segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Bem-vindo, ano velho

VERBERA (Vera Moshova • Rússia)
Por menos que tentemos exibir, os desalinhos do nosso tempo nos impõem um cotidiano estilhaçar de certezas.
Talvez não tenhamos mais o talento para dar alguma ordem ao caos, ou ainda, o caos é uma nova ordem desapercebida. Em qualquer das hipóteses, a realidade, nossa percepção e nossas pretensões, seguem em descompasso.
O que mais nos desconcerta é que para cada uma dessas três variáveis, supomos uma resposta distinta. Por essa razão estamos confusos.
O que sabemos sobre as coisas, o que gostaríamos que elas fossem e o que são em si mesmas parecem de espécies aversas em si.
A experiência recomenda um recuo cauteloso e, se possível, uma revisão crítica, mas aquelas distinções comprometem também nossa negação em relação à realidade, tendemos a enxergá-la sempre sob nossos pés, quando nós é que nos contorcemos sobre seus ritmos e disposições.
Os anos nunca são novos, apenas são. Existem como sucessão de algo que existe desde que pudemos contá-los, e alguns os contam em abundância milenar.
Mas gostamos de pensar que permanecemos, e o tempo se perfila e se curva aos nossos propósitos.
De fato, envelhecemos, enquanto o tempo se renova, porque segue. E todo novo ano seria velho, caso se detivesse na nossa contagem em retrospectiva.
Só nos renovamos com os anos se o passado for referência e nossa perspectiva repouse num futuro que parte do agora. E há quem considere que o presente, entre o que foi e o que será, ocorre a partir de uma distorção súbita, descontinuada e mágica. Como se tecida pelas nossas mais sadias pretensões.
O ano não quer ser novo. E se esperamos que, por si, o tempo nos renove e despeje dádivas, estamos atribuindo ao tempo algo que ele não possui, nem almeja.
A vocação para a renovação precisa estar adiante dos nossos votos e a disposição para mudar (melhorar?) o que temos tido ao longo dos anos deve embasar nossas perspectivas.
Do contrário, veremos apenas, chegar e passar, um ano que supomos novo, diante do qual estaremos, avidamente, exercendo e aprimorando nossa velhice. Nesse próximo período, que tenhamos disposição e sucesso em sermos nossa própria novidade sob a contemplação eterna do tempo.

