quarta-feira, 3 de março de 2021

O vírus brasileiro


O vírus brasileiro

Démerson Dias

Dorian Gray -Ivan Albright (1943)
     Agora o Brasil tem uma variável do coronavírus pra chamar de sua. Deveriam chamá-la Bolsonaro.
     Enquanto o mundo vislumbra a luz no fim da pandemia, o Brasil ameaça a todos, com uma variável mais transmissível e mortal do Sars-CoV-2.
      Quem visita a página do Imperial College London, uma das primeiras instituições a lançar luzes sobre a pandemia, recebe a informação de que a variante P1, produzida em Manaus, é ameaça mundial e tornou-se a mais nova preocupação em torno da pandemia, fazendo com que todos os países sensatos fechem as portas para pessoas vindas do Brasil. Você não leu errado, eu também precisei reler várias vezes para acreditar. O descuido do Brasil em relação à pandemia, agora é ameaça a todo o planeta.
      Parece uma vingança insólita da história, enquanto há brasileiros falando que o mundo é uma conspiração comunista, o mundo começa a tomar medidas para se proteger da ameaça que o Brasil representa.
      Essa variante que se propaga mais rápido, é mais mortal e reincide nas pessoas que já tinham sido curadas. Cientistas temem que ela possa contornar os antivirais recém sintetizados.
      Escrevo, dentre outras coisas, para endossar o entendimento do doutor Atila Iamarino, para quem essa variante merece ser chamada de brasileira. Diferente de outras tantas variáveis, que não deveriam ser atribuídas a países, a variável P1 é resultado de um esforço governamental.
     Minha sugestão é “Betacoronavirus bolsonarica”.
      Quem acompanhou o episódio de 2/3/21 do Átila encontrou um cientista diferente daquele que nos conduziu, ao longo de um ano, com serenidade, pelo território do esclarecimento sobre pandemia. Um dos trabalhos mais impressionantes de divulgação científica.
     Dessa vez, ele expressava o cansaço que recai sobre todos os que estão a um ano debruçados sobre as evoluções do vírus, as estatísticas e a repercussão nas pessoas e países. recomendo enfaticamente essa “live” pois ele detalha como o surgimento da variante decorre inequivocamente do descaso premeditado do governo federal.
      Como ele, que vive o mesmo drama social que todos nós, e ainda está exposto às informações técnicas e quantitativas sobre a pandemia está esgotado e indignado, ainda que de forma contida, podemos deduzir a desconstrução psíquica, física e existencial dos milhões de profissionais, entre médicos, enfermeiros, assistentes e pesquisadores que estão na chamada linha de frente da guerra contra a Covid. Em verdade, eles são nossa “trincheira mater” nessa guerra.
      Para ficar apenas em dois expoentes que acompanho há mais tempo nesse tema, o outro doutor, Miguel Nicolelis, vai além e exorta o mundo a interditar (ênfase minha) o presidente brasileiro que permite que o país seja o maior experimento a céu aberto em favor do vírus.
      Endossando também Nicolelis, acredito que o esforço descomunal que o cara que abusa do planalto vem fazendo para atrapalhar o combate a pandemia, mais do que um caso de transtorno psíquico, precisa ser considerado, em perspectiva, um crime contra a humanidade e ameaça a todo planeta.
      O contexto brasileiro admite considerar a  factualidade de uma  guerra contra a covid porque a pandemia conta, aqui, com suporte militar especializado, capaz inclusive de confundir siglas que garantem ao vírus algumas horas a mais de letalidade.
     Não devemos considerar o fato uma questão de acaso ou incompetência. É passível de apuração e eventual responsabilização quando agente público enseja voluntariamente, ou não, danos à vida de pessoas. Isso só não foi estampado em manchetes porque a mídia é, em boa parte, sócia tutela capitalista/militar que se abate sobre o país.
     O setor militar brasileiro para além da covarde e brutal ditadura de 1964, possuía, algum resquício de respeito, pela atuação, em emergências, sobretudo, logísticas e estruturais no país. Tinha. O episódio das doses perdidas entre Amazonas (AM) e Amapá (AP) deterioram, pela incompetência, o currículo das forças armadas no pior e talvez único momento em que o país, pode se dizer, mais dependia de atuação humana e eminente desse setor.
      Confesso meu próprio abatimento. Acreditei que o arrojo do SUS, da classe científica associada às fileiras sociais que combatem o descaso governamental, conformariam uma trincheira consistente que seria capaz de conter o pior cenário da pandemia.
     Embora isso, em nada, comprometa a capacidade dos profissionais do setor sanitário e científico brasileiro.
      O próprio Nicolelis conseguiu articular em torno de si um consórcio de estados para combater a covid. Mas, confrontados pelas investidas do governo federal, seu alcance e condições operacionais foram francamente sabotadas.
      Duas dessas investidas,  entre centenas de medidas e declarações, impedem governos de comprar vacinas, e, em proposta em tramitação no congresso. elimina a obrigação de investimento mínimo em saúde e educação. Em português claro, o brasileiro pode morrer à míngua, porque o Estado está mandando à merda, ao deus dará, ao inferno, ou às favas como disse, certa vez, outro militar infeliz, a obrigação de garantir saúde e educação. Já se perguntou pra que serve o Estado?
      O Brasil, apesar do território continental possui soluções logísticas condizentes a essa dimensão. O SUS, apesar dos brutais ataques privatizantes, consegue dar cobertura básica a todo território nacional. Uma vantagem estratégica que poucos países no mundo dispunham. Se tivesse uma fração do que países civilizados aplicam no setor, teríamos minimizado as mortes.
   Não, o SUS não é precário. É fruto de uma mobilização fenomenal que, desde 1988, envolveu profissionais e ativistas sociais para que o país tivesse um sistema universal de saúde. Nesse mesmo período forças repulsivas da política e do deus-mercado tentam destruir esse projeto. E alguns governantes se empenham arduamente em nomear para essa área as pessoas mais incompetentes e venais, dispostas a literalmente matar a população, e os profissionais de saúde (a maioria são os chamados servidores públicos). Algo semelhante ocorre com a educação.
      Em termos estratégicos, somente um empenho extraordinário seria capaz de atrapalhar o Brasil de se igualar os países que melhor lidaram com a pandemia. Pois bem, fato é que as condições e estruturas brasileiras foram esgotadas. Isso não ocorre sem determinação política consistente. Esse é o Brasil, saltando no abismo, pandemia abaixo. Essa é mais uma guerra em curso em território nacional que mira em especial os mais pobres.
      Eu seria mais idiota do que pareço se concluísse esse texto sem denunciar a proposta de demolição administrativa que estão chamando de reforma administrativa. Se reformar fosse bom, militares e bancos estariam implorando e pagando por elas. Na verdade, o capitalismo está pagando, por que todas visam exclusivamente tirar dinheiro de quem já não tem, para dar a quem está jogando fora, ou comprando mansões de seis milhões.
     Instituições como FioCruz e Butantã (e tantas outras como Funai, IBGE, Incra, CT-Vacinas da UFMG) estão na mira desse cataclismo político que alguns teimam em chamar de governo. Pelas propostas de “reforma administrativa”, governos podem num dia de mau humor, com uma canetada, destruir riqueza pública, científica e histórica que constituem essas instituições. Exatamente as poucas coisas que ainda restam no país e produzem trabalhos úteis para a população. E só é assim porque a população não é composta por grandes empresários, ou banqueiros. Pode xingar que o nome disso é capitalismo mesmo. Esse também é codinome da pandemia.

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