segunda-feira, 18 de outubro de 2021

E o assassinato doloso na Prevent Senior?

Démerson Dias



Capa da revista Superinteressante
de 2014

O Brasil é uma disfunção política no cenário mundial. Do tipo que, em saúde pública seria prontamente isolado e estudado para não contaminar o meio e se buscar profilaxia.

Há muito tempo a assimetria de ser uma das piores distribuição de riquezas, estando entre as dez, ou quinze maiores economias do mundo, já comprovava, de um lado a falência de país enquanto projeto democrático. E de outro, a vitória de uma burguesia nacional parasitária em enganar a tantos por tanto tempo.

“Pretos, pobres e brancos pobres como pretos” são presos por roubar galinha. Ou, na dúvida, podem ser alvejados por 80 tiros.

Já no caso da Prevent Senior, pelo menos uma vítima escapou da morte certa prescrita pela direção da seguradora de saúde. Uma advogada afirma que pelo menos 12 médicos corroboram a versão da vítima.

Na periferia, se um policial achar que um negro é suficientemente parecido com um meliante ele já é preso para averiguações, se não condenado a pena de morte, aplicada em rito sumário. Até o momento, nem o passaporte dos donos da Prevent Senior foram confiscados preventivamente. Vai saber se ainda estão no país.

Evidentemente as vozes da moral,  dos bons costumes e das pessoas de bem, advertiriam que trata-se de aguardar o devido processo legal.

Dentre uma infinidade de abusos de autoridade, Gilmar Mendes inventou uma razão inconstitucional para usurpar prerrogativas e impedir que Lula tomasse posse como ministro e, dessa forma, garantir que fosse preso. A justiça, quando quer "prende e arrebenta".

Se no extremo da barbárie judicial nós temos a lava-jato, já conhecemos, pelo menos um caso que se encontra no polo oposto, a barbárie da  injustiça.

Temos uma vítima salva por intervenção da família, profissionais atestando prática criminosa e pacientes comprovando a intenção do crime com os kits precoces.

Somado a isso, constatações sumárias de negligência dos órgãos que deveriam apurar ou prevenir o conluio criminoso, no popular, cúmplices ou coniventes.

É como se o Brasil estivesse fazendo turismo por um campo de concentração e ainda confabulasse candidamente se existe hipótese de um crime estar sendo cometido, ou se as pessoas estavam ali apenas figindo estarem sendo exterminadas.

A comparação com a principal “conquista” do nazismo é inevitável.

Bem entendido, nem se trata da realização de experimentos que, fatalmente levaram ao óbito enquanto são testadas as hipóteses científicas.

Pessoas foram assassinadas nos hospitais da Prevent Senior por que o cálculo atuarial da empresa discriminava qual era a curva de sinistralidade que comprometia o lucro da empresa. E utilizaram o maior desvario profilático das últimas décadas, porque era emocionante atender aos caprichos ensandecidos de um governante genocida.

A OAB deveria propor um termo de compromisso com seus administrados, todos advogados deveria se recusar a defender os donos daquela repartição nazista. Dessa forma, a eles caberia apenas um advogado dativo a quem estaria resguardado direito de aceitar sobre protesto.

Bolsonaro é um fascista, mas tem razão em um ínfimo aspecto nas idiotices que diz, ele incita ao crime, mas não obriga ninguém a cometê-lo.

Deveria ser enquadrado como mentor intelectual do crime. Profissionais que denunciaram poderiam ter penas atenuadas, ou alternativas, mediante acordo de delação.

Os donos da Prevent Senior deveriam ser submetidos a tratamento precoce em prisão de segurança máxima, até que uma falência múltipla de órgãos os liberasse da pena.
E os cúmplices diretos a serem arrolados e devidamente penalizados, são as associações médicas, Procuradores, promotores e todos os que uma vez cientificados, deixaram de atender a obrigação de denunciar e colocar em andamento uma apuração dos fatos.
Apuração na cidade de São Paulo, refere-se a órgãos do governo estadual estariam envolvidos no acobertamento da prática.
Tudo indica que será mais um episódio de descaso com criminosos venais sendo tratados como pessoas de bem.

Agora mesmo, uma empresa de notícias afirma que a Prevent Senior nem foi a entidade onde mais ocorreram óbitos, foi apenas a quarta em proporção de mortos. Não se sabe se quem escreveu, editou ou determinou essa abordagem vomitou, morreu, ou sofre de demência cívica. Também deveriam ser enquadrados como também como cúmplices, por distorcer evidências.