sábado, 4 de março de 2017

A Dor Como Mercadoria



A Dor Como Mercadoria
Démerson Dias
Detalhe de Guernica - Picasso - 1937
 Ana Victoria Rodrigues Silva, 6 anos, moradora da favela da Vila Prudente é baleada, e há controvérsias sobre a recusa de policiais ali presentes em prestar socorro à menina[1]. Talvez os tiros que a vitimaram tenham partido desses policiais.
João Victor Souza de Carvalho, de 13 anos, foi morto após abordagem de seguranças de uma loja Habib’s[2], ao invés de prestarem socorro, os seguranças o arrastaram e jogaram no chão “feito um pacote flácido”. Talvez o menino tenha sido assassinado pelo segurança.
Um jogador de futebol condenado por ser mandante do estrangulamento, assassinato, esquartejamento e ocultação do corpo de Eliza Samúdio está em liberdade, não por progressão da pena, mas porque o Judiciário veio em seu socorro atendendo a alegação de que a morosidade do próprio judiciário está produzindo uma injustiça nos termos da lei. Talvez valha a pena mencionar que Eliza era atriz de filme pornô e estaria, segundo seus assassinos, chantageando o nobre esportista em razão de um filho de ambos. Há quem considere que em um enredo como esse e diante do currículo da vítima, o crime seria justificável.
Para alguns a pena de morte é sumária e dispensa até mesmo culpa. Para outros cabem recursos e vigilância contra eventuais danos ou deslizes formais. Ou como se diz, para um dos brasis todos são inocentes até prova em contrário. Para o outro, todos são suspeitos, culpados e as penas, inclusive a morte, são cumpridas imediatamente, via de regra os justiceiros estatais preferem aplicar de vez a pena irrevogável.
Não são apenas duas realidades sociais. São dois ordenamentos jurídicos distintos. Nos enganamos dizendo que a lei é descumprida em relação aos pobres, quando, em verdade, a lei para os pobres é a aplicação mais draconiana e extrema possível de qualquer ordenamento. O esportista está sendo solto porque é o que garante a lei a um “réu primário, com bons antecedentes”.
Pretos, pobres e brancos pobres como pretos e mulheres são assassinados porque nasceram culpados e seus antecedentes são sempre incriminadores e desprezíveis. Há um Brasil em estado de exceção permanente.
Essas são apenas algumas notícias colhidas nos últimos dez dias. Com pouca  “sorte” podemos encontrar conjunções trágicas em qualquer tempo na cobertura de morbidez funcional da mídia.
Uma canção da década de 70[3], dizia que "a dor da gente não sai no jornal". Hoje aparece, mas como espetáculo, como se fosse apenas mais um folhetim fictício. Existe uma exaltação ritualística da violência, narradores com voz impostada, dramaticidade ensaiada, cenas cinematograficamente dirigidas, toda essa mis-em-scene banaliza a dor e nos provoca, não a solidariedade, mas o alívio de não ter sido essa a nossa vez. A violência parece uma fatalidade, não uma decisão arbitrada pelos “de cima”.
Pessoas consomem morbidez e, dado o “ibope” parece que sentem prazer nisso. Talvez esbocem indignação, ou até desejo de vingança. Mas nada que possa contrariar os ditames da disseminação do ódio e do medo. Claro, do contrário, a mídia corporativa não apostaria nesse filão. Vendem dramas e dores como um estalo de chicote a nos lembrar que sabemos rugir.
A criminalidade é patrocinada em primeiro lugar pela escancarada iniquidade do país, é legitimada pela truculência e genocídio estatal. Ingênuo é achar que todos vão morrer dando graças ao sistema opressor. A violência na sociedade é basicamente reativa.
Não é que a criminalidade esteja na moda, está onde e como sempre esteve, a injustiça também. No entanto, não estamos mais próximos de dar um tratamento humanitário aos dramas da criminalidade do que estávamos há 30 anos.
Assim como o crime organizado beneficiou-se do convívio com a inteligência política que combateu, morreu e perdeu a guerra contra a ditadura de 1964, os esquadrões da morte tornaram-se, enfim, política de segurança consumada.
