domingo, 3 de outubro de 2021

Pobres, resistência ou autonomia?

Démerson Dias*


resistlikeflower
fonte: pinclipart
Desde o final da década de 70 acompanho os movimentos sociais no Brasil. E a partir de 89 fiz parte do "mundo sindical” e conheci de perto as organizações sindicais e movimentos sociais. Fiz parte das coordenações de iniciativas como o Fórum Social Mundial e do Jubileu Sul, em especial nas lutas contra a ALCA, tratado de “livre comércio”.

Não demorou muito para compreender que o movimento sindical, que cresceu no combate à ditadura de forma valorosa, se inseriu num contexto de validação do capitalismo. Como setor mais organizado e com mais recursos no campo das lutas sociais, acabou subordinando outras iniciativas à sua visão de mundo. Minha percepção, mesmo sendo parte deste segmento, é que o sindicalismo se tornou uma espécie de aristocracia dos movimentos sociais.

E esse jeito de ver o mundo definiu a forma como o conjunto das esquerdas combativas pensam a transformação da realidade.

Não vou entrar no debate sobre a distinção principal ocorrida nas esquerdas após a superação da ditadura de 64. Com o bipartidarismo, todas as esquerdas estavam abrigadas no MDB. Com a chamada redemocratização, o setor da esquerda da ordem ou permaneceu no PMDB, ou fundou o PSDB. A esquerda combativa, basicamente migrou para o PT e o PDT brizolista. O PSB naquele período compôs com essa esquerda. Infelizmente todas essas siglas acabaram compondo mais tarde a “esquerda da ordem”, termo utilizado por Florestan Fernandes para designar uma esquerda que não tem uma crítica radical à forma como a burguesia conduz o estado brasileiro.

Esse processo afetou todas as pautas sociais.

A ausência de uma crítica sobre a qualidade da democracia impediu as esquerdas de entenderem que não faz sentido afirmar que existe democracia no Brasil quando “pretos, pobres e brancos pobres como pretos” existem fora das margens da civilidade. E não apenas esses, mulheres, LGBTQIA+, também existem num patamar sub civilizado, por mais conquistas que tenham alcançado. E o assassinato permanente de todos esses segmentos é a prova que a “civilidade democrática” é inferior à anunciada “pujança” da nossa democracia. O Brasil vive praticamente um projeto de extermínio de populações que o “sistema” não tem interesse em incorporar, com suas identidades, potencialidades, virtudes e necessidades.

É mais ou menos como num recente jantar com um ex-presidente em que se faz uma crítica cômica e superficial ao atual governante fascista, mas todos os presentes, homens brancos, velhos e velhacos, de alguma forma, se beneficiam desse projeto político que está custando ao país, desnecessariamente, a pior crise sanitária da história.

Outro fator igualmente grave é o contexto jurídico e policial. Meio milhão de pessoas, em sua maioria pretos, compõem a população carcerária brasileira. E metade deles está preso de forma irregular, sem que os trâmites legais tenham sido cumpridos devidamente.

Fato ainda mais estarrecedor nessa mesma área da democracia, no Brasil não existe formalmente a pena de morte, mas isso só vale para brancos e burgueses. Pretos e pobres são executados sumariamente pelas forças que, na retórica, deveriam garantir a vida. 

A prova de que não existe disposição de democratizar a justiça no país é a tentativa de se aprovar o “excludente de ilicitude”, que diz que basta ao policial dizer que matou alguém porque se assustou, para que não seja penalizado.

Nesse cenário, as esquerdas, inclusive as da ordem, mas não apenas elas, sinalizam para esses setores “fora da ordem” que a solução para eles é fazerem luta de resistência.  Eleger políticos progressistas e apostar em políticas assistenciais ou que se limitem a alcançar o que a burguesia permitir.

Ou ainda, se colocarem como polo passivo de iniciativas assistenciais do estado e de entidades que diminuam a penúria, e promovam uma inclusão subordinada.

O efeito concreto dessa lógica política é que recolhemos as migalhas que caem da mesa do banquete burguês. E brigamos entre nós para ver quem consegue garantir a própria subsistência.

