segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Derrotar Bolsonaro o quanto antes, e sempre.

Démerson Dias


Laerte Coutinho - 2019

Esse não é um texto que vai fluir como outros. É uma opção diante da falta de opção. E não me refiro à opção de votar em Lula no primeiro turno. Isso é prosaico e se tiver sorte, consigo explicar o porquê antes do final do texto.

Votar em Lula no primeiro turno é mais necessário do que útil. E a primeira necessidade é mesmo afetiva. 

Tamanho desamor destilado em todas as áreas e territórios exige que busquemos restaurações. O quanto antes. É preciso nos permitirmos soltar a respiração presa, sobressaltada a cada gesto, violência ou cretinismo a que fomos expostos impiedosamente. No mínimo há 680 mil razões para votar contra Bolsonaro. Logo. Urgente.

Estamos nas ruas divulgando nossos candidatos, mas com um olho em movimentos suspeitos e provocações. Alguns acabam cedendo, o que é quase inevitável. Bolsonaro organizou um exército que vai às ruas pronto para matar e, por ele, morrer até, se for o caso. Isso só não foi observado porque não tem sido essa a nossa disposição.

As forças policiais e militares estão, preliminarmente, ao lado do fascistas. E parte delas, são de criminosos militarizados. Não bastasse isso, os CACs são uma força armada de mais de meio milhão de vândalos e assassinos.

O que consideramos civilidade está por um triz. E o triz não está sob a responsabilidade, nem das forças da ordem, nem das autoridades. Se o pólo da sociedade  que vai derrotar a familícia nas urnas estivesse disposto à guerra, já estaríamos em guerra civil. 

Ela já existe e é patrocinada pelo Estado, só não está declarada porque para a parcela branca e remediada, lutar a guerras dos pretos e pobres não vale a pena. É mais cômodo deixá-los morrer com a voz esganiçada e sufocada. Pretos, pobres, e ainda, as mulheres, indígenas, lgbtqiap+.

Até crianças e desvalidos.

À sombra da reinauguração do Museu do Ipiranga me ocorre a letra de outro hino, o da república “nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”. O que não sabemos mesmo é quando o país deixou de ser um exterminador de futuros, esperanças e vidas.

É quando temos um facínora com uma caneta de mandatário que descobrimos a real vocação, já que nenhum escrúpulo institucional foi capaz de evitar que chegasse ao poder alguém que já fez todas as promessas e ameaças possíveis, desde, inclusive de fazer “o trabalho que o regime militar não fez, matando uns trinta mil, começando com FHC”. Foram 680 mil mortos e estávamos todos avisados. Não existe brasileiro um com mais de 22 anos que não tenha adquirido ao menos uma nódoa hipócrita na alma. Convém sabermos disso quando alguém reivindicar a qualidade da democracia brasileira. 

O pior inominável só não ocorreu por imperícia do outro lado. Bolsonaro só não deu o golpe “no mesmo dia! no mesmo dia!” por que além de incompetente político é covarde. Já a competência para ludibriar os alucinados não é a mesma necessária para articular forças sociais minimamente sóbrias. 

Ainda assim, corromper alguns milhares de militares e civis para desconstruir o esboço civilizatório é algo muito mais fácil. Destruir não exige mais do que construções, materiais ou abstratas. E Bolsonaro foi profundamente bem sucedido como um governo de demolição.

Não deveria ter sido eleito. Eleito não deveria ter tomado posse, e isso teria ocorrido se o TSE fosse cioso e coerente com seu papel. Como não foi, está até hoje servindo cafezinho para militares de moral cívica pra lá de duvidosa.

Como Bolsonaro tomou posse, deveria ter sido derrubado por um brasilianaço como o ocorrido na Argentina, novamente, como não se deu, deveria ter sido deposto por um impeachment. No limite, condenado por omissão nas 680 mil mortes, atestadas como criminosas, por omissão, prevaricação e conluio numa CPI em que os crimes foram escancarados.

