não deixar o feto morrer ainda no útero.

* Ilustração - Autodestruição - Self-Destruction - William Niu, ilustrador estadunidense. http://niuner.deviantart.com/art/Self-Destruction-176389322