quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O Gueto de Gaza


O mais assustador é que recordes existem para serem quebrados.
Wood Allen em Desconstruindo Harry sobre os seis milhões de mortos no holocausto.


Ao falarmos em favor da Palestina parece impossível escapar de sermos classificados como antisemitas. Segundo grupos extremistas como a Liga Anti Difamação, esse termo cabe em qualquer argumento que não signifique adesão incondicional ao seu proselitismo sionista. Por essa razão nem me esforçarei numa introdução que reconheça o significado do holocausto. Provavelmente o maior genocídio levado a cabo pela humanidade, mas não é o único, não é o maior, e nem de longe o mais efetivo e bem sucedido. Sem pestanejar muito lembro que bem pouca coisa, ou nada se iguala ao genocídio em escala continental levado a cabo em todo o continente americano. Nações e povos inteiros foram absolutamente dizimados. Incluindo culturas que pelo pequeno número, levou ao extermínio completo de culturas inteiras.
Ainda buscando construir alguma argumentação que se esquivasse da acusação de antisemitismo até tentei palmilhar o histórico da região, mas certamente existem inúmeros especialistas, aos quais meu primarismo sobre o tema, ficaria muito aquém de qualquer abordagem consequente.
Voltei então à primeira inquietação que me ocorreu por ocasião de mais essa cruel investida de Israel sobre os Palestinos. Seria outra celeuma tentar abordar que papel efetivamente o Hamas terá cumprido ao longo da história, mas o ponto de partida histórico já pende francamente em favor da resistência palestina. Por ocasião da decisão da Onu que criou o Estado de Israel, um quarto do povo que vivia na região levou metade do território, três quartos ficaram com a metade restante. Não tinha como dar certo isso.
Só que meu diletantismo viajou por outro viés da história toda. Basicamente dois pontos. Como o povo que sofreu o holocausto é capaz de se tornar insensível com opressões, quaisquer delas?
E, por mais compreensível que seja o martírio como bandeira, porque a vitoriosa campanha do Gueto de Varsóvia é tão subestimada historicamente, sendo um exemplo inconteste de heroísmo e resitência?
As respostas parecem transitar pelas mesmas motivações. Aliás, subestima-se a segunda, justamente para preservar atualidade inconteste da primeira.
Por mais atenuantes que se possa agregar a esses dois paralelos de uma mesma história, impressiona a forma como os dois marcos estão entrelaçados na atualidade.
Se a racionalidade e ética alcançasse o debate levado adiante por Israel, seria inegável que ética e humanamente, aquele Estado deveria estar entre os primeiros a repudiar violências até as bem mais brandas do que as que eles promovem contra os Palestinos. Por que absurdo descaminho, quem viveu o holocausto consegue promover os massacres contra os Palestinos, não faço nenhuma questão de entender. Reputo que nenhum argumento sadio viria desse percurso lógico.
O exemplo de Varsóvia soa para mim igualmente desconcertante, já que, via de regra, heróis e mártires andam de mãos dadas, quando não são rigorosamente os mesmos. À distância, me parece que, de forma proposital, Israel sobrepõe seus mártires aos heróis para justificar seus crimes. Ao fazê-lo, expropria também dos Palestinos o próprio direito à insurgência, buscando deslegitimar que suas vítimas se apropriem, extensivamente de seu direito a constituir em Gaza seu gueto de resistência. Flagrantemente, portanto, um crime, que renega até mesmo o direito de insurgência das vítimas. E não é essa uma das práticas covardes mais consensualmente repudiadas no planeta? Quando a vítima é tomada sem direito efetivo à defesa? Negar o direito a resistência praticamente, por si, já legitima quaisquer respostas por parte dos Palestinos. Autopreservação, nem é status político, é condicionamento biológico.
Numa ironia alegórica, parece que a divindade endureceu, não o coração do faraó, mas do Estado de Israel, quanto à libertação do Povo da Palestina, os desterrados da atualidade. Mas se há algum Moisés palestino, ele parece não merecer ter a chance de anunciar que as pragas recairão, agora, sobre o povo de Moisés.
Somados, o enaltecimento dos mártires e esmaecimento dos herois, promove uma construção histórica rara, se não, inédita. Mártires não servem para inspirar herois, mas para encobrir crimes sucessivos e negar e renegar, a priori, qualquer inclinação heroica de suas vítimas. Seria estarrecedor, não fosse, mormente humano.
Diante desse paradoxo civilizatório, que é a brutalidade de Israel contra Palestinos salta-me à memória dois momentos heróicos da humanidade. Cuja dimensão pode também dizer muito sobre a fidelidade histórica dos donos do mundo.
De um lado, o rebelde desconhecido da Praça da Paz em Pequim a 5 de julho de 1989. Nem bem vem ao caso se morreu logo em seguida por outros meios. De outro a estrangeira estadounidense Rachel Aliene Corrie assassinada efetivamente por uma escavadeira  próxima à fronteira de Gaza  com o Egito em 16 de março de 2003.
Dois herois, incontestavelmente, mas só a vítima de Israel foi martirizada imediatamente. Considerando o inegável status da China em relação aos direitos humanos, não parece haver margem de tergiversação por parte de Israel. Aliás, como em praticamente todos os demais aspectos.
Parece-me insofismável imaginar a que lado desse conflito se encaixariam as palavras heróicas e tristemente proféticas do líder de Varsóvia, Mordechaj Anielewicz: "Declaramos guerra à Alemanha, a declaração de guerra mais desesperada que já foi feita. Organizamos a defesa do gueto, não para que o gueto possa defender-se, mas para que o mundo veja a nossa luta desesperada como uma advertência e uma crítica".
E á guisa de um deseperado de descuidado comentário da diplomacia israelense à censura brasileira aos ataques recentes, talvez nos reste reconhecer em resposta que o papel mais irrelevante, se não, equivocado, do Brasil nesse contexto talvez caiba exatamente ao empenho do brasileiro Osvaldo Aranha naquela paradigmática assembleia da ONU em 1947.