terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Depois da tragédia, de volta à farsa

 Démerson Dias


Como dizia um Antonio Brasileiro Jobim, o Brasil não é para principiantes. A predileção do país por golpes dentro, ou fora da ordem sempre funciona como contra medidas preventivas. E esse caráter golpista é de tal forma naturalizado que, não importa quem ganhe uma eleição majoritária, e nem para quem cada ator político torceu, ou impulsionou. Imediatamente todos passam a reivindicar que o eleito seja o que não é.

A própria mídia que elegeu Bolsonaro queria sua crueldade sem sua estupidez, como se fossem dissociadas.

Desmascarado o delírio fascista da burguesia brasileira, pouco a pouco os diversos segmentos que garantiram a construção e viabilização da tragédia Bolsonaro vão retocando o verniz da hipocrisia.

Agora já se posicionam para exigir que Lula, virtual eleito, seja um Lula com programa de Bolsonaro.

Difícil saber com precisão o quanto de balão de ensaio foi a declaração de simpatia no Partido dos Trabalhadores à revogação da reforma trabalhista espanhola. O efeito principal foi alcançado: comoção generalizada à esquerda e à direita. 

A primeira querendo que cada candidato progressista converta-se imediatamente em revolucionário. Pouco importa que tenha sido eleito pela mais cretina ditadura burguesa, tem que ser golpista e romper com estruturas republicanas.

Já a direita, querendo manter o mais intocada possível a desgraça institucionalizada que caracterizou o governo de um dos pústulas (às vezes, literalmente) militares mais cretinos da nossa história.

Alguém precisa falar em português mais claro possível: Bolsonaro precisa ser inteiramente revogado. Jamais esquecido porque é dessas coisas que quando se esquece, se repete. O país precisa ser purgado, desinfetado e exorcizado do período Bolsonaro.

Mas para que isso ocorra é preciso, pelo menos às esquerdas, revolver suas raízes, inclusive para não se repetirem também os erros mais obtusos.

Mensalão, lavajato e o golpe contra a presidenta Dilma foram episódios semeados por ação do próprio lulismo. Convém repensarem os termos em que pautam seu esforço conciliatório. Já não deu certo a versão 1.0.

A direita condenou a esquerda realçando nela o comportamento corrente, usual e programático que caracteriza mais a direita do que a esquerda. Nem a mídia conseguiu esconder que compra de votos, tráfico de influência, caixa dois e “pedaladas” são instrumentos de uso corrente, alguns desde o império.

Tampouco se pode eximir a parcela de responsabilidade do próprio lulismo por ter hospedado ou patrocinado ele próprio os dispositivos e condições e atores  que o atropelaram não uma, mas, pelo menos três vezes.

Joaquim Barbosa foi, "apenas" um dos primeiros indicados por Lula para compor o Supremo Tribunal Federal.

O próprio Sérgio Moro provavelmente não teria entrado no radar da CIA / FBI não fossem os serviços prestados no processo do mensalão à ministra Rosa Weber, indicada por Dilma Rousseff.

E ainda, provavelmente o mais grave, foi Michel Temer, escalado por Lula para secundar sua sucessora. Não resistiu aos deslizes estratégicos do lulismo e decidiu desalojar de vez o PT do governo, enquanto Moro e o STF (praticamente inteiro) tratava de inviabilizar o retorno de Lula à presidência. Bem entendido, os indicados por Lula e Dilma eram a esmagadora maioria no STF. O único republicano ali foi Lewandowski.

Importante registrar que exceto em momentos de exceção Lula indicou 8 ministros, um casa único. Ou como o próprio usa dizer, nunca na história desse país. Somados, Lula e Dilma indicaram 13 ministros. Só não renovaram a corte inteira porque o critério da vacância é idade, ou morte.

Não valeram advertências literárias desde as clássicas até as populares: crie corvos e eles te comerão os olhos. A víbora de Esopo, ou mesmo a história do sapo e o escorpião.

A ditadura burguesa só ilude os distraídos, os incautos, ou os arrogantes. Inclusive os que reúnam as três características.

Os folclores na política brasileira dão exemplos suficientes de que flertar com essa burguesia parasitária é uma maldição que não tarda a cobrar compensação. A revogação decisiva do criminoso regime escravocrata custou imediatamente ao império o golpe republicano que foi personificado por Deodoro, amigo do imperador. Uma tragicomédia que só é esmaecida porque instaurou o regime de apartheid no país, muito antes da África do Sul.

À época imigrantes foram trazidos para serem trabalhadores para que ex-escravizados seguissem párias da “sociedade do trabalho” e não fossem incorporados ao novo modo de produção. 

Um modelo de segregação e desterro moral e ideológico que iria perpetuar uma senzala civilizatória na qual nem mesmo as mais elementares práticas culturais pudessem ser admitidas. Futebol, samba e capoeira, todas viveram momentos de criminalizadas. Somente vingaram porque, assim como ocorreu com a cultura dos povos originários a história desse país é indissociável dos massacres dos nativos locais e dos sequestrados da África.

