quinta-feira, 12 de maio de 2016

O fator da crise é a legitimidade

Démerson Dias

A Justiça entra em campo quando a Política deixa de ser possível. Trágico é que o PT tenha precisado se apegar a firulas legais para tentar defender sua legitimidade. Trágico, não para o PT, para o país, já que o partido precisa assumir o ônus de seus equívocos. Lamentável é que o país todo tenha que fazê-lo solidariamente, ainda que num nível menos definitivo. Ainda assim, o país tornar-se uma democracia de fato é responsabilidade de todos.
Fala-se muito sobre o momento atual brasileiro, mas pouco se tem a dizer. Do lado dos ufanistas da ordem e progresso, temos, setores despejados diretamente dos confins das caquéticas aulas de educação moral e cívica, repetindo razões desconexas, bordões, ou puro besteirol, constituídos a partir de “verdades eternas” inventadas pelo marketing.
Não são diferentes da propaganda em que cada comerciante jura que tem o melhor produto do mercado, ou que vende produtos personalizados feitos nas linhas de montagens chinesas. O país acalentado pelas fileiras do ódio é impossível. A moral e os bons costumes são a fachada primordial dos piores canalhas. A vida é plural, e todos nós somos falhos. Podemos realçamos apenas nossas mazelas ou construir um país na soma das nossas virtudes. Mas não é possível, defender um país livre apostando no salve-se quem puder.
É como um dos líderes do movimento anticorrupção ser um corrupto contumaz tungando, inclusive direitos trabalhistas.
Crise política, crise econômica, crise fiscal, crise moral, crise de governabilidade. Essa última palavrinha bem que deveria ser abolida do dicionário político, simplesmente porque não existe como unidade lógica é uma invenção neoliberal para afirmar que governos precisam agradar apenas os donos do dinheiro, do contrário serão desestabilizados.
Estamos nos aproximando de um fenômeno político interessante que é o acirramento da contradição entre a ditadura burguesa, dita democracia e a realidade que esbofeteia os brasileiros cotidianamente. Não quero dizer que o o confronto final está ali na esquina. Mas que nossa realidade toca a crise de legitimidade da democracia, perdão, ditadura burguesa em voga no país.
Insisto em ditadura por razão filosófica. Nem de longe o país vive em conformidade com o que espera, necessita, ou acredita a maioria, e é essa quem arca com o ônus mais pesado da sustentação do país. Uma vez que não existe equidade, que o custo fosse, ao menos, proporcional (se tem que haver ditadura, que, ao menos, seja da maioria, diria Marx).
No caso presente, há um aspecto da legitimidade que corresponde à fisiocracia que caracteriza a política. Outro, um pouco menos raso, consiste na contradição superficial entre as ambições do lulismo e o confronto entre essas e a realidade. Lula era um bom costureiro. Aparentemente imbatível, conta a história recente. Mas um estrategista desastroso. Quase supreende que só agora isso esteja evidenciado.
Confesso que nessa esparrela, minha solidariedade está com Dilma. Em seu lugar, com seu perfil, eu jamais teria admitido concorrer à vaga para a função máxima da articulação política do país. Entendo que a realidade lhe pareça dramática.
O que é ilegítimo no país é o próprio uso do poder e o equívoco do lulismo foi supor que as víboras com as quais concorre se pareceriam com os leais companheiros da esquerda do PT e da CUT, sempre tratados, no mínimo, com desdém, via de regra com truculência bastante parecida com a que vive agora o PT. Manipulações, destruição de reputações, isolamentos e, por fim, uma reapropriação da ditadura anterior: o PT, ame-o, ou deixe-o.
Mas a ilegitimidade decisiva está na exclusão patrocinada pelo modelo político e econômico que se contrapõe à necessidade de existência digna de praticamente toda a população do país.
O PT dispôs o país a corrigir as distorções mais graves, sem onerar os principais exploradores. Ao contrário, manteve e aperfeiçoou o conluio entre governo e os “de cima” pela expropriação da riqueza gerada no país por todos, mas que é destinada a muito poucos. Diante da quase absoluta incapacidade para o diálogo político por parte do governo Dilma, faz sentido que a parcela mais ávida dos donos efetivos do país, prefiram albergar na direção política alguém mais parecido com seus desvios de caráter.
Eis o que condena Dilma. Lula tinha maior empatia e verossimilhança com os exploradores. Dilma é apenas uma infeliz burocrata que um dia pensou entender a que se prestava seu mandato. Como o PT no poder nunca se dispôs a democratizar o país, o peso da truculência política agora recai sobre seu mandato. A legitimidade popular idealisticamente é vã, ou se expressa pela contundência das ruas, ou é adequadamente sujeitada num escaninho formal das instituições, vez ou outra e por conveniência rotulada de opinião pública.
Democracia alguma comporta o capitalismo. O esforço para mantê-los conexos lança o mundo em crises sucessivas, às vezes cumulativas. A democracia foi chamada para escudar os 12 (ou mais?) trilhões de dólares exterminados pela pujante volúpia da sagrada economia de mercado. Seu bastião: o Estado, não é apenas conivente com a corrupção oficializada da expropriação de riquezas, é seu patrocinador. Pelo visto é preciso vestir uma toga num recanto inexpressivo do cenário judicante para se deixar engabelar pela fantasia mais mal ajambrada dos últimos três séculos: A corrupção possui responsáveis, começo, meio e finalidade.
Só mesmo um obscurantismo avassalador para validar uma travessura tão desinteligente.
A suposta democracia do país, de democrática tem muito pouco. Aliás, pouco mais do que o suplício, digo, sufrágio universal, que, por sua vez, possui mais validade para a vigilância pública do que para a democracia.
De tão bizarro, pouca gente realçou que manifestantes pró e contra impeachment reivindicam basicamente um mesmo país. Estudantes clamam ao país condições mínimas de dignidade, que são dilapidadas pela desfaçatez governante. O que torna ainda mais assombrosa a inabilidade do até então principal partido progressista dessa fase republicana (e que, não por acaso, foi o partido de Paulo Freire e Sérgio Buarque de Holanda, dentre tantos).
E quem há de negar que saúde e educação, ou seja temas cruamente sociais são mais importantes para todo o país, do que a sustentação dos agiotas? Sendo bom que se diga, que são os agiotas também os operadores principais da corrupção no país. Onde, raios pretendem chegar nossos governantes?
Impedimentos, interdições, juizes peraltas, novas eleições, corrupção, e quantos engôdos mais se pretender elencar, não irão aplacar a necessidade de mudança de modelo socio-político. A sociedade está buscando uma proximidade maior com o status político dos países que nos são referência.
Se aulas de história e geografia cumprissem seu papel curricular (que o lulismo também negligenciou), a população teria clareza que tem como ideal político a social-democracia europeia. O país não flerta com o Estado mínimo e a livre iniciativa, apenas os mais iludidos com o apocalipse capitalista. Nossa raiz lusitana e latina, felizmente entende que o todo da sociedade deve incluir as garantias gerais e permitir que as pessoas possam cuidar de seus valores primordiais. Sem indigências, exclusões, explorações ou injustiças.
A crise que vemos nas ruas, muito mais que uma luta anti-governamental, é o prenúncio de que uma primavera brasileira está em germinação. Sem prejuízo de que dores e desesperos se instalem antes do desabrochar das flores. Diante da ausência de representatividade política, a sociedade espera dar a luz a um país. Nem que seja a fórceps.


Démerson Dias. Trabalha há 29 anos no Judiciário Federal tendo sido por 20 anos dirigente sindical nessa categoria.

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