domingo, 3 de outubro de 2021

Os comunistas precisam de nova ofensiva teórica

Démerson Dias

         Q
uando uma fração da direita brasileira faz contraposição mais consistente e contundente ao ensaio fascistóide do bolsonarismo do que o conjunto das esquerdas, nos deparamos com uma crise que vai além da práxis.

Contudo propor um debate sobre práxis nas esquerdas, particularmente nas esquerdas socialistas, implicaria inventariar contradições históricas que não caberiam nem mesmo num ensaio acadêmico. Além de desviar a intenção principal dessa reflexão.

A advertência de Lênin, “sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário”, nos dias de hoje não se aplica apenas a setores revisionistas do campo socialista. Ao invocar Lênin não o faço nos marcos de uma disputa vanguardista a respeito de quem possui a melhor teoria revolucionária.

A hipótese que pretendo trabalhar aqui é que, talvez, nossas práticas políticas sejam insuficientes, porque articulamos de forma insuficiente nossas teorias. E a profusão de teorias é inversamente proporcional à nossa capacidade de intervenção política, ao menos em termos de efetividade. Tampouco é suficiente afirmar que essa deficiência se deve apenas a setores iludidos com soluções eleitoralistas, posto que setores que denunciam o eleitoralismo não são mais bem-sucedidos que aqueles.

Por vezes, como desculpa, dizemos que o capitalismo é mais objetivo porque o foco primordial é o lucro. Além de imprecisa, é uma constatação incorreta. O capitalismo articula o modo de poder que exerce, e controla a forma primordial de mediação sobre a realidade.

Enquanto as esquerdas, basicamente, mimetizam a presunção de serem portadores de verdades absolutas. Ao fazê-lo abandonamos a política como possibilidade de encontros e construções comuns. Achamos que estamos disputando o poder político com a burguesia, apenas porque ela nos fez acreditar que, disputá-lo entre nós, é a forma eficaz de combatê-la.

O campo socialista, em termos mundiais, falhou em suas investidas basicamente porque não fomos capazes de escapar à sedução do poder estatal. Nisso não fomos melhores do que o capitalismo, mesmo com evidentes avanços históricos. Ainda assim, os que não foram capazes de conquistar a máquina estatal, tampouco conseguiram desarmar a forma política capitalista em suas próprias práticas cotidianas.

Nossa pretensão de universalidade não é apenas precária. Ignoramos o universo todo. Nossa análise da conjuntura internacional conta a história das opressões, não a dos oprimidos. Seguimos não dando voz a eles, porque determinamos como sua voz deve soar, notadamente em consonância com nossa visão de mundo.

E essa nossa visão de mundo é particular e autocêntrica. De certo modo, portanto, nós também praticamos uma forma disfarçada de opressão histórica, exigindo dos oprimidos que respondam apenas a partir das formas que consideramos válidas. Não por acaso, parcela majoritária das esquerdas exige que os oprimidos repliquem as formas políticas dos opressores.

Alguns setores das esquerdas conseguem ser críticos mais contundentes com experiências à esquerda do que são com a direita. Por esse diapasão, Mandela cedeu à forma de estado imposta pelos colonizadores. Cuba precisa ser democrática a partir da forma burguesa de exercício de poder. A China deve se vergar ao modelo civilizatório ocidental. Abominamos a Coreia do Norte porque a forma que ela encontrou para se proteger da influência do mundo externo foi criar uma versão esdrúxula de falanstérios vitorianos.

Setores do nosso ecossocialismo se apresentam como críticos do modelo extrativista, negando a cadeia alimentar e supondo o humano como espécie superior, não concorrente, coisa que pelo menos a natureza, desabona.


É possível encontrar sentido e razão em todas essas perspectivas.

Ocorre que importa pouco (na verdade não importa nada) a qualidade das nossas divergências, se as assumimos como se fossem verdades absolutas e intransponíveis. Ao fazê-lo, rompemos com a única força capaz de, efetivamente, superar o capitalismo, nossa diversidade e pluralidade.

Não por acaso, setores de vanguarda do capitalismo, ou de conciliação com ele, se fortalecem mais do que as esquerdas como críticos e profetas dos limites do neoliberalismo. Isso nada mais é do que o capitalismo se reciclando de mais uma de suas crises estruturais. Por via das dúvidas, alguns capitalistas mais aloprados já começam a providenciar o desembarque do planeta, através de nova corrida espacial.

