segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo: Que os deuses falem em seu próprio nome

david-pope-HeDrewfirst.jpg“Somos uma revista de sátira, de política, de desenhos. E somos, sobretudo, uma publicação ateísta: lutamos contra todas as religiões a partir do momento em que elas abandonam o âmbito privado para se ocupar da política e da opinião pública. A religião muçulmana tenta fazer uso da política, por isso ela deve, como todas as outras forças políticas, submeter-se a críticas" Gérard Biard, editor chefe do Charlie Hebdo em entrevista à Deutsche Welle, em 2012.
Charge: “Ele desenhou primeiro”. David Hope

Ateus merecem menos lágrimas do que religiosos das mais diversas designações.
Esta deve ser minha quinta ou sexta versão para esse texto, porque os que não professam fé religiosa (doravante, ateus), temos que ser cordatos, ponderados, sensíveis, respeitosos e agora até “tementes” para abordarmos o tema religião. Não importa a gama de contradições e esquisitices (opa, perdão!), inconsistências com quem nos deparemos.
Corinne Rey, Cédric Le Béchec e até um setor da AlQaeda apontam esse último agrupamento como responsável pela chacina, de modo que já estou me livrando de uma heresia ao mencionar que foram jihadistas os responsáveis pelo ataque ao Charlie Hebdo dia 7/01/15. Isso instala uma faceta no debate que a quase totalidade dos intelectuais parece estar se esforçando para evitar. Ateus são hostilizados até por pacifistas, que dirá por assassinos.

Quem não te tolera que te mate
Bastou algumas pessoas tomarem contato com o conteúdo do Charlie Hebdo (CH) para que o horror à chacina passasse a vir acompanhado de reticências. As religiões historicamente belicistas se irmanam na ponderação sobre a “evidente heresia” da publicação. Por muito pouco não reconhecem que houve, de fato, crime contra deus, passível de, pelo menos, algum tipo de sanção.
O debate suscitado, mais do que interessante, é necessário. “Je suis Charlie” ganhou o mundo, mas, conforme as charges foram sendo conhecidas alguns, após um tempo de desconforto, ou buscando a forma mais amena para dizê-lo, lograram o “Je ne suis pas Charlie” que agora já é uma contra-corrente em busca de seu espaço. Sintomaticamente Jean-Marie Le Pen aderiu a essa fileira.
Da mesma forma como os “não Charlie” condenam o atentado, consigo entender os argumentos que lançam. No entanto, assim como fazem objeções à publicação, eu também as faço aos que questionam o papel do semanário. Concretamente parece que “ninguém” quer, ou pretende entender o ateísmo. Isso leva o debate para o campo ideológico e pode dividir até marxistas.
Há quem declare ter se sentido ofendido pelas charges , outro diz que ninguém é obrigado a ouvir ofensas calado (exceto os ateus, é claro), ocorre que a resposta não somente foi desmedida, como premeditada. Ou seja, os então criminosos tiveram alguns anos para considerar “penas alternativas”, mas levaram a cabo a pena capital. O critério da verdade é a prática: ofensa a “seres” metafísicos é punível com a eliminação física. E os ofendidos conhecem a prática dos jihadistas. Discorda-se das medidas mas admitem que algo tinha que ser feito. Excessiva ou não a pena, o problema para jihadistas e crentes foi resolvido. Convenhamos que de ofensas de parte a parte puníveis com a morte, as religiões entendem. Jerusalém foi e ainda é pretexto para o fratricídio religioso (um mesmo deus criou a todos, ou não?)
Impressionante esse argumento, eu mesmo poderia registrar que li graves ofensas contra a publicação. Ficaria ofendido, sobretudo com a licença para recusar-se a entender. E principalmente pelo mau humor dos que leram heresia e atitudes incorretas politicamente.Sintomas de ódio dos que parecem considerar o “uso excessivo” da liberdade de expressão.
Apesar de tomar contato com a publicação apenas a partir da publicação das polêmicas charges de Maomé, não precisei de muito esforço para traçar o perfil ideológico dos editores.
Caberia um longo aparte sobre o papel da sátira no mundo literário (parece que, além de tudo o mesmismo da redações está obscurecendo a estilística; deve ser o fim do jornalismo como forma literária; tudo tem que ser denotativo), infelizmente o debate vai resvalando cada vez mais em variáveis de fundamentalismo (ou dogmatismo) e isso parece-me improdutivo. Religiões dogmáticas basicamente abominam o humor. Que o diga Umberto Eco e seu “O nome da Rosa”. Se bem que Sócrates também tinha problemas com artistas e humoristas, a nos fiarmos em Platão.
Evito também discorrer sobre o papel das sátiras na imprensa, seja na França, seja fora dela. No Brasil mesmo, o melhor da crítica política é realizado em torno do humor (alguns lastimáveis também, mas acredito que é uma fase egóicotecnológica). Refiro-me, em especial aos primórdios da imprensa brasileira (permitida apenas após a chegada da Família Real) até meados do século passado. Após o que a paulatina submissão do jornalismo à propaganda tumultuou o cenário todo.
Tudo o que sacraliza o “poder” abomina o humor, pois para este o sagrado é pouco mais que um verbete. Leio pessoas que se arvoram pacifistas reproduzindo os mesmos senões que os fundamentalistas. Um ou outro caiu no meu conceito. A paz do cemitério, nós de esquerda andamos descartando ultimamente. :-)
Francamente, também achei algumas charges de mau gosto, o que pode implicar em ofensa, talvez calúnia, difamação aos afetados. Mas o que significa, de fato, afirmar-se que não se é Charlie? Todos dizem ser solidários e condenam o crime. Se eu estivesse na revista talvez fizesse a seguinte charge a respeito: Não tenho nada com eles, vire essa arma pra lá.
Foi aliás o que vez Robert Crumb numa hilária, com o perdão da redundância, charge sobre a bunda do seu amigo Mohammad.
Seria insuficiente. A questão é bem mais grave do que uma expressão de covardia. É beligerância mesmo. É compreensível que muçulmanos mais ortodoxos ao mesmo passo em que repudiaram a chacina, apontaram as ofensas ao Profeta. Minha dúvida é se o restante do mundo considera as charges mais graves do que as ações dos fundamentalistas ao longo da história.

