sexta-feira, 20 de março de 2015

Desfile de gente chique

                      A base do fascismo, do preconceito e da intolerância é a desinformação.
Renato Russo

Charge: Ivan Cabral
As manifestações do dia 15 de março foram democráticas. Esse é meu melhor esforço para não desmerecer pessoas conhecidas e amigos que lá estiveram. Não fosse por esses, não me incomodaria em dizer com maior contundência de que, efetivamente, se tratou.
Apontada a concessão, é forçoso circunstanciar o termo democracia. Em primeiro lugar, numa democracia cabem, inclusive, manifestações antidemocráticas.
Em segundo lugar, foram democráticas em proporção direta à precária democracia em vigor no país. Convém advertir, que, para quem é de esquerda, trata-se basicamente de um arremedo de democracia (democracia para privilegiados, para os demais, o “apartheid”).
Dito de outra forma, o que é “festa da democracia” para a maioria dos manifestantes é pouco mais que um deslumbramento juvenil, sob a perspectiva daqueles que forjaram a recente democratização do país com suor, sangue e memória (existem os “órfãos do PT”, contra ou a favor do lulismo, mas a conversa com esses é em outro nível).
Setores, em grande medida, estranhos à democracia. Muito pouco afeitos ao respeito ao direito e liberdade do outro. O pais que querem "de volta" é um Estado com mais exceções que o atual (inclusive na corrupção), que expropriou direitos e liberdades de todos os que não se subordinaram ao regime de força. Não é democracia.
Ao contrário, é um país que superamos a custo das vidas de alguns e ao garroteamento e tutela das esperanças de muitos.
No fim das contas, o que vimos foi a marcha contra os direitos das empregadas domésticas, contra os que saíram da faixa do consumo de subsistência para alcançar bens que dignificam suas vidas, ainda que dentro de uma sociedade de consumo. Isso só é supérfluo para os que nunca sentiram falta desses ítens. A esquerda programática não defende a miséria generalizada e sim a riqueza distribuída, e nesse aspecto fazem sentido as bandeiras anticomunistas. Porque a manifestação foi a defesa dos privilégios de uma parcela da sociedade ao custo da miséria de maiorias, até então, marginalizadas e excluídas.
Embora tenhamos informação de que a adesão à intervenção militar não tenha sido a tônica principal dos manifestantes, faz todo o sentido que esse segmento se expresse naquele espaço. Pois o outro segmento que vai às ruas não admitiria sua presença nem mesmo por engano.
E isso não ocorre por acaso. A defesa (ou reivindicação) da truculência estatal institucionalizada descende diretamente do estado policial que criminalizava lutadores e pobres em favor dos donos do poder e, via de regra, com o silêncio sorridente desse mesmo segmento que ali se manifestava. Essa face do Estado não apenas segue existindo como vai sendo aperfeiçoada, e a guerra civil contra pobres, pretos e brancos pobres como pretos cresce constantemente.
Chegamos assim à corrupção. Supostamente uma pedra de toque da manifestação. Por definição, diante das inúmeras bandeiras, palavras de ordem e reivindicações políticas (ou a flagrante ausência delas), o espaço político menos indicado para pautar a corrupção era justamente aquele.
Não se via defesa do financiamento público das campanhas, engavetada pelo mesmo ministro que às altas da madrugada se levanta para soltar um dos personagens mais corruptos da história recente do país.
Como pode, a massa que clama pelo combate à corrupção, não reconhecer o vínculo elementar entre as doações dos grandes grupos econômicos e as práticas viciadas em relação aos partidos e governos?
Igualmente flagrante é a focalização em apenas um dos episódios envolvendo a corrupção no país e em uma única esfera de governo. No caso de São Paulo foi sintomático que a manifestação deixasse de mencionar o propinoduto envolvendo a construção do Metrô. Esse silêncio não pode ter sido acidental. O que foi constatado por um dos institutos de pesquisa que identificou uma maioria absoluta de eleitores do tucanato na manifestação.