Se nem uma ação premeditada, ostensiva, e generalizada de prática de crime dolosa (intencional) pode ser alcançada pela mão coercitiva do Estado, o povo (sobretudo os parentes das vítimas) tem pleno direito de tomar nas próprias mãos a justiça.


domingo, 3 de outubro de 2021

Os comunistas precisam de nova ofensiva teórica

Démerson Dias

         Q
uando uma fração da direita brasileira faz contraposição mais consistente e contundente ao ensaio fascistóide do bolsonarismo do que o conjunto das esquerdas, nos deparamos com uma crise que vai além da práxis.

Contudo propor um debate sobre práxis nas esquerdas, particularmente nas esquerdas socialistas, implicaria inventariar contradições históricas que não caberiam nem mesmo num ensaio acadêmico. Além de desviar a intenção principal dessa reflexão.

A advertência de Lênin, “sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário”, nos dias de hoje não se aplica apenas a setores revisionistas do campo socialista. Ao invocar Lênin não o faço nos marcos de uma disputa vanguardista a respeito de quem possui a melhor teoria revolucionária.

A hipótese que pretendo trabalhar aqui é que, talvez, nossas práticas políticas sejam insuficientes, porque articulamos de forma insuficiente nossas teorias. E a profusão de teorias é inversamente proporcional à nossa capacidade de intervenção política, ao menos em termos de efetividade. Tampouco é suficiente afirmar que essa deficiência se deve apenas a setores iludidos com soluções eleitoralistas, posto que setores que denunciam o eleitoralismo não são mais bem-sucedidos que aqueles.

Por vezes, como desculpa, dizemos que o capitalismo é mais objetivo porque o foco primordial é o lucro. Além de imprecisa, é uma constatação incorreta. O capitalismo articula o modo de poder que exerce, e controla a forma primordial de mediação sobre a realidade.

Enquanto as esquerdas, basicamente, mimetizam a presunção de serem portadores de verdades absolutas. Ao fazê-lo abandonamos a política como possibilidade de encontros e construções comuns. Achamos que estamos disputando o poder político com a burguesia, apenas porque ela nos fez acreditar que, disputá-lo entre nós, é a forma eficaz de combatê-la.

O campo socialista, em termos mundiais, falhou em suas investidas basicamente porque não fomos capazes de escapar à sedução do poder estatal. Nisso não fomos melhores do que o capitalismo, mesmo com evidentes avanços históricos. Ainda assim, os que não foram capazes de conquistar a máquina estatal, tampouco conseguiram desarmar a forma política capitalista em suas próprias práticas cotidianas.

Nossa pretensão de universalidade não é apenas precária. Ignoramos o universo todo. Nossa análise da conjuntura internacional conta a história das opressões, não a dos oprimidos. Seguimos não dando voz a eles, porque determinamos como sua voz deve soar, notadamente em consonância com nossa visão de mundo.

E essa nossa visão de mundo é particular e autocêntrica. De certo modo, portanto, nós também praticamos uma forma disfarçada de opressão histórica, exigindo dos oprimidos que respondam apenas a partir das formas que consideramos válidas. Não por acaso, parcela majoritária das esquerdas exige que os oprimidos repliquem as formas políticas dos opressores.

Alguns setores das esquerdas conseguem ser críticos mais contundentes com experiências à esquerda do que são com a direita. Por esse diapasão, Mandela cedeu à forma de estado imposta pelos colonizadores. Cuba precisa ser democrática a partir da forma burguesa de exercício de poder. A China deve se vergar ao modelo civilizatório ocidental. Abominamos a Coreia do Norte porque a forma que ela encontrou para se proteger da influência do mundo externo foi criar uma versão esdrúxula de falanstérios vitorianos.

Setores do nosso ecossocialismo se apresentam como críticos do modelo extrativista, negando a cadeia alimentar e supondo o humano como espécie superior, não concorrente, coisa que pelo menos a natureza, desabona.


É possível encontrar sentido e razão em todas essas perspectivas.

Ocorre que importa pouco (na verdade não importa nada) a qualidade das nossas divergências, se as assumimos como se fossem verdades absolutas e intransponíveis. Ao fazê-lo, rompemos com a única força capaz de, efetivamente, superar o capitalismo, nossa diversidade e pluralidade.