No Brasil de hoje, aos poucos cada um de todos os patronos da candidatura Bolsonaro, todos descendentes, ou saudosistas, dos senhores de escravos, vão trocando de pele. Não por remorso, consciência, nem muito menos revisão crítica. Apenas a velha e providencial hipocrisia estrutural.

Alguns ainda haverão de reclamar que o ex-operário trará de volta alguma racionalidade à recalcitrante república brasileira.

Confirmado o retorno de Lula, pode parecer aos otimistas que o Brasil superou a trapaça que tirou o PT do governo e Lula da vitória praticamente certa em 2018. Essa interpretação é falsa.

O que esse hiato custou ao Brasil uma posição entre os países, na história da humanidade, em que a barbárie assumiu o controle. A farsa da guerra civil mascarada pelo regime carcerário (que o lulismo se esquivou de combater e, talvez até, tenha agravado) supurou em genocídio de mais de 621 mil (números de 17/01/2022) assassinados pela negligência instrumental e programática.

O Estado brasileiro, enquanto instituição, regrediu praticamente um século. É como se a república fosse jogada fora, não à favor do império, mas em favor de um despotismo distópico que comemora e se deleita com a desgraça generalizada. Alguns retrocessos dependerão de forte determinação e décadas de reconstrução.

A história de vida e de morte do regime genocida está, até o presente momento, sendo mascarada por um “apagão” de informações administrado pelo governo. Denúncias apontam que o gabinete do ódio recebeu acesso privilegiado a todos os órgãos de controle de processos e informações.

O que nos distingue das mais perversas experiências autoritárias da história?

E a timidez com que o lulismo buscou instalar alguma justiça social será insuficiente para fazer o país retomar até mesmo as bases formais consagradas na Constituição de 88. O país deveria ser refundado, mas tudo vai sendo normalizado, como se ninguém mais quisesse saber dos crimes que ocorreram nos últimos sete anos.

Sem um ascenso de engajamento democrático que reconstitua o ordenamento do país, somos hoje mais miseráveis do que fomos no começo do século passado. Política, econômica e moralmente.

Pelo ensaio que faz flertando com Geraldo Alckmin, ainda não é possível saber até que ponto Lula aprendeu alguma coisa sofrendo na própria pele reiteradas vezes a rejeição daqueles com quem insiste em se aliar.

É questão de se perguntar se está, de fato, contando com os aliados adequados. Talvez o “tino político” não seja exatamente sua melhor virtude.

Pelo lado da burguesia não devemos ser igualmente condescendentes. Raríssimas alternativas seriam piores que Bolsonaro. Como até o próprio Geisel não o tinham em boa conta, não é um acidente que tenha sido o único estrume que a burguesia tinha para instrumentalizar. Ele é, provavelmente, o mais fidedigno porta-voz de um segmento hegemônico da burguesia. O candidato, enfim, escolhido por ser o vassalo mais obediente e explícito, uma escolha feita com convicção e consciência.

O atleta especializado em flexão de pescoço introduziu o Brasil ao mapa do genocídio humanitário. Um feito que o coloca em discreto paralelo com Nero, Hitler, Mehmed Talat e seus comparsas do império otomano (genocídio Armênio). Esse é o caráter desmascarado da burguesia brasileira. Bolsonaro é apenas seu emissário menos hipócrita, mais objetivo e sincero.

Em mais de uma oportunidade comemorou e se empenhou para produzir uma necropolítica que o equiparasse ao genocídio histórico dos europeus aos povos originarios americanos e aos africanos sequestrados.

Evidente que Lula, um dos mais eficazes governantes na história da ditadura da burguesa brasileira, surge como um verdadeiro bálsamo. E o é, de fato, para milhões de brasileir@s. Ainda assim, sob alguns aspectos isso não é exatamente um elogio.

A alternância entre tragédia e farsa não é novidade na política brasileira. E tampouco incomoda os que aceitam que assim seja.

O desafio para romper com esse ciclo é daqueles que efetivamente não se dispõe a validá-lo.

A tarefa de superar a realidade não é dos que estão conformados com ela. E nem existe motivo honesto para esperar, ou cobrar que façam algo nesse sentido. Independente do que Lula tenha aprendido com a sua experiência, seu horizonte ainda é o da conciliação.  Apresentar como denuncia o que ele próprio afirma (como virtude) com palavras e atos é bem pouco inteligente. Pouco honesto, também.

A responsabilidade de mudar o mundo é dos que afirmam estar inconformados. Cobrar dos demais não é apenas fútil, é pueril.

Para simplificar a obrigação de mudar o mundo é daqueles que enxergam seus limites e contradições e não dos que acham que as coisas estão todas no devido lugar.

Romper esse ciclo de tragédias e farsas vai exigir mais do que presunção moral, palavras de ordem no infinito e autoproclamação. É preciso construir as condições políticas para que isso aconteça. Enquanto isso não ocorre, somos, nós mesmos, partícipes entre as lágrimas de tristezas pelas desgraças e os sorrisos insípidos que, desta vez, não foi tão ruim quanto poderia ter sido.