Outro episódio definidor diz respeito a uma faixa solitária e quase abandonada em Brasília que acusava a “doutrinação comunista” de Paulo Freire. Apesar de isolada, é bastante emblemática do conjunto das manifestações.
Especialmente para esse segmento que foi às ruas não é relevante a escandalosa superficialidade de suas preocupações, intenções e bandeiras. É resultado direto da educação cultivada no país ao longo dos anos de chumbo que pregava obediência aos senhores, intolerância com a divergência e a exclusão dos injustiçados. A educação, moral e cívica dos exploradores sobre os explorados.
Suponho que Paulo Freire só não foi amaldiçoado plenamente pelo conjunto da manifestação por mera ignorância dos próprios antecedentes históricos. Quem não conhece, ou não aspira à liberdade, acha que todo mundo se conforma (ou deveria) com os grilhões.
A educação libertária defendida convicta e apaixonadamente por Paulo Freire é o melhor e principal antídoto para manifestações com a magnitude dos equívocos que vimos desfilar nesse 15 de março.
Raciocínio comum à expressiva maioria de manifestantes era associar o “combate à corrupção” à defesa do impeachment. Que triste negligência política e histórica.
O centro das denúncias que levaram ao pioneiro Impeachment de Collor era exatamente a corrupção. No entanto, o que assistimos de fato foi que a corrupção, muito ao contrário de ser detida, se aperfeiçoou desde então. O impeachment, portanto já foi testado e comprovou sua ineficácia como inibidor da corrupção.
Resgatando Paulo Freire, não é acidental que centenas de milhares de pessoas ganhem as ruas compelidas a associar as duas bandeiras.
Exatamente por desprezarem uma educação que ensine a pensar pela própria cabeça, e não apenas repercutir o que doutrinam os folhetins, é que aquelas pessoas não estabelecem nexo entre a própria mídia entusiasta das manifestações e os esquemas de corrupção que infectam o país de forma generalizada.
A corrupção é um componente sistêmico, trocar o mandatário implica apenas em mudar os beneficiários secundários. O principais são os corruptores, que também não constavam de nenhuma faixa nas ruas.
Um pouco mais de seriedade nessa discussão e estaria evidente que os piores efeitos da corrupção não se localizam nas estatais como a Petrobrás, em que o lucro, afinal, cobre os valores da gatunagem. Os tentáculos da corrupção são muito mais nocivos, e, às vezes, fatais, na área dos serviços sociais, demolindo a saúde, deturpando a educação, violentando a segurança. Esses sim, oriundos diretamente dos impostos pagos até pelo mendigo que compra cachaça pra esquentar os ossos no frio das metrópoles.
Mas os usuários que dependem exclusivamente dos serviços públicos não eram os que estavam nessa manifestação. Portanto, a pior corrupção tampouco interessava aos alegres manifestantes.
Uma triste conclusão assombra, então, os ânimos dos manifestantes. Embora tenham sido instados a ir às ruas para lutar soberanamente contra corrupção e pelo impeachment, vulgo, terceiro turno, sua escassa vocação democrática os leva a caçar gato quando lhes foi dito que pegariam lebre.
A gama de problemas apontados em suas reivindicações, ao menos as sensatas, não se conquistaria apenas pelos trâmites institucionais vigentes. Não é por outra razão que comunistas falam em revolução. Parte das mazelas que detectamos na prática política atual não se alteram sem demolir as bases que sustentam esse modelo. São inerentes a ele.
Muito diferente do que supunham expressar os manifestantes, o que nós assistimos foi tão somente uma marcha de ressentidos e reacionários, que faziam a defesa do passado, que caducou e que deveria estar muito bem sepultado. Uma marcha que caberia melhor como um cortejo fúnebre.
Como querem alguns, o da democracia.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Janot e Zavacski salvarão o país dele mesmo?!