Não por acaso, setores de vanguarda do capitalismo, ou de conciliação com ele, se fortalecem mais do que as esquerdas como críticos e profetas dos limites do neoliberalismo. Isso nada mais é do que o capitalismo se reciclando de mais uma de suas crises estruturais. Por via das dúvidas, alguns capitalistas mais aloprados já começam a providenciar o desembarque do planeta, através de nova corrida espacial.

O lixo que produzimos é tanto uma calamidade econômica, quanto desastre humanitário. No entanto, nos debatemos por discutir essas questões sem reconhecermos que o esgotamento do planeta é produto do antropoceno e não exclusivamente do capitalismo.

O “espírito científico” que busca vida em outros planetas é o mesmo que critica, mas produz e reproduz formas de extinção da vida no nosso.

Aliás, as diversas formas de terceirização e privatização do que deveria ser comum, produzem distorções que seguem no sentido contrário, ou ao avesso do que seria prudente, ou necessário. E são soluções técnicas e teóricas “superiores” de relações econômicas. Nossas críticas às formas de precarização e opressão não apostam em efetiva ruptura com a forma de mediação social autoritária.

A democracia como regime político é tutelada pelo “espírito acadêmico” em que qualquer hipótese é válida. Mas a realização de ideias no plano social não admite certos tipos de contradição, e o obscurantismo do reascenso fascista apenas demonstra o quão destrutiva é a tolerância democrática a ideias intolerantes.

Temos reivindicado a democracia mesmo que ela represente, para imensa parcela da humanidade, a coação sob a alça de mira de fuzis, infindáveis filas de miseráveis, famintos e desempregados. Mal nos damos conta de que não conseguimos diferenciar o tipo de democracia que defendemos daquela oferecida como fetiche pelo capitalismo.

E nos rebelamos quando o neoliberalismo confirma seu absoluto desprezo pelas formas liberais de democracia. Apelamos para que não maltrate a democracia tanto assim. Vamos prontamente salvar a democracia burguesa que é inimiga dos povos

No caso brasileiro, parte das esquerdas se comoveram com uma direita que, finalmente, compilou e expressou as maldades todas, sem qualquer filtro de civilidade.

Foi suficiente para que diversos setores das esquerdas entrassem numa espécie de catarse arrivista, como se, finalmente, tivéssemos a prova de que sempre estivemos certos.

Nos afogamos numa guerra de narrativas na qual o adversário nem sequer disfarça que seja mero expediente diversionista. E acabamos por achar que somos vitoriosos por construir os memes mais inspirados. Como se não fosse escancarado que este é um governo de piadas prontas. Basta acreditar no que dizem os próprios profissionais de comédia “stand up”.

Ainda assim, esse movimento maniqueísta não aciona em nós as incansáveis advertências dos mais importantes pensadores marxistas.

Cedemos a uma inócua disputa de narrativa que se presta mais a preencher lacunas em folhetins e embalar grupos de zap. Mas é miserável como forma de manifestação política emancipatória.

É preciso consolidar os consensos em torno do pensamento marxista, socialista, comunista, anarquista, libertário, inclusive categorizando tais vertentes, mas fundamentalmente, sinalizando nossos avanços políticos e teóricos.

O identitarismo não é uma deturpação capitalista, é sim a expressão do vácuo do que deixamos de ocupar. E quando denunciamos que sua parcialidade é alienação, não estamos enxergando o quanto nós mesmos deixamos tais setores a mercê de investidas autoritárias. Inclusive setores religiosos que saltaram da teologia da libertação para a teologia da prosperidade, sem que isso desperte em nós a percepção de que as condições objetivas se agravaram avassaladoramente, mesmo com todas nossas “conquistas civilizatórias” contra o dragão do neoliberalismo.

A ponto de que já existem hoje iniciativas dentro do capitalismo que são mais radicais na exigência dessas pautas do que as que conseguimos produzir em nossas fileiras. Alguns exemplos contundentes são Greenpeace e Humans Rights, médicos e jornalistas sem fronteira, que possuem inventário e intervenção mais sólida do que o conjunto das esquerda mundiais.

E ainda há os que negam, ou se surpreendem quando setores da direita capitalista brasileira (inclusive o judiciário, que é o instrumento mais reacionário numa república) são mais contundentes contra as desventuras fascistas do que praticamente todo o conjunto das esquerdas. Isso, e mais, quem anuncia que essa esquerda está esgotada como projeto civilizatório é acusado de celerado, ou inconsequente.