Mentecaptos elogiam torturadores em suposto templo da democracia e uma turba de acólitos baba convulsivamente em seu louvor. Exceto pelos indignados de sempre, pelos cínicos e pelos bandidos de outros empreendimentos que aquiescem condescendentemente em silêncio.
Na mídia, mesmo quando a ênfase da matéria está na palavra dos familiares das vítimas, o tratamento editorial insinua que se trata do "outro lado". O lado certo é o da criminalidade, a contestação é suposição. Policiais são vítimas da violência porque são seu principal instrumento. Para o sistema a morte de policiais é basicamente dano colateral e efeito moral para instilar ainda maior violência do aparelho repressor.
Um policial morto nunca será vinculado ao seu colega de corporação que pratica o sadismo institucional. Bons policiais morrem, maus policiais também. Uma parcela dos fora-da-lei são criminosos contumazes, adestrados ou naturalizados. Alguns outros são peões. A quantidade de mortes de custodiados pelo poder público desmoraliza qualquer vocação para a justiça que exista no aparato policial. Não é apenas repressor, cumpre política de extermínio.
O que realça o Brasil no mapa da morte, além das vítimas diretamente envolvidas nos confrontos entre policiais e marginais, é que uma infinidade de danos colaterais não são computados como pessoas inocentes. Nascer, crescer e viver numa favela, já não fosse suplício suficiente, é preliminar para suspeição. Empresas de segurança possuem prerrogativas acima da cidadania, poder de polícia e presunção de inocência.
O combate ao crime organizado cumpre basicamente o mesmo papel que a guerra ao terrorismo. São pano de fundo para disputa de poder e mercado. Quando um helicóptero com mais de 400 quilos de cocaína  é acobertado por todas as instâncias e autoridades, fica claro o embuste da fachada. O governante que leva o posto avançado da polícia para a boca da periferia o faz para encobrir que não enviou para lá educação, saúde e condições mínimas de dignidade. A polícia chega como advertência aos que não se conformarem da maneira mais subserviente possível. Chega para bater, torturar e matar. E as pessoas de bem exige que sejam recebidos de braços abertos.
Mas o senso comum apregoa que pretos, pobres e brancos pobres como pretos, são como escória. Exército de reserva.
Deveria estar mais do que claro que as instituições e o poder público não pretender alterar a situação. O Ministério Público mantém em nível apenas residual o acompanhamento da ação policial ilegal, ou truculenta. As defensorias de boa vontade não apenas são violentadas em seu ofício[4], como correm, seguidamente, o risco de viver a mesma sorte daqueles que pretendem defender[5].
O país precisa desmascarar a própria hipocrisia e enxergar que vivemos um ambiente de guerra civil permanente e o Estado está nas duas frentes, combate e fomento do crime, não se distingue fundamentalmente da criminalidade. Os criminosos não cumprem a lei, o Estado jamais pode deixar de cumpri-la. Justamente quando o faz, dá início à reação em cadeia.
É irrelevante demandar de forma passiva as autoridades sobre o estado de violência. Dentre as suas finalidades, a política de extermínio, é uma plataforma higienista, além de cumprir o papel de manter o medo generalizado em um nível tangível. Que outra razão haveria para manter a polícia com caráter militar, se não para perseguir os “inimigos internos” do sistema? E por que nas metrópoles a pedagogia policial é idêntica à do crime organizado? Às vezes coincidem até no linguajar.
As polícias não são uma cura para a violência, e sim, uma prescrição de uso contínuo em qualquer Estado autoritário. E estes são a imensa maioria dos Estados no planeta.
A violência é subproduto da injustiça. Quando o Estado deixa de cumprir seu papel fundamental de indutor, promotor e defensor da justiça, a repercussão se estende por toda a sociedade. Mas ao estado cumpriria a missão de ser solução para a violência. Não sua causa.
Se o Estado é incapaz de ser justo, é necessário redefinir o Estado e inventar  um critério de justiça que não seja ódio, nem vingança, e que seja capaz de impor ou constranger o Estado a cumprir sua função sem hipocrisia.