O lixo que produzimos é tanto uma calamidade econômica, quanto desastre humanitário. No entanto, nos debatemos por discutir essas questões sem reconhecermos que o esgotamento do planeta é produto do antropoceno e não exclusivamente do capitalismo.

O “espírito científico” que busca vida em outros planetas é o mesmo que critica, mas produz e reproduz formas de extinção da vida no nosso.

Aliás, as diversas formas de terceirização e privatização do que deveria ser comum, produzem distorções que seguem no sentido contrário, ou ao avesso do que seria prudente, ou necessário. E são soluções técnicas e teóricas “superiores” de relações econômicas. Nossas críticas às formas de precarização e opressão não apostam em efetiva ruptura com a forma de mediação social autoritária.

A democracia como regime político é tutelada pelo “espírito acadêmico” em que qualquer hipótese é válida. Mas a realização de ideias no plano social não admite certos tipos de contradição, e o obscurantismo do reascenso fascista apenas demonstra o quão destrutiva é a tolerância democrática a ideias intolerantes.

Temos reivindicado a democracia mesmo que ela represente, para imensa parcela da humanidade, a coação sob a alça de mira de fuzis, infindáveis filas de miseráveis, famintos e desempregados. Mal nos damos conta de que não conseguimos diferenciar o tipo de democracia que defendemos daquela oferecida como fetiche pelo capitalismo.

E nos rebelamos quando o neoliberalismo confirma seu absoluto desprezo pelas formas liberais de democracia. Apelamos para que não maltrate a democracia tanto assim. Vamos prontamente salvar a democracia burguesa que é inimiga dos povos

No caso brasileiro, parte das esquerdas se comoveram com uma direita que, finalmente, compilou e expressou as maldades todas, sem qualquer filtro de civilidade.

Foi suficiente para que diversos setores das esquerdas entrassem numa espécie de catarse arrivista, como se, finalmente, tivéssemos a prova de que sempre estivemos certos.

Nos afogamos numa guerra de narrativas na qual o adversário nem sequer disfarça que seja mero expediente diversionista. E acabamos por achar que somos vitoriosos por construir os memes mais inspirados. Como se não fosse escancarado que este é um governo de piadas prontas. Basta acreditar no que dizem os próprios profissionais de comédia “stand up”.

Ainda assim, esse movimento maniqueísta não aciona em nós as incansáveis advertências dos mais importantes pensadores marxistas.

Cedemos a uma inócua disputa de narrativa que se presta mais a preencher lacunas em folhetins e embalar grupos de zap. Mas é miserável como forma de manifestação política emancipatória.

É preciso consolidar os consensos em torno do pensamento marxista, socialista, comunista, anarquista, libertário, inclusive categorizando tais vertentes, mas fundamentalmente, sinalizando nossos avanços políticos e teóricos.

O identitarismo não é uma deturpação capitalista, é sim a expressão do vácuo do que deixamos de ocupar. E quando denunciamos que sua parcialidade é alienação, não estamos enxergando o quanto nós mesmos deixamos tais setores a mercê de investidas autoritárias. Inclusive setores religiosos que saltaram da teologia da libertação para a teologia da prosperidade, sem que isso desperte em nós a percepção de que as condições objetivas se agravaram avassaladoramente, mesmo com todas nossas “conquistas civilizatórias” contra o dragão do neoliberalismo.

A ponto de que já existem hoje iniciativas dentro do capitalismo que são mais radicais na exigência dessas pautas do que as que conseguimos produzir em nossas fileiras. Alguns exemplos contundentes são Greenpeace e Humans Rights, médicos e jornalistas sem fronteira, que possuem inventário e intervenção mais sólida do que o conjunto das esquerda mundiais.

E ainda há os que negam, ou se surpreendem quando setores da direita capitalista brasileira (inclusive o judiciário, que é o instrumento mais reacionário numa república) são mais contundentes contra as desventuras fascistas do que praticamente todo o conjunto das esquerdas. Isso, e mais, quem anuncia que essa esquerda está esgotada como projeto civilizatório é acusado de celerado, ou inconsequente.

O capitalismo, nesses desvãos, é formalmente mais solidário do que os que se reivindicam porta-vozes do proletariado. Um capitalismo que jamais será humanizado, no entanto possui uma face, por vezes mais tolerante e includente do que o campo socialista consegue ser.

Preventivamente, preciso advertir que qualquer um que receba essas palavras como crítica direta não alcançou seu sentido ou intenção.

Marx traduziu com ninguém os sentidos do capitalismo. E os capitalistas aprenderam com ele, talvez mais do que os próprios marxistas.