 Festa dos loucos.
A de baixo é de Pieter Bruegel,
“o Velho”,(1525 — 1569).
A de cima é um arremedo nosso mesmo.
 A mídia que cobra apuração da corrupção é tão corrupta quanto os piores dentre os demais envolvidos. Vladimir Safatle acertou em cheio quando comparou a situação atual do país ao filme M, o Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang. No entanto, convém incluir a mídia no enredo. O tucanato sozinho, é muito pouco capaz de incidir no cenário do país. São zumbis mantidos em animação pela mídia que carece de fanfarrões ao estilo de seus próceres venerados, aqueles “analistas” capazes de mentir de maneira mais senhorial, raivosa e deslavada e que também só sobrevivem porque essa mídia precisa de urubus venais. Vale lembrar que praticamente todo o campo reacionário do país apostou em Aécio.
Surgiu ultimamente um ex-roqueiro que transmigrou a alma para um subjornalista protofilósofo, mas sua acentuada vaidade não admite ser títere para uma platéia de tolos reacionários. Suas intenções destina-se a altos talões, como ficou comprovado na prática.
Resta para a mídia um único prócer ligado aos gorilas de farda, mas é um pateta arrisco que pode, com a mesma verve que ataca qualquer lampejo progressista, demolir os escombros sobre os quais a mídia se equilibra.
Essa introdução condiz com o universo em que habita a mídia.
No que sobrou de um país de existência em paralelo, e que tenta sobrevier a um governo cada vez mais surpreendente subalterno ao caos político, parecem despontar o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot e o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Teori Zavascki. Homens de estirpe distintas, mas aparentemente com um esteio comum. Avessos à espetacularização da corte jurídica.
Pessoalmente eu não os destacaria como personagens, mas a história recente do país me obriga a reafirmar como “nobre” a atitude daqueles que levam mais a sério suas tarefas do que a bajulação proverbial dos alcoviteiros de plantão.
Um inominável ex-ministro instalou na corte suprema um grau tão espantoso de ficção sensacionalista que alguns anos serão necessários para que o STF restaure em si alguma dignidade republicana. Por enquanto o profissional judicante em maior destaque no país sobrevive dos despojos verborrágicos deixados pelo ex-presidente do STF.
Entendo o apelo passional da sociedade sobre as demandas judiciais. Fazem parte do contexto democrático republicano. Porém o que vivemos no país é uma metástase sensacionalista que pode condenar nossa incipiente democracia a uma escalada tirânica que não servirá, nem mesmo, aos seus incautos patrocinadores.
A instabilidade institucional não elege a priori os oportunistas que a tomarão de assalto. Caso esse rumo não seja revertido, serão surpreendidos tanto os raivosos, quanto os desavisados.
Parece que caberá a Janot e Zasvascki restaurar um necessário anticlimax institucional, não como desdém aos justos apelos da sociedade, mas porque o destempero a que a mídia compele o país, além de levantar poeira sobre suas próprias falcatruas, lança toda a sociedade a um desterro democrático perigoso. E não me refiro a mais uma das quarteladas recorrentes na história do país.
Assistimos, um tanto quanto abestalhados, o desenvolvimento de um fundamentalismo de vertente torpe e anti-humana. Recém, lançaram de maneira espetacular seus “gladiadores”. Imagine-se inaugurarem no país uma sucursal do Estado Islâmicos que possui direção de fotografia e arte para suas carnificinas? Em vez de pão e circo, apenas sangue e lágrimas. Isso somado às inúmeras causas reacionárias são receita latente para um obscurantismo inusitado em nossa história.
São várias as armadilhas pseudodemocráticas que o país precisará desarmar para retornar ao rumo da democracia e, pelo menos, de um Estado Democrático de Direito. Aos camaradas socialistas, alerto que esse rumo não acrescenta um milímetro às nossas causas. Deixar de observar essa possibilidade pode levar o país a um estágio anterior até, à última investida autoritária, de um tipo talvez inédito em nossa história. E que nem a pior das conspirações foi capaz de pleitear. O Brasil pode estar à voltas de um período em que a terra é plana, o universo antropocêntrico, e titãs e ameças habitam céus e mares.


Em tempo: Diante de interpelações que recebo enquanto escrevo esse texto me ocorre que aparentemente uma parcela considerável das “pessoas politicamente esclarecidas” do país ainda não se deram conta do que é, como se dá e quem participa dos financiamentos das campanhas eleitorais desde que voltaram a ocorrer no país. É realmente surpreendente o “surto de lucidez” que estamos presenciando.