Perdemos todas as oportunidades. O país perdeu. Essa sopa protonacional que temos por aqui foi incapaz de reconhecer e inibir a pior força destrutiva que surgiu entre nós, mesmo após uma das ditaduras mais estúpidas do mundo.

Entendo setores das esquerdas, que fazem ressalvas, mas o que ainda não elaboramos suficientemente é que essa eleição está apenas devolvendo o país a 31 de agosto de 2016.

O pastelão criminoso da burguesia parasitária inventou um “não país”, uma excepcionalidade cívica que custou muito e  há muitos custou tudo. Refiro-me a 680 mil mortos, reitero, reafirmo, se pudesse citaria a todos nominalmente (exceto os bolsonaristas, talvez). Não se trata de dar uma vitória a Lula no primeiro turno. Em 2 de outubro de 2022. A derrota de Bolsonaro está atrasada há mais de 2100 dias.

Pelo aspecto eleitoral, concluiria aqui. No entanto, a situação é mais complexa do que pressionar botões. 

Nem mesmo Lula será suficiente para calcinar a chaga cívica que se abriu tanto com o golpe, quanto com a eleição de 2018. Em alguns casos, o país regrediu décadas, o modelo constitucional do bolsonarismo, com sorte, é o de 1968. E isso foi implementado no país, sem que uma lei sequer fosse revogada. Apenas pelo silêncio dos bons” mencionado por Luther King.

A questão aqui não é se Lula é a melhor opção, mas que o governo Bolsonaro exige uma resposta civilizatória de um tipo que ainda não inventamos. E talvez nem sejamos capazes. Decidir as eleições em 2 de outubro nunca foi tão urgente e nem, também, tão dramático.

Assim que ouvirmos o sinal sonoro da urna, o que somos instados a fazer pelo passado e para o futuro é  respirar fundo e, enquanto ainda choramos pelos nossos mortos, erguer a cabeça para ir à luta construir o país que nem existiu e já sofreu um atentado quase fatal. Morte ao fascismo!


quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Quando o nome da morte é dor

 

Démerson Dias


Internet, sem indicação de autoria

Tenho o privilégio de poder usar a caneta, quando poderia usar a faca.

O setembro amarelo, por enquanto é uma boa intenção, não muito mais que isso. Porque sem mudar a civilização, efetivamente, não mudamos suas ciladas, seus espinhos, seus algozes.

E não vou deixar de afirmar que o capitalismo é o mais longe que a civilização humana conseguiu chegar, mas é também a pior face dela, ainda que outras formas de opressão, tenham assassinado bruxas, promovido guerras e torturado esperanças.

A depressão e o suicídio são expressões de um modelo civilizatório que nos adoece, esmaga, apaga e ainda nos larga no beco do desaparecimento social. Cultivamos dores quando poderíamos cultivar esperanças e oportunidades. Cultivar felicidades, nem pensar.

Conforme o poder econômico se assenhora de tudo e das relações parciais e totais da humanidade, o acesso a ele torna-se passaporte para realizações, ou para morte. Ou seja, morre-se, de todo jeito, de fome. Ora a fome física, ora a psíquica e a afetiva.

Levei alguns anos em terapia para entender que existe dor psíquica. Devo isso a um psicanalista que considero tão amigo quanto terapeuta. Nos vídeos que fiz acerca do suicídio consegui pavimentar (ou simbolizar) um território em que depressão e suicídio subsistem numa realidade. Pois não tratamos, nem combatemos o que não denominamos.

Num contexto bastante enviesado posso dizer que eu tenho dois motivos maravilhosos, que, por enquanto, estão poupando minha vida. Nem vou mencioná-los aqui porque, felizmente, ainda não entendem o quanto suas duas vidas lindas e pulsantes sustentam a minha. Caso isso sobre em alguma posteridade espero que leiam nas entrelinhas o quanto me orgulham como pessoas e como esperança.

Mas é um caminho meu, solução minha, e apenas enquanto admito transitar por alguma sanidade e lucidez. Esse é um fio tênue. E não vai me servir para sempre. Vai saber se não me escapa em um instante fugidio logo adiante.