Criança Morta-Portinari-1944

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Cultura, propriedade intelectual e apropriação cultural



Fotomontagem com imagens da internet



Cultura, propriedade intelectual e apropriação cultural
Démerson Dias

Não existe sequer um mestre das artes plásticas, qualquer seja sua era, sofisticação ou talento que não deva algo ao bípede humanoide que, certa vez, lambuzou sua mão de barro e percebeu que podia imprimi-la numa parede de rocha.
Um mercenário caçador de tesouros pode dilapidar um ambiente de prospecção arqueológica, se apropriar de um exemplar de arte rupestre e vende-lo para um fetichista ou colecionador de arte.
Um arqueólogo competente deverá se empenhar para preservar, decifrar e estudar aquela forma de expressão.
Um artista plástico, artesão, ou artista de rua podem se basear nela, copiá-la em camisetas, xilogravuras,  ou qualquer outro tipo de artesanato, ou arte.
Uma empresa que negocia marcas e imagens pode pagar para que um artista ou mercadólogo crie um conceito a partir dessa arte e massifique como marca registrada de algum produto.
Não existe bem cultural na humanidade que seja circunscrito a uma única comunidade, localidade, aldeia ou povoamento. Da mesma forma no capitalismo ultraconsumista em que vivemos nada mais consegue ser muito sagrado.
 A cultura é basicamente apropriação, acumulação e aperfeiçoamento em torno de algum elemento circunstanciado histórica e geograficamente. Assim como as funções utilitárias e estéticas se alternam indefinidamente.
A cultura não pode, ou não deve, pertencer a um único indivíduo ou grupo. O maior equívoco existente nesse território são as empresas, absolutamente incapazes de esboçar qualquer ideia, pensamento, ou imagem assenhorarem-se de uma formulação humana. No momento histórico em que a humanidade admitiu como válido o termo “pessoa jurídica” abriu um flanco definitivo para a expropriação de toda e qualquer criação humana por parte de grupos mercenários. É absolutamente esdrúxulo admitir que uma coisa (empresa) possa ser dona de uma produção humana apenas porque financiou direta, ou indiretamente, a criação de um bem cultural imaterial, ou conceitual (deixo a ciência de lado, porque lançaria o debate num cipoal). Só não estranhamos esse fato porque encaramos com uma naturalidade bestial a apropriação da força de trabalho, talento e, às vezes, da própria alma das pessoas.
Compreensível, mas lamentável o furor, de parte a parte, em torno do recente debate sobre o uso de turbante por uma paciente de câncer. Verídica ou não, essa específica a contenda a respeito de apropriação cultural, o tema está em voga como fruto, bem-vindo, da necessária afirmação étnica e identitária dos povos originários da África.
A defesa de valores é pertinente, mas todo embate apaixonado produz desvios. Fatalmente, quando pessoalizamos questões culturais estamos enterrando a possibilidade de encontrar as virtudes nesse debate. Da mesma forma que só existe uma raça humana, por mais que existam variáveis baseadas em circunstâncias geográficas e/ ou históricas, a cultura é produto comum a toda humanidade. A cultura só é rica por que é plural. Se é focalizada e exclusiva, aos poucos deixa de ser cultura. Da mesma forma, costumamos nos proteger do fato de que as formas de extermínio e exploração também fazem parte da cultura da humanidade.
O limite que define a plausibilidade desse debate deveria estar nas intenções, circunstâncias e pessoas envolvidas. Uma pessoa sem relação ancestral com a áfrica usar um turbante não pode ser equiparado, por exemplo com um missionário de uma religião iconoclasta chutar uma imagem de um personagem sagrado de outra religião.
Sobretudo, é fundamental entender a circunstância em que um item cultural é utilizado por alguém alheio àquela cultura é uma ofensa ou elogio. Elogios podem ser inadequados, claro, mas nesse caso será fundamental discutir circunstância, propósito e até mesmo território.
Asa Yoelson era um judeu lituano. À revelia de seu pai seguiu carreira como cantor e deixou sua marca na história do cinema, pintando o rosto de negro em “O cantor de Jazz”. Será que existe suficiente polêmica acerca de apropriação cultural na história de Al Jonson?
Existem inúmeras considerações de ordem formal a serem avaliadas que, aparentemente estão passando ao largo desse debate. Quando um artista copia arte de um afresco egípcio num tecido e vende como artesanato está lesando a cultura egípcia? E quando comemos tapioca ou pirão estamos subvertendo a culinária indígena?
Pra mencionar uma pergunta lançada por Gilberto Gil numa canção, a umbanda é uma apropriação africana do catolicismo, ou uma imposição europeia sobre a religião africana? Resistência ou rendição?
Li uma crítica segundo a qual o uso com finalidade puramente estética do turbante implicaria em apropriação cultural indevida porque trata-se de indumentária religiosa. Tese temerária, já que turbantes e túnicas são alguns dos itens de vestimentas mais transculturais que existem. Estampa, padrão de tecido, modelo representam justamente a “apropriação” específica que cada segmento social atribuiu ao adereço. Mas o turbante usado em nossos dias é o mesmo usado pelos povos africanos séculos atrás, ou também estes sofreram as adaptações derivadas de outras culturas, ou mesmo do modo de produção capitalista. Desconheço que só existam turbantes ritualísticos e artesanais.