Por vezes, os marxistas se aplicam a decifrar meandros da teoria econômica, sem se dar conta de que Marx produziu, sobretudo, uma crítica à economia política. E essa desatenção tem custado ao campo socialista, descompromisso com o que poderia vir a ser um estudo de campo e realidade, voltado à elaboração de uma economia marxista.

Ainda mais abrangente que uma economia marxista, uma política emancipatória frente ao capitalismo. Acusar o capitalismo de estado das experiências socialistas “reais” é tão improdutivo e inconsequente quanto reclamar que a destruição da camada de ozônio está aumentando a temperatura do planeta. Não basta constatar, é essencial fazer algo a respeito.

Da forma como agimos, transformamos o décimo primeiro postulado sobre Feuerbach numa profissão de fé, eternamente anunciada, mas nunca entendida o suficiente para se tornar ação efetiva.

Temos sido incapazes até mesmo de superar divergências entre nossas visões de mundo. Em que universo paralelo seria possível nos unirmos para construir uma prática solidária, se nem mesmo conseguimos fazer aproximações teóricas nas hermenêuticas marxistas.

Evidentemente não se trata de uma questão singela. A complexidade do pensamento marxiano suscita permanente redescoberta e em novos desdobramentos teóricos e políticos. Mas deveria ser evidente que Marx estava explicando o mundo capitalista para oferecer bases para transformá-lo, não para entendê-lo com maior acuidade.

Esse esforço coube aos capitalistas que o aplicaram de forma que socialista algum seria capaz de fazer. Por isso, inclusive, surgem leituras supostas, ou assustadoramente marxistas dentro do próprio pensamento capitalista.

O neoliberalismo é um exemplo consistente de utilização do instrumental de análise marxiano para estender ao máximo a capacidade de sobrevida do capitalismo a partir de intensas e extenuantes ressignificações de suas crises estruturais. A ponto de que prospera, por exemplo, no Brasil, em plena crise sanitária espetacular investida política de desmonte inclusive do sistema público de saúde.

Enquanto setores das esquerdas ainda tentam derrotá-lo no campo da economia política. E não se trata apenas de reconhecer que amplos setores das esquerdas seguem acreditando na governabilidade burguesa.

O fato é que não é possível derrotar o capitalismo dentro de seus próprios fundamentos e subjetividades. É preciso ir muito além e entender que negar o capitalismo, em hipótese alguma, pode ser confundido com emancipação. Estamos exauridos justamente pela negação maniqueísta do capitalismo.

Mais do que afirmar o novo, cabe aos comunistas afirmar o básico e o comum. Não como mera denúncia dos resultados da opressão. Mas como afirmação a partir dos sujeitos revolucionários, ou seja, nos cabe afirmar que "mundo novo'' é esse que irá emancipar a sociedade do capitalismo.

Nossas expressões de poder, desde os estados constituídos, até nossas práticas em organizações sociais, sindicais, partidos, não vão além das expressões que o próprio capitalismo prescreve.

Mesmo quando nos anunciamos como libertários, insinuamos uma liberdade que não enxerga além da revolução francesa. Aquela não é a mesma liberdade que cabe a sujeitos históricos, pertence a um território de liberdade coletivista, como aventou a Comuna, mas não emancipatória, muito menos que seja comum por incluir a todos.

Ainda nos apegamos a um ideal humano iluminista. Como se o iluminismo não fosse uma espécie de reserva moral do capitalismo. Mesmo admitindo que não há problema em ceder por simpatia, ou nostalgia, ao que preconiza o iluminismo, convém ter em mente que a ruptura com o capitalismo está fora do alcance de sua visão de mundo.

Faria sentido supor que precisamos de um novo iluminismo? Talvez, mas o novo não pode ser o velho reformado. O capitalismo está esgotado, mas não conseguimos parir seu sucessor, embora a humanidade esteja prenhe de certezas sobre qual futuro não queremos.

Não se trata mais apenas de deter o capitalismo, mas de desarticular a barbárie na qual já estamos imersos. É possível até, que a própria crítica ao capitalismo seja obsoleta diante do desafio que é descobrir qual outro mundo é efetivamente possível, não como solução para a barbárie, mas como reversão das formas insustentáveis de economia, política e mesmo percepção da realidade.

Evidentemente, podemos recusar destruir nossas ilusões políticas. Mas sem isso jamais conseguiremos construir uma escapatória para a enrascada em que já estamos plenamente metidos. E afundando.


Um comentário:

Xi, francisquinho, deitaram a língua na jabuticaba!