A culpa NÃO é da vítima
O que pensar ao ler que os assassinados conheciam "as consequências da persistência na blasfêmia contra as santidades muçulmanas"? O que isso significa no contexto em tela?
A centralidade do debate abandona o terrorismo, talvez porque ele ou uma de suas derivações, a guerra, seja, ou tenha sido, admissível ao longo da história de várias designações. Até Arjuna é instado a guerrear contra seus parentes. O debate portanto desceu (pelo menos é assim que hierarquizo) das razões de guerra para a defesa do dogma . E, dedididamente, os religiosos acham que não “temos o direito de caricaturar deus”. Então, se irmanam em defesa da “fé” e obliquamente justificam sanções. Talvez os descendentes do CH até a sétima geração devam começar a se preocupar.
Quando li as primeiras considerações não entendia meu próprio desconforto até que alguém lançou o argumento que levanta um véu sobre quase todos os senões com que me deparei: A velha e odiosa responsabilização das vítimas. No fundo a maior parte dos senões “advertiam  os mortos” de que sabiam com o que estavam mexendo.
Entendo se alguém me adverte para não brincar com escorpiões e cobras e, em caso de acidente, me digam que eu sabia com o que estava lidando (O CHC acrescentaria, “bem feito”). Mas esse argumento lançado num debate em que estão em questão seres da “espécie superior” beira o disparate. Só deve caber em quem acredita que o ser humano deve satisfação a “algo maior”.
O problema é que esse “algo maior” nunca está presente para dizer exatamente o que pensa. E seus intermediários . . . francamente . . .
Os jihadistas acabam alçados a um estado de natureza que justifica suas ações, ainda que estas sejam censuráveis.
Subordinada a novos parâmetros, agora relativizados pela autoridade moral da religião, os que são passíveis de serem ofendidos em sua “honra religiosa”, acabam por convergir entre si e as diferenças com os jihadistas, quase descambam em mera discussão sobre o método. É como se ateus, de fato não existissem. Estranhos a deus, qual a diferença entre estarem vivos ou mortos?
Isso não é novidade. Não vou pautar a longa celeuma aqui, mas o próprio termo ateu nos impõe a negação de algo que, em verdade existe, levando a questão basicamente para a esfera do crer ou não naquilo que seguramente “é”.