Na pauta econômica, a esquerda da ordem convoca os pobres ao empreendedorismo. Nova roupagem da velha meritocracia. Um debate arcaico que é incapaz de se contrapor à religião do trabalho.

Levando em conta a violenta derrota da luta armada, as esquerdas se omitiram de analisar a guerra civil que o estado patrocina contra as populações já excluídas e marginalizadas. E repudiam quando os setores que morrem pelas mãos da “lei e da ordem” expressam sua resistência com discursos que reproduzem essa violência. Nem denunciar a violência expressando raiva é permitido às vítimas.

E esse é o contexto de marginalização do RAP e Hip Hop, aceito como manifestação cultural, mas não como discurso político. É evidente que o mercado cultural vai tentar, a todo custo transformar, o funk em pura ostentação, que estigmatiza homens, mulheres e pobres como membros de gangues, ou objetos sexuais. E faz isso para tentar calar o grito e a manifestação profunda e consistente de crítica social daqueles que deram voz à realidade da exclusão política.

O que falta às esquerdas é entender que existe um potencial de protagonismo revolucionário nesses setores. Fica encoberto pelo apego à institucionalidade que se existe um “lugar de fala” da revolução brasileira, ele está mais próximo das populações marginalizadas, do que dos gabinetes e instituições.

Tenho enorme respeito pelas iniciativas políticas da esquerda, mas o termo excluído ameniza a ação premeditada da “civilização” que impõe a exclusão (exclusão da ordem, portanto, à sua margem), com forma de selar o destino de populações inteiras.

Bolsonaro patrocina a morte de 600 mil pessoas e é protegido pelo sistema.

Quem assalta e mata para comprar a pedra de crack é “a escória da humanidade”. E não pode nem mesmo ser alimentado pelo Padre Julio Lancellotti.

Não se trata de romantizar a violência dos excluídos, mas entender que o presidente tem diante de si a maior empresa do país que é o estado, pode eleger a política que achar conveniente. Mas quem luta pela sobrevivência tem muito menos poder de escolha, às vezes não tem escolha alguma.

Acho que precisamos inverter toda a lógica.

É política de estado que esses setores excluídos não tenham acesso a recursos mínimos de civilidade. De diversas formas, a organização política e social do país tenta perpetuar, para o povo pobre, um modo de existência que seja o mais próximo possível da realidade das senzalas.

Para não reconhecer o direito à cidadania aos descendentes dos escravizados, a “civilização brasileira” preferiu trazer imigrantes livres da Europa para substituir a mão de obra sequestrada da África.

Não precisa ser assim

Mas o desenvolvimento das forças produtivas oferece alternativas que permitem avançar na pauta social de forma que as esquerdas ainda não reconheceram.

O estado já não existe para as populações excluídas, ou melhor, o que existe é repressor e assassino. Mas o seu vácuo está lá e é apropriado, por atores sociais diversos, inclusive o crime organizado que, em alguns casos chega a garantir o acesso à medicação e condições menos precárias de subsistência. 

Além do básico que é oferecer emprego, pertencimento e identidade para inúmeros jovens rejeitados pela civilização.

O que tem faltado às perspectivas de esquerda é entender que é possível atuar para alavancar o protagonismo, inclusive político dessas populações.

Em vez de oferecer medidas assistencialistas, é possível promover autonomia. Existe uma economia de subsistência nos territórios excluídos. Durante a pandemia, associações de favelas demonstraram consciência política e organização econômica para administrar a crise humanitária. Somado à ação do SUS, essas iniciativas garantiram que a calamidade não fosse ainda maior.

Na própria esquerda existem formulações sobre um modelo de organização sócio econômica conhecida como economia solidária.

Os setores excluídos já estão à deriva em relação ao mundo civilizado. No entanto, o que cria riqueza é o trabalho, não o capital. O que está faltando para esses setores é aprenderem a funcionar como coletividade política autônoma. E nos dias de hoje isso pode estar ao nosso alcance.


Démerson Dias é funcionário público do judiciário federal (TRE-SP) e foi dirigente sindical nessa categoria.


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