terça-feira, 28 de maio de 2019

Épica

Démerson Dias
Para Maria Cecília Vicente de Azevedo
Somos tuaregues, ianomâmis e mexicas;
Salvador Dali - Niño geopolítico observando
el nacimiento del nuevo hombre (1943)
andamaneses, inuits, bantus e mongóis.
Flor do umbigo da Pangéia, somos cosmonautas.
Somos aquele um que nunca quis existir
antes de ser mais, antes de ser nós.
Somos os corpos mortos, e ressuscitados pelo Ganges.
Ĉiuj parolas esperante
Antropoversalidade.
Somos os leprosos, os virtuosos, os assassinos e os vencedores
Somos os deuses paridos em mocambos,
que são mais ricos que palácios erguidos por mãos escravas.
Deuses, assim, livres.
O eu é uma verdade desejável, mas irrealizável.
Encontrado em momentos tão fugidios
que nunca mais serão os mesmos das ilusões,
prenhes de memórias, perenes nas cicatrizes, e volúveis nos desejos
Eis-nos aqui, nus, cobertos por madrepérolas,
ou inundados pelo sangue avassalador dos nossos inimigos.
Nosso próprio sangue.
Não somos múltiplos, somos todos,
e seremos ainda mais, conforme se toquem as nossas diferenças
Somos frutos do orgasmo e do açoite,
encantados pelos germes, revelados pelas vergonhas
e inocentes pelos nossos anseios.
Somos a mãe d'água, terra livre e lavas em fúria.
Somos o gelo em que, no calor, se diluem nossas dores
Filhos da morte, ideais das revoluções
Sonolentos nas tempestades
Somos as amebas incansáveis rasgando a carne do cosmos
para inventar o próprio sangue
Somos o nada que não desistiu
De ser todo.

sábado, 4 de maio de 2019

Elogio à República Bolivariana por mais uma vitória sobre o golpismo mercantil exógeno