“Queres a paz, prepara-te para a guerra”
Reconheço que o islamismo é uma das questões mais complexas com que lidamos atualmente. Talvez por preservarem a ideia de “guerra santa”, e outras coincidentes com o judaísmo e os primórdios do cristianismo, suscite nos fieis e nos “gentios” perspectivas um tanto inusitadas. Inclusive as setenta virgens com que serão agraciados os eventuais mártires.
Mas não será blindando a questão que iremos compreendê-la. Nesse sentido os dogmas do islamismo criam uma barreira avessa ao diálogo, ou seja, à compreensão pelas demais culturas. Esse é um elemento de obscurantismo. O CH foi recriminado por contar a história de Maomé, posto que ele não pode ser motivo de menção, retratação etc. Como (diabos!) vamos entender o que não conhecemos?
O representante da AlQaeda prega a conversão do mundo todo. Esse tipo de extremismo coloca tais facções no mesmo patamar ideológico do imperialismo. A esquerda marxista não deveria ficar inerte diante dessa afirmação.
O que vamos fazer com a mutilação genital feminina? Queremos isso para todas as mulheres do mundo? Sim, caríssim@s os extremos precisam ser mencionados. Hipocrisia é também um vício religioso. Considerando que algumas facções são extremamente fechadas como o mundo irá  lidar com elas?
Não é novidade que os fundamentalistas são também absolutistas em relação à sua crença. A ideia de conversão é parte dos processos de organização e ampliação dessas religiões. Quando adentra a esfera pública e social, queira ou não, a religião estabelece uma interface com o mundo externo a ela. Imaginar que outras pessoas deverão, a priori, acatar seus preceitos só faz sentido para quem acredita ser portador de verdades especiais e superiores. Ninguém mais está subordinado a essa crença.
Da mesma forma que uma determinada designação não pode sujeitar qualquer outra, é inadmissível que uma religião prescreva comportamentos e penas para quaisquer outros que não seus fieis convictos.
Quem relativiza o obscurantismo desse tipo de fundamentalismo aparentemente não se deu conta de que o capitalismo, enquanto modelo social e econômico é um passo adiante em relação ao feudalismo e mercantilismo. Mas no plano epistemológico ele sucede também o obscurantismo. Esse não é um tema sobre o qual deveríamos calados.
Defendemos a superação do capitalismo, mas não para voltar a habitar cavernas. A esquerda que preferir evitar uma consideração básica como essa estará nos marcos da utopia programática. Eu mesmo não tenho uma solução, ou resposta, mas estou seguro que não ela não passará pela negação, e sim, pelo esclarecimento.