O capitalismo, nesses desvãos, é formalmente mais solidário do que os que se reivindicam porta-vozes do proletariado. Um capitalismo que jamais será humanizado, no entanto possui uma face, por vezes mais tolerante e includente do que o campo socialista consegue ser.

Preventivamente, preciso advertir que qualquer um que receba essas palavras como crítica direta não alcançou seu sentido ou intenção.

Marx traduziu com ninguém os sentidos do capitalismo. E os capitalistas aprenderam com ele, talvez mais do que os próprios marxistas.

Por vezes, os marxistas se aplicam a decifrar meandros da teoria econômica, sem se dar conta de que Marx produziu, sobretudo, uma crítica à economia política. E essa desatenção tem custado ao campo socialista, descompromisso com o que poderia vir a ser um estudo de campo e realidade, voltado à elaboração de uma economia marxista.

Ainda mais abrangente que uma economia marxista, uma política emancipatória frente ao capitalismo. Acusar o capitalismo de estado das experiências socialistas “reais” é tão improdutivo e inconsequente quanto reclamar que a destruição da camada de ozônio está aumentando a temperatura do planeta. Não basta constatar, é essencial fazer algo a respeito.

Da forma como agimos, transformamos o décimo primeiro postulado sobre Feuerbach numa profissão de fé, eternamente anunciada, mas nunca entendida o suficiente para se tornar ação efetiva.

Temos sido incapazes até mesmo de superar divergências entre nossas visões de mundo. Em que universo paralelo seria possível nos unirmos para construir uma prática solidária, se nem mesmo conseguimos fazer aproximações teóricas nas hermenêuticas marxistas.

Evidentemente não se trata de uma questão singela. A complexidade do pensamento marxiano suscita permanente redescoberta e em novos desdobramentos teóricos e políticos. Mas deveria ser evidente que Marx estava explicando o mundo capitalista para oferecer bases para transformá-lo, não para entendê-lo com maior acuidade.

Esse esforço coube aos capitalistas que o aplicaram de forma que socialista algum seria capaz de fazer. Por isso, inclusive, surgem leituras supostas, ou assustadoramente marxistas dentro do próprio pensamento capitalista.

O neoliberalismo é um exemplo consistente de utilização do instrumental de análise marxiano para estender ao máximo a capacidade de sobrevida do capitalismo a partir de intensas e extenuantes ressignificações de suas crises estruturais. A ponto de que prospera, por exemplo, no Brasil, em plena crise sanitária espetacular investida política de desmonte inclusive do sistema público de saúde.

Enquanto setores das esquerdas ainda tentam derrotá-lo no campo da economia política. E não se trata apenas de reconhecer que amplos setores das esquerdas seguem acreditando na governabilidade burguesa.

O fato é que não é possível derrotar o capitalismo dentro de seus próprios fundamentos e subjetividades. É preciso ir muito além e entender que negar o capitalismo, em hipótese alguma, pode ser confundido com emancipação. Estamos exauridos justamente pela negação maniqueísta do capitalismo.

Mais do que afirmar o novo, cabe aos comunistas afirmar o básico e o comum. Não como mera denúncia dos resultados da opressão. Mas como afirmação a partir dos sujeitos revolucionários, ou seja, nos cabe afirmar que "mundo novo'' é esse que irá emancipar a sociedade do capitalismo.

Nossas expressões de poder, desde os estados constituídos, até nossas práticas em organizações sociais, sindicais, partidos, não vão além das expressões que o próprio capitalismo prescreve.

Mesmo quando nos anunciamos como libertários, insinuamos uma liberdade que não enxerga além da revolução francesa. Aquela não é a mesma liberdade que cabe a sujeitos históricos, pertence a um território de liberdade coletivista, como aventou a Comuna, mas não emancipatória, muito menos que seja comum por incluir a todos.

Ainda nos apegamos a um ideal humano iluminista. Como se o iluminismo não fosse uma espécie de reserva moral do capitalismo. Mesmo admitindo que não há problema em ceder por simpatia, ou nostalgia, ao que preconiza o iluminismo, convém ter em mente que a ruptura com o capitalismo está fora do alcance de sua visão de mundo.

Faria sentido supor que precisamos de um novo iluminismo? Talvez, mas o novo não pode ser o velho reformado. O capitalismo está esgotado, mas não conseguimos parir seu sucessor, embora a humanidade esteja prenhe de certezas sobre qual futuro não queremos.