por Démerson Dias



     Particularmente, estou mais interessado com as relações sexuais das estrelas-do-mar do que com a “ditadura” na Venezuela.
     Quem está achando que Guaidó faz sentido, para mim é um esquizoide social, literalmente, idiota. Ou analfabeto político no dizer de Bertold Brecht. Nada tenho para dizer a eles. Mas repudio incondicionalmente o golpismo e ainda com mais intensidade o cerco militar, econômico e ideológico encetado pelo Demonismo de Trump.
     Com demonismo quero me referir ao globalitarismo de fim de mundo, ou globalitarismo apocalíptico em que o capitalismo, em sua versão neoliberal, tentar encurralar a nós todos.
     Torço pelo projeto da “República Bolivariana”. Nicolás Maduro não é um ditador. Fidel também não era.
     Os EUA são mais próximos de uma ditadura bipartidária do que o projeto bolivariano e a revolução cubana. O conceito de democracia foi flagrantemente deturpado pelo imperialismo pós-guerra. O Brasil, a rigor não deixou de ser uma ditadura. Vide o que já alertava Dalmo Dallari em 19982, sendo que a situação não melhorou, nem se corrigiu, desde então. Concretamente, a perpetuação de inconstitucionalidades não é apenas antidemocráticas. Assim como a decisão, ainda provisória sobre a prisão em segunda instância. E mais ainda com a condução coercitiva como medida cautelar, a prisão como exercício coercitivo para adulterar provas testemunhais.
     Aliás, são eufemismos tolos, o Brasil mata por ano, mais que todos os conflitos armados em todos os países centrais somados. É o maior programa de extermínio em andamento no mundo. Evidentemente as vítimas primordiais não pretos, pobres, brancos pobres como pretos e, após a vitória miliciana, mulheres vítimas dos eleitores do coisa ruim.
     Então, temos que gente dessa estirpe quer se meter a chamar Maduro de ditador. Eu teria ódio, mas esse é o tipo de exercício que faz mal a nós e às pessoas que nos são próximas. Então, tenho algo mais que desprezo. Algo como um desprezo incisivo. Faço questão de anunciá-lo.
     Para quem não vive sem,  estou excluindo de meu ambiente social virtual todos que percebo estarem defendendo qualquer aspecto da “doutrina bolsonaro”.
     Os Eua são tarados por guerras pelo petróleo. Tarados dos mais incorrigíveis e doentios. O capitalismo precisa disso para ter liberdade para produzir tutelas diversas sobre países, economia, imaginário e também cultura. Trump é um dos mais versados em aquisições hostis que já passou pelo salão oval. Talvez o maior deles depois do “pistoleiro” Reagan.
     Como sou cheio de defeitos, alguns deles eu prefiro preservar. Por exemplo quem chame Maduro de ditador já cai no meu conceito. Pode-se incluí-lo entre os loucos (todos) como fez Pepe Mujica, mas o termo ditadura hoje está liquefeito, quase evanescente. O Brasil é uma ditadura e só agora parcela da esquerda se deu conta pela amistosidade com que a gangue no poder consegue transitar sem obstáculos maiores que os antecessores. O que só evidencia que os  saqueadores permanentes do país relativizam até mesmo um semovente indócil como governante.
     A Venezuela conquistou uma etapa cultural importante. O ódio como profissão desceu de lá, das sucessivas investidas oposicionistas e se estendeu pelo Brasil. A direita tirada de cena e o quadro que temos hoje na Venezuela não é uma crise política. São as contorções dos saqueadores do país que perderam proeminência e chamaram o “tio sam” para lhes socorrer. São estúpidos, claro. O tio sam não se meteu por amor a eles, mas porque é parte da sua agenda o assalto ao recurso energético venezuelano. Guaidó vai evaporar mais rápido que Capriles. E é impressionante a paciência do governo bolivariano que não o expulso do país. Já que ele gosta tanto do tio sam, porque não vai morar na Flórida?
     É como os cubanos e brasileiros que acham que se trata de alguma benesse serem hospedados na península da Florida. Fora da Venezuela Guaidó vale menos que nada para o tio sam.
     A construção social levada a cabo por Hugo Chávez ainda é uma conquista histórica. Maduro não possui os mesmos recursos seu antecessor e aquele não investiu na constituição de um bloco coeso e consistente de sustentação, o que é surpreendente já que reconstituiu praticamente toda a cúpula dos poderes republicanos. Esse é um desafio comum a toda a esquerda. Lula cometeu o mesmo erro, embora, em escala de erros superiores a Chávez, por não ter apostado em ruptura, mas numa conciliação que, afinal, o colocou na cadeia com a cumplicidade de alguns de seus beneficiários. E as estruturas econômicas do Brasil não foram incomodadas.
     Tanto lá, como aqui, trata-se de tornar o Estado um bem público, sob controle público e operado por um grupo consistente de trabalhadores comprometidos, não com os governantes, mas com o interesse público.
     Pra nossa sorte temos uma burocracia que possui um apego importante à formalidade. Por essa razão, alguns agentes públicos têm oferecido alguma resistência à demolição generalizada. Mas Maduro, nesse aspecto convive com um desafio bastante maior. Se não estiver construindo e pavimentando a próxima etapa da revolução bolivariana sua queda é questão de tempo.
     O calote dos EUA teria que ser seguido por um redirecionamento da produção a novos parceiros. Deve ser a milenar cautela chinesa que detém a China de se oferecer como destinatária do petróleo Venezuelano. Não tinham se passado 100 dias de doutrina bolsonárica para a China ver vantagem em azeitar seu comércio com os EUA.
     De qualquer forma, cabe à chancelaria bolivariana entrar na guerra de forma soberana e buscar urgentemente parceiros que substituam sua dependência comercial com os EUA. E devem fazer isso antes que o cerco se amplie e um bloqueio formal se estabeleça. Para Cuba foram décadas de escassez.
     Nesse debate não é preciso menosprezar o incidente do atropelamento de um manifestante por um tanque. Em se tratando de Brasil criticas a esse episódio correspondem a uma hipocrisia criminosa. Maduro está sendo imensamente mais tolerante com Guaidó e seus amigos do que os facínoras brasileiros foram em 64 e os milicianos são hoje.
     Sinto-me especialmente bem com minha impaciência em relação ao pedantismo apedeuta dos bolsonaristas. Conforme mencionei em postagem recente é preciso tomar as palavras de Bertrand Russell como advertência: “as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e as pessoas idiotas estão cheias de certezas”.
     Não precisamos de certezas quanto ao que é necessário, é suficiente saber o que é inaceitável. E ando bem pouco generoso com os elogios à ignorância, à venalidade e a taras morais capitalistas. Diante da doutrina de renovação fascista em curso no país é preciso máxima cautela para que a paciência e tolerância não se confundam com covardia. Quem não tem dignidade não consegue reconhecê-la nos outros.