Humor, com humor se paga.
A vocação religiosa permeia vários aspectos da nossa cultura. Em inúmeros momentos somos instados a lembrar que “devemos a vida a algo maior”. Deixo de lado o argumento que nada que somos capazes de alcançar e reconhecer é propriamente maior do que nós. Isso é cognitivamente implausível Assim como o pensamento religioso costuma ter dificuldade de pensar além de uma certa linearidade, ele tem praticamente ojeriza ao humor.
Os periodistas tinham “direito” de falar mal de Maomé? Toda a celeuma numa frase singela. Usei “falar mal” de propósito. Caricaturar ou fazer humor não necessariamente é falar mal. Tudo o que me alcança, me concerne. Se um cristão vem à minha porta anunciar a sua versão de porvir, provavelmente ouvirá que para mim a sua bíblia não é um repositório das verdades universais e que não compactuo com a cosmogonia que ele propõe.
Deixamos escapar um ligeiro detalhe que gera quase todas as contradições em torno do islamismo. Tanto o capitalismo (religião do mercado) quanto a maioria das religiões ocidentais (quantas são, mesmo?) mantém suas vergonhas encobertas. As facções jihadistas as proclamam.
Embora tenha sido filmada e Obama tenha assistido ao vivo, o assassinato de Bin Laden não veio a público. O Estado Islâmico surfa na internet com inúmeras execuções.
Em tese, caminhamos para a abolição das penas capitais em qualquer parte do mundo e por quaisquer que sejam as causas.
O Brasil é um parâmetro precário para entender a xenofobia, ainda que estejamos de costas para a “Pátria Grande”. Acusações de racismo e islamofobia ocorreram ao longo da história do Charlie Hebdo.
Prospera no Brasil, prova de que nossos reacionários estão surfando na internet mais do que Gabriel Medina: uma acusação de racismo por parte do CH contra a Ministra da Justiça Francesa Christiane Taubira. Espero que quando eu terminar de escrever essa manipulação infame já tenha sido devidamente desmascarada. O CH saiu em defesa da ministra que havia sido atacada por um periódico reacionário, mais que isso, denunciou o racismo, ao que ela mesma agradeceu. Tanto que reivindicou o CH diante da sede do jornal, após o atentado (valeu Diário do Centro do Mundo!).
É surpreendente como pessoas com capacidade analítica apurada tenham confundido com facilidade a denúncia contra o fundamentalismo com Islamofobia. É exatamente o oposto. O CH sempre reivindicou a distinção entre muçulmanos e fundamentalistas. Reivindicou até o próprio Profeta!
Não precisei de muito tempo para encontrar a primeira edição profundamente polêmica. Nela o Profeta aparece na capa, aos prantos dizendo: “É duro ser amado por idiotas”. Frase aliás, que caberia na boca de outros tantos profetas, inclusive do cristianismo.
Do que percebi não veio de dentro da França esse diversionismo entre islamofobia e Crítica feroz ao fundamentalismo
“Humor negro” (triste conceito . . .) já é algo de difícil digestão. Mas a primazia da lógica religiosa é o principal fator que obscurece a clara distinção entre o que fazia o CH e a direita islamofóbica. Aliás, daria uma tese, o fato de que os fundamentalistas não atacaram o Minute, esse sim, franca e abertametne islamofóbico? Quem sabe por não ser tão engraçado?
Será que os jihadistas ignoravam o lançamento de “Soumission” de Michel Houellebecq? Analistas experimentados estão conseguindo deixar escapar a investida de Marine Le Penn e sua Frente Nacional de se apropriar do “Je suis Charlie” para promover exatamente o contrário do que o periódico propunha, a pretexto da liberdade de expressão.
Os jihadistas buscavam muito mais a repercussão de sua ação do que alcançar alvos efetivamente adversários.São o outro lado da moeda, realmente um contraterrorismo que poupa seus adversários, mas compactua com eles a promoção e exacerbação dos conflitos.
A principal reflexão a que o atentado me leva é sobre as coincidências entre as intenções do imperialismo que deu causa à reação jihadista e o interesse dos líderes dessa reação. Talvez sejam mais semelhantes do que gostaríamos de supor. Embora a antiga URSS também tenha patrocinado jihadistas. Não seria mais absurdo que as demais crenças tentar entrever que nesse caso, os adversários alcançaram inimigo comum.
A questão é que quem se fia apenas no maniqueísmo e nos dogmas será incapaz de entender a meada de tramas envolvidas e encobertas nesse contexto.
Poderiam ter feito uma charge com a execução dos chargistas perfilados e decapitados. Pessoalmente eu teria sido mais cruel, iria canonizá-los em vida. Certamente ficariam fulos de raiva. Ou não.
Religião e humor vivem às rusgas, não pela religião, mas pelos dogmas. Humor é um triturador de dogmas por natureza. A questão é que o humor retira da religião algo que ela busca preservar a todo custo: a aura de autoridade. E isso é ruim para os negócios.

Uma última, mas fundamental consideração. Em hipótese alguma proponho a vitimização dos ateus. Muito ao contrário, se algo nos caracteriza (na medida em que é possível generalizar, evidente) é que apostamos no esclarecimento, no desnudamento (oba!) e no compartilhamento das verdades. Nos dispomos a encarar tanto o fogo do inferno, quanto o juízo final pelo que acreditamos. Os religiosos que o são por medo deveriam levar isso em conta. Nós não tememos monstros reais ou imaginários.
Pessoalmente, se encontro algum (todos os piores encontrei em mim mesmo) prefiro entender suas motivações. Não existe generosidade no medo.
Poderia sugerir aos crentes fieis e outros mais uma solução definitiva para todas as querelas contra os ateus, agnósticos, nemaiófilos etc. Já que é impossível para vocês imaginar uma existência sem divindades, então aceitem que, para nós,  somos nosso próprio deus. Portanto, vão lá brincar de religião e deixem que os deuses se entendam entre si.
Em tempo: ironia vale o que? Uma orelha, um escalpo, ou é pena de morte, direto?


Um comentário:

Xi, francisquinho, deitaram a língua na jabuticaba!