Não se trata mais apenas de deter o capitalismo, mas de desarticular a barbárie na qual já estamos imersos. É possível até, que a própria crítica ao capitalismo seja obsoleta diante do desafio que é descobrir qual outro mundo é efetivamente possível, não como solução para a barbárie, mas como reversão das formas insustentáveis de economia, política e mesmo percepção da realidade.

Evidentemente, podemos recusar destruir nossas ilusões políticas. Mas sem isso jamais conseguiremos construir uma escapatória para a enrascada em que já estamos plenamente metidos. E afundando.


Pobres, resistência ou autonomia?

Démerson Dias*


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fonte: pinclipart
Desde o final da década de 70 acompanho os movimentos sociais no Brasil. E a partir de 89 fiz parte do "mundo sindical” e conheci de perto as organizações sindicais e movimentos sociais. Fiz parte das coordenações de iniciativas como o Fórum Social Mundial e do Jubileu Sul, em especial nas lutas contra a ALCA, tratado de “livre comércio”.

Não demorou muito para compreender que o movimento sindical, que cresceu no combate à ditadura de forma valorosa, se inseriu num contexto de validação do capitalismo. Como setor mais organizado e com mais recursos no campo das lutas sociais, acabou subordinando outras iniciativas à sua visão de mundo. Minha percepção, mesmo sendo parte deste segmento, é que o sindicalismo se tornou uma espécie de aristocracia dos movimentos sociais.

E esse jeito de ver o mundo definiu a forma como o conjunto das esquerdas combativas pensam a transformação da realidade.

Não vou entrar no debate sobre a distinção principal ocorrida nas esquerdas após a superação da ditadura de 64. Com o bipartidarismo, todas as esquerdas estavam abrigadas no MDB. Com a chamada redemocratização, o setor da esquerda da ordem ou permaneceu no PMDB, ou fundou o PSDB. A esquerda combativa, basicamente migrou para o PT e o PDT brizolista. O PSB naquele período compôs com essa esquerda. Infelizmente todas essas siglas acabaram compondo mais tarde a “esquerda da ordem”, termo utilizado por Florestan Fernandes para designar uma esquerda que não tem uma crítica radical à forma como a burguesia conduz o estado brasileiro.

Esse processo afetou todas as pautas sociais.

A ausência de uma crítica sobre a qualidade da democracia impediu as esquerdas de entenderem que não faz sentido afirmar que existe democracia no Brasil quando “pretos, pobres e brancos pobres como pretos” existem fora das margens da civilidade. E não apenas esses, mulheres, LGBTQIA+, também existem num patamar sub civilizado, por mais conquistas que tenham alcançado. E o assassinato permanente de todos esses segmentos é a prova que a “civilidade democrática” é inferior à anunciada “pujança” da nossa democracia. O Brasil vive praticamente um projeto de extermínio de populações que o “sistema” não tem interesse em incorporar, com suas identidades, potencialidades, virtudes e necessidades.

É mais ou menos como num recente jantar com um ex-presidente em que se faz uma crítica cômica e superficial ao atual governante fascista, mas todos os presentes, homens brancos, velhos e velhacos, de alguma forma, se beneficiam desse projeto político que está custando ao país, desnecessariamente, a pior crise sanitária da história.

Outro fator igualmente grave é o contexto jurídico e policial. Meio milhão de pessoas, em sua maioria pretos, compõem a população carcerária brasileira. E metade deles está preso de forma irregular, sem que os trâmites legais tenham sido cumpridos devidamente.

Fato ainda mais estarrecedor nessa mesma área da democracia, no Brasil não existe formalmente a pena de morte, mas isso só vale para brancos e burgueses. Pretos e pobres são executados sumariamente pelas forças que, na retórica, deveriam garantir a vida. 

A prova de que não existe disposição de democratizar a justiça no país é a tentativa de se aprovar o “excludente de ilicitude”, que diz que basta ao policial dizer que matou alguém porque se assustou, para que não seja penalizado.

Nesse cenário, as esquerdas, inclusive as da ordem, mas não apenas elas, sinalizam para esses setores “fora da ordem” que a solução para eles é fazerem luta de resistência.  Eleger políticos progressistas e apostar em políticas assistenciais ou que se limitem a alcançar o que a burguesia permitir.