Um dos nomes da morte, para mim, é dor. Existem, dois movimentos essenciais que separam a vida dessa morte morrível , nominar e expressar. A morte que ainda não consegui equacionar é o desespero. Irracional, súbito, contundente.

Por enquanto é o máximo que conseguimos oferecer, enquanto civilização para sustentar a vida. Você que está lendo, não acha muito pouco que a civilização que vai à lua, constrói monumentos inescapáveis aos sentidos, não seja capaz de dizer mais do que: sua vida é problema seu?

A antropóloga Margaret Mead cunhou uma frase formidável, que carrego como ontologia da humanidade, dizendo com outras palavras que nossa civilização começa quando não deixamos nossos enfermos para trás, à mercê da própria morte. Pois bem, com a autoridade um potencial suicida (vá lá, que autoridade é louvável em nossa sociabilidade) acho que vale dizer para o mundo que o que ainda fazemos com os que têm a psique fraturada, no máximo, é lançarmos uma corda e dizermos, “ergam-se com suas próprias forças”. Espero que a frase entregue o sentido da desesperança.

Temos subestimado muito o desespero, em nossa civilização. Com ele também, a desesperança. Já vi especialista reduzindo que suicidas se matam por que se equivocam ao supor a morte é uma solução para seus problemas. Uma coisa muito idiota de se ouvir, principalmente por alguém que suponha dizer algo inteligente. E as dores psíquicas? Como você explica para uma dor que ela deve cessar gentilmente?

Na natureza, aquela da qual nos apartamos covardemente, sabemos de situações em que presas comem as próprias patas, caso suas opções sejam se devorar ou serem mortas. Existem diferenças excruciantes entre morrer, e se matar. Quem não é capaz de entender que se matar é um antídoto para as indecentes formas de mortes sutis e indiferentes, deveria nos poupar de suas leviandades. A tortura psíquica a que estamos expostos, não é uma ilusão da nossa psique, nem se resolve apenas porque sabemos dela.

Negligenciamos também a eutanásia, com ela, a constatação diante da decrepitude, ou falência progressiva e paulatina.

Enquanto pregamos bestamente a valorização da vida, semeamos, cultivamos e até produzimos enxertos de morte morrível pelo desespero. As escutas aos suicidas são, hoje, a única resposta que tem efetivamente salvado vidas. Mas ainda tratamos a questão como um problema deles. Nos recusamos a aceitar que o que somos nós é o que garante o que são eles.

Louvo incansavelmente a solidariedade da escuta, mas isso é insuficiente. Por enquanto temos nos recusados a ouvir e entender os clamores das mortes, que não são poucos.

Seria um bom começo entendermos que cada comprimido de antidepressivo, antipsicótico ou frase de um terapeuta industrial comportamental, que são produzidos, pode representar um prego no caixão de um suicida. Esses recursos negam a validade das dores, afirmando que não é o que está fora que massacra o que está dentro. Ou seja, o suicídio é uma resposta alucinada de alguém incompetente para de lidar com as próprias dores.

Produzimos ciladas civilizatórias e os que desabam em suas garras possuem apenas o argumento da morte sobre ela mesma. A dor autoinfligida ainda é, para alguns, a única alternativa contra uma determinação da dor pelo outro às vezes certo, às vezes indefinido, explícita, crua e eloquente.

Por que armamos ciladas? Por que produzimos mortes industrializadas e embaladas graciosamente. E por que a maioria de nós é capaz de virar a cara e dizer que essas mortes estão apenas nas cabeças das nossas vítimas.

Vós que sentis dores psíquicas, intangíveis, abandonais todas as esperanças. Dos nossos doutores e remédios, nada temos a vos oferecer.

Pense nisso, um dia por aí, quando lhe sobrar tempo e estiver dizendo que se solidariza com a prevenção ao suicídio.

E a nós outros, só posso dizer, cuidem-se, não desperdicem frestas e desvãos de graciosidade e alegria. Tentem conhecer por onde transitam suas dores, para que elas não lhes surpreendam irresistivelmente.

Nada mais. Desce o pano.