segunda-feira, 29 de abril de 2019

Distopia, tática, estratégia, revolução

Por Démerson Dias

Conforme os  inibidores da recaptação de serotonina,. dopamina etc vão fazendo ou deixando de fazer efeito no meu sistema nervoso, fico menos, ou mais impaciente com incapacidade do país tomar pé da excepcionalidade democrática que vivemos.
Pensando em 1984 de George Orwell, se usarmos em lugar do grande irmão o deus-mercado, ou mesmo o Google, fica escandalosamente claro que a diferença entre a distopia do livro e a nossa vida é que o primeiro é uma ficção (ou antecipação) científica, enquanto nosso dia a dia é a realidade. Ainda mais eloquente e contundente que o livro.
Talvez alguns não acreditem porque em detalhes ou pormenores a obra de Orwell não seja expressão exata do que nos ocorre. Se quem pensa assim é materialista, ou de esquerda eu preciso alertar que se a obra retratasse com perfeição os nossos dias, Orwell não seria escritor, e sim, profeta.
Preciso também invocar uma passagem do controverso Osho, que no meu tempo se chamava Rajneesh e que, compilando contos zen budistas mencionava o caso em que uma pessoa, tendo alguém lhe apontado a lua, se deslumbra com o dedo que aponta e desperdiça a experiência formidável de olhar o satélite “prateado” da terra.
Parcela da esquerda, por exemplo, se recusa a entender que, em dado momento histórico, o PSDB rompe com o antigo PMDB pela esquerda. Que FHC foi aluno de Florestan Fernandes e chamado de “príncipe da sociologia”, o que, convenhamos, não é um título que caiba a alguém muito à direita. Assim como o nome do partido invoca a social democracia que foi, basicamente uma resposta dentro do capitalismo para responder aos avanços sociais consistentes do bloco socialista.
Da mesma forma um Partido dos Trabalhadores é precisamente da classe que vive do trabalho tanto quanto uma central única é a única central sindical do país. Cada qual, assim como todo o restante da esquerda se considera a expressão máxima e melhor enquanto organização política. No entanto, levamos um baile de uma das coisas mais abjetas da política nacional. Podemos sacar milhões de teorias, ponderações e ressalvas. Não importa nada. A realidade nos esbofeteia a cara e se fingimos não notar, a próxima pancada vem ainda mais forte.
A esquerda no Brasil vive uma espécie de doença perceptiva que embola nomes, intenções, projetos e “verdades”. Se por um lado alguns setores aderiram a um pragmatismo que desvirtua concretamente as formulações marxianas, o outro, ao disputar verdades é tão estupidamente contraproducente que faz mais bem ao adversário capitalista do que a qualquer dos segmentos que se pretendam progressistas e/ou populares (reivindico historicamente o papel dos trabalhistas de um lado e dos anarquistas de outro).
Para não falar em setores democráticos (que necessariamente incluiria os liberais utópicos, desenvolvimentistas, nacionalistas etc), há quem não enxergue na formulação “ditadura do proletariado” a crítica radical à democracia burguesa. Suspeito que há gente na esquerda esperando iludir a população com promessas de representatividade e fidelidade para chegar ao poder e instalar a verdade suprema do partido único, em si, para si, e tão opressor com a dissidência quanto qualquer regime totalitário. Expurgos partidários não são raros entre nós. Sempre haverá um gulag de novo tipo disponível para acomodar nossos hereges.
A cada momento e especialmente agora neste Brasil que elegeu um misto de facínora,  corrupto e promíscuo para o poder político central, só com muita distração não se percebe que não haverá solução mediada e pacífica para o problema político brasileiro.
De outro lado, cumpre à esquerda marxista entender que o Estado representa interesses da classe que o controla, ou seja, enquanto houver Estado estaremos sob uma ditadura e isso não é uma disposição pacífica do marxismo. Ao contrário.
Os governos de esquerda brasileiros que chegaram ao poder, primeiro o tucanato, depois o lulismo alcançaram, cada qual, estágios distintos em suas experiências na condução da ditadura da burguesia. Cheios de dedos, tentaram sempre mediar, com graus distintos de ousadia os conflitos ontológicos entre burguesia e proletariado.
Não precisou muito, Dilma deposta por fazer o que todos faziam, Lula preso por governar em coalizão e um militar rebelde sem causa incapaz de fazer explodirem espoletas nos quartéis consegue dinamitar as fundações não apenas das tentativas de conciliação, mas de toda a formulação democrática construída ao longo da derrocada da ditadura de 1964.
Se as esquerdas se subordinam ao suposto processo democrático republicano para espalmar avanços estruturalmente ridículos, uma canetada de um aparvalhado destroça inapelavelmente todas as esperanças num grau de ousadia que nos deixa atordoados e à beira de um colapso dos sentidos.
Ou a esquerda se entende e se compreende como sendo o avesso da ditadura da burguesia, ou seja, não temos nada a ver com isso aí, ou vai se limitar a masturbar ambições golpistas mais inalcançável que qualquer delírio dos socialistas utópicos.
Nem todo avanço vale a pena, nem todo benefício ou conquista da classe é consequente, agendas econômicas, por mais concretas e coesas, não garantem por si só, nem absolutamente, qualquer avanço na contraposição efetiva ao capitalismo. Aliás, nunca tanto quanto hoje nos fez falta uma teoria revolucionária, que trace táticas, estratégias e que aponte com clareza o tipo de ruptura que iremos, pretendemos, ou supomos alcançar. E a ruptura, bem entendido, não se confunde com verborragia, nem muito menos com ódio.
Espero que as esquerdas brasileiras aprendam que jamais seremos tão bons em odiar quanto a direita. O futuro perseguido pelas esquerdas será includente, ou não será. Isso implica em incluir, neste momento, até mesmo as frações do capitalismo que não sejam humanamente antagônicas. Nem com as joias do infinito seremos capazes de fazer sumir a metade do universo que não se alinha à nossa visão de mundo comunista. Em algum ponto desse processo, presumivelmente com a conquista decisiva e não farsesca do Estado teremos a atribuição de construir essa mediação. E, para Marx, o proletariado no controle do aparelho do Estado alcançará um projeto de democracia extremamente mais consistente que a burguesia.
Quanto mais cedo nos despirmos das aspirações fúteis, nas quais nossos delírios de poder flertam com a mesquinharia burguesa, mais próximos estaremos de alcançar uma equação política que seja realizável dentro da realidade em que vivemos. Vamos postular loucuras saudáveis, os loucos depravados já demonstraram que seu repertório é imensamente mais profícuo e extenso que o nosso. Inclusive eles matam muito mais e sem remorso, ou pudor algum.

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