Ou ainda, se colocarem como polo passivo de iniciativas assistenciais do estado e de entidades que diminuam a penúria, e promovam uma inclusão subordinada.

O efeito concreto dessa lógica política é que recolhemos as migalhas que caem da mesa do banquete burguês. E brigamos entre nós para ver quem consegue garantir a própria subsistência.

Na pauta econômica, a esquerda da ordem convoca os pobres ao empreendedorismo. Nova roupagem da velha meritocracia. Um debate arcaico que é incapaz de se contrapor à religião do trabalho.

Levando em conta a violenta derrota da luta armada, as esquerdas se omitiram de analisar a guerra civil que o estado patrocina contra as populações já excluídas e marginalizadas. E repudiam quando os setores que morrem pelas mãos da “lei e da ordem” expressam sua resistência com discursos que reproduzem essa violência. Nem denunciar a violência expressando raiva é permitido às vítimas.

E esse é o contexto de marginalização do RAP e Hip Hop, aceito como manifestação cultural, mas não como discurso político. É evidente que o mercado cultural vai tentar, a todo custo transformar, o funk em pura ostentação, que estigmatiza homens, mulheres e pobres como membros de gangues, ou objetos sexuais. E faz isso para tentar calar o grito e a manifestação profunda e consistente de crítica social daqueles que deram voz à realidade da exclusão política.

O que falta às esquerdas é entender que existe um potencial de protagonismo revolucionário nesses setores. Fica encoberto pelo apego à institucionalidade que se existe um “lugar de fala” da revolução brasileira, ele está mais próximo das populações marginalizadas, do que dos gabinetes e instituições.

Tenho enorme respeito pelas iniciativas políticas da esquerda, mas o termo excluído ameniza a ação premeditada da “civilização” que impõe a exclusão (exclusão da ordem, portanto, à sua margem), com forma de selar o destino de populações inteiras.

Bolsonaro patrocina a morte de 600 mil pessoas e é protegido pelo sistema.

Quem assalta e mata para comprar a pedra de crack é “a escória da humanidade”. E não pode nem mesmo ser alimentado pelo Padre Julio Lancellotti.

Não se trata de romantizar a violência dos excluídos, mas entender que o presidente tem diante de si a maior empresa do país que é o estado, pode eleger a política que achar conveniente. Mas quem luta pela sobrevivência tem muito menos poder de escolha, às vezes não tem escolha alguma.

Acho que precisamos inverter toda a lógica.

É política de estado que esses setores excluídos não tenham acesso a recursos mínimos de civilidade. De diversas formas, a organização política e social do país tenta perpetuar, para o povo pobre, um modo de existência que seja o mais próximo possível da realidade das senzalas.

Para não reconhecer o direito à cidadania aos descendentes dos escravizados, a “civilização brasileira” preferiu trazer imigrantes livres da Europa para substituir a mão de obra sequestrada da África.

Não precisa ser assim

Mas o desenvolvimento das forças produtivas oferece alternativas que permitem avançar na pauta social de forma que as esquerdas ainda não reconheceram.

O estado já não existe para as populações excluídas, ou melhor, o que existe é repressor e assassino. Mas o seu vácuo está lá e é apropriado, por atores sociais diversos, inclusive o crime organizado que, em alguns casos chega a garantir o acesso à medicação e condições menos precárias de subsistência. 

Além do básico que é oferecer emprego, pertencimento e identidade para inúmeros jovens rejeitados pela civilização.

O que tem faltado às perspectivas de esquerda é entender que é possível atuar para alavancar o protagonismo, inclusive político dessas populações.

Em vez de oferecer medidas assistencialistas, é possível promover autonomia. Existe uma economia de subsistência nos territórios excluídos. Durante a pandemia, associações de favelas demonstraram consciência política e organização econômica para administrar a crise humanitária. Somado à ação do SUS, essas iniciativas garantiram que a calamidade não fosse ainda maior.

Na própria esquerda existem formulações sobre um modelo de organização sócio econômica conhecida como economia solidária.

Os setores excluídos já estão à deriva em relação ao mundo civilizado. No entanto, o que cria riqueza é o trabalho, não o capital. O que está faltando para esses setores é aprenderem a funcionar como coletividade política autônoma. E nos dias de hoje isso pode estar ao nosso alcance.


Démerson Dias é funcionário público do judiciário federal (TRE-SP) e foi dirigente sindical nessa categoria.