A crítica à apropriação capitalista de bens culturais é pertinente. Mas tenho lido comentários que basicamente encaram a questão como direito ou proibição de consumir. Há, inclusive quem afirme que até o uso como opção estética seria condenável. É lastimável que tenhamos subordinado inclusive a estética ao seu valor monetário. Se houvesse um monopólio absoluto do turbante de origem africana bastaria ao capitalismo estilizar um turbante indiano, tingir o tecido no Marrocos e talvez até compar algum conceito e estampa de alguma comunidade Inuit. Ninguém teria condições de incomodá-lo. Mas uma pessoa jurídica é imensamente mais poderosa do que uma transeunte que considere que aquele adereço a deixará mais bonita. Ou as pessoas vestem coisas para ficarem mais feias?
Ou seja, alguns acusam a apropriação cultural como que defendendo a restrição ao uso comercial. Evidentemente, esse discurso só vai funcionar com indivíduos periféricos do mercado consumidor. Há décadas os turbantes frequentam os desfiles pret-a-porter. Inclusive Simone de Beauvoir. Clamores de apropriação passam ao largo daquelas passarelas. Seria pertinente indagar se só as pessoas à margem da cultura oficial estão praticando apropriação cultural?
Estética é aspecto cultural que funciona como motor evolucionário da espécie humana. Não é so válido, é obrigatório denunciarmos quando o deus mercado subverte itens culturais com finalidade de lucro (ou ainda como dominação ideológica) Mas quando esse debate desce às pessoas fatalmente estamos transitando para a cultura do totalitarismo.
Outra linha de argumentação duvidosa diz respeito à uma eventual imposição de que o uso deveria estar condicionado à valorização histórica e cultural e inclusive religiosa. Eis uma trilha perigosamente dogmática. Afirmar que só pode ter acesso a bem cultural quem compartilhar do ideário (político, científico, religioso etc) é sintoma de fundamentalismo.
Não existe um bem cultural sem antecedentes. Alguns, inclusive encontrados na própria natureza. Turbantes não fariam sentido entre as populações tropicais da região pantaneira ou amazônica. Mas ocorreu de forma indeterminada em uma faixa razoavelmente ampla entre África, Ásia e Europa.
Ainda que houvesse uma apropriação nociva, ela ocorreu décadas atrás. Por falar em Al Jonson, a portuguesa Carmem Miranda já havia se apropriado em terceira mão do turbante no início do século passado. Não consta que usava para aviltar a cultura africana embora tenha lucrado com seu uso.
No caso de símbolos culturais sempre lamento o preconceito com que o nazismo manchou a suástica. Símbolo semi universal da humanidade encontrado tanto na cultura nórdica quanto na hindu asiática.
Muito antes de ser símbolo do cristianismo a cruz era, por exemplo, adaga. Aliás, o cristianismo em si mesmo é uma religião sincrética. E evidente a relação da cruz com o símbolo quaternário, cuja origem se perde na história do simbolismo humano.
Acho necessário que qualquer etnia ou segmento valorize seu símbolos e resguarde sua identidade. Mas não saber distinguir quando uma opção mesmo estética representa valorização desse símbolo e confundir isso como degradação, ofensa, ou expropriação é basicamente inverter a lógica racista que devemos combater.
Nossas identidades nos valorizam, mas acima de tudo é preciso não ceder às fragmentações política e culturalmente arbitradas.
Esse capítulo de nossa cultura não estará superado enquanto não for consenso que não existe mais de uma raça humana no planeta. E isso não deve desmerecer qualquer etnia ou cultura. Quando eu canto um fado, luto kung-fu, uso turbante, ou fotografo um minarete não estou expropriando cultura, mas valorizando-a. Mas é preciso ter generosidade e respeito para não confundir afinidade e respeito com seu exato contrário, nem muito menos ver ofensa quando o que existe é elogio.
Acho importante deixar pelo menos apontado um aspecto que sintomaticamente passa ao largo de discussões como essa que poderiam dirimir praticamente qualquer polêmica. Quando vamos discutir especificidades culturais e étnicas relacionadas à ancestralidade africana, a qual ancestralidade especificamente estamos nos referindo? Já que não se trata todo unitário. Mas qual das etnias possui primazia nessa questão? Descendentes de Guiné, bantus, sudaneses etc? A afinidade que consolida os descendentes africanos como referência unitária é pós africana. Antes, disso existiam etnias distintas com valores e culturas diversos. Fico sempre com a impressão que tratamos como um país único o que é, em verdade, um continente. Com tantas variáveis quanto as que encontramos entre tupis, ianomâmis, xavantes etc.
Embates culturais jamais deveriam descer ao nível dos indivíduos, não existe um de nós sequer que não seja mestiço de inúmeras tendências culturais. O Brasil aliás, é expressão virtuosa dessa mescla. O grande expropriador segue incólume e absolutamente alheio ao embate entre ofendidos e ofensores.
Cultura deve existir como referência de identidade, quando reivindicada como propriedade passa a ocupar outro departamento das relações sociais. A prática que reivindica direito autoral, exclusividade de uso ou prerrogativa e direito a propriedade é a dos exploradores. Aos explorados, costuma caber a solidariedade, unidade e generosidade.
A questão central é justamente a virtude e finalidade da cultura. Cultura é bem comum e sua expropriação, essa sim é condenável. Convém ir às raízes da questão cultural, nestes tempos o que apela para a exclusividade não é cultura, é o mercado.