quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Verdades que libertam e as que matam

Verdades que libertam e as que matam
por Démerson Dias


Copérnico - escultura de Bertel Thorvaldsen
Academia Polonesa de Ciências
     Recentemente tive a desconcertante experiência de dialogar com um amigo que contesta a forma geoide da Terra.
     É desconcertante porque até pessoas inteligentes podem fazer afirmações estranhas se não tem uma noção básica do conjunto de conhecimentos que a humanidade acumulou desde o tempo em que lascávamos sílex para nos defendermos e caçarmos. Não falo do fogo porque sua descoberta pode ter sido acidental, e seu domínio tecnológico não precisa ter envolvido a interação entre experimentação e elaboração do conhecimento.
     Quero realçar “PODE TER SIDO ACIDENTAL”. Essa não é minha área de conhecimento. E quando não temos certeza de algo, convém admitir a incerteza. Polis é ai que começa a distinção entre ciência e crendice. Em âmbito especializado, existem convenções que auxiliam ao avanço das pesquisas, como dizer que a gravidade é igual a 10 m/s², que a velocidade da luz é aproximadamente 300 mil K/h.
     Na física sabe-se que a aceleração da gravidade ao nível do mar em certa latitude é 9,80665 m/s², daí a convenção. E vai por aí.
     Caminhamos para uma hiper especialização do conhecimento que vai criando multidões de imbecis funcionais. Essa estupidez da “escola sem caráter”, por exemplo, começa extirpando o aprendizados das humanidades e uso do pensamento, as implicações inerentes às relações entre mim e o mundo., o eu e o outro, o eu social e individual.  Se vencedores, o passo seguinte será abominar toda a ciência, como já ocorreu em período histórico no ocidente.
     A imensa maioria das pessoas não fazem ideia da evolução do pensamento humano. Prefiro inclusive me resguardar, tenho certeza que é imensamente maior o montante de informações que desconheço o que a totalidade das coisas que sei, ou conheço. Mas deveria existir um conjunto mínimo de informações que todas as pessoas deveriam saber. A começar pela própria história.
     Todos nós sabemos do ZERO, mas a civilização ocidental só tomou conhecimento dele pelo contato com árabes e hindus. O Império Romano não conhecia o zero até que Leonardo Fibonacci teve contato com a numeração árabe (sec. XIII) . Seriam incapazes de fazer pirâmides como as egípcias. A igreja combateu os que afirmavam que a terra girava em torno do sol. Giordano Bruno foi morto por isso, Galileu Galileu teve que renegar publicamente essa ideia para não ser morto.
     Fico curioso quantas pessoas dessas que contestam o formato geoide se disporiam a morrer por essa crença.
     As pessoas que contestam o formato voam em aviões, não deveriam fazê-lo. O comportamento e toda a aerodinâmica dessas aeronaves está baseada numa ciência que se considera a curvatura da terra, as forças atmosféricas, e essencialmente a gravitação. Se a terra não é arredondada, nem é um “corpo celeste” como todos os demais, nada garante que os aviões não se despedacem no solo, ou mesmo no ar, ou que não escapem da atmosfera para o espaço profundo. Isso para mencionar apenas dois dos riscos de morte envolvidos.
     Paradoxalmente nesse período em que quase todo conhecimento está disponível a todos, conseguimos produzir pessoas que conhecem “pouco demais” sobre muita coisa.
     Quem crê em terra plana precisa dizer em que Newton está errado ao constatar a gravitação. E também porque não voamos para fora do planeta quando pulamos, não somos mortos pelas emissões de raios solares, aliás, precisam dizer como conseguimos respirar e porque todo o oxigênio não escapa para fora do planeta. As pessoas não fazem ideia que negar certos pressupostos científicos implica em negar todo seu entorno.
     A ciência é evolução. Não são verdades estanques e apriorísticas.
     Aliás, vivemos um surto de atentado ao silogismo. As pessoas estão negando a própria lógica formal.
     Todo homem é burro. Olavo é um homem. Portanto Olavo é um gênio, todos os demais são burros. Desculpem que não fui capaz de encaixar “cu” em nenhuma das orações. É uma limitação minha.
     Ainda assim, mesmo a ciência tem seus absurdos. Josef Mengele é o mais conhecido, dentre os cientistas do Reich nazista que não tinha qualquer pudor em dispor, sobretudo dos judeus, para “fazer avançar o conhecimento científico” em mutilações e torturas. Até hoje a ciência vive o dilema sobre dispor de suas constatações. Felizmente hoje existe uma vertente combatendo a experimentação em animais “inferiores” temos tecnologia para restringir o sacrifício de seres sensíveis à cadeia alimentar.
     Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. O conhecimento não é um poder imune às consequências do que se afirma. 
     Não preciso saber em que consiste a gravitação para saber que ela existe, mas se pretendo negá-la devo, ao menos explicar o que está em seu lugar.
     A ciência não evolui por negações, mas por confirmações. Exceto no mundo do infinitamente pequeno e do infinitamente grande, o que valem são esses pressupostos gerais do conhecimento.
     Seres vivos superiores possuem mitocôndrias. Sem elas nenhuma célula com núcleo sobrevive. Se eu inventar um mundo sem mitocôndrias terei que refundar a biologia. Menos que isso é fantasia. Não dá para negar certas afirmações científicas sem negar também o que veio antes, ou depois.
     Não sou devoto do cientificismo. A ciência não explica tudo, nem poderia, o dia que o fizer deixa de existir. Mas ela nos oferece revelações fascinantes sobre a realidade que nos cerca, além de perspectivas instigantes sobre o que está além dela.
     O que parece faltar a algumas pessoas é gentileza e generosidade com a espécie humana. Milhões de pessoas antes de nós moldaram o mundo como o conhecemos porque desvendaram suas leis e definições, outras tantas nos ensinaram como fazê-lo e também como aprender sobre a natureza. Não iremos a lugar algum se a cada momento fizermos questão de negar ou reinventar a roda.
     Há pessoas de boa fé nesse debate, mas seus inspiradores, via de regra, são aqueles pretendem manter o conhecimento como algo restrito, esotérico, pois essa é a única forma de sustentar o obscurantismo. Ou, como aponta o historiador Jeffrey Russell, mais ou menos na  época da inauguração da estátua de Copérnico na Polônia (1830), uns poucos autores de resgataram ideia de terra plana, que. Até então e pelo menos desde Pitágoras (século VI a.C.), o que havia era amplo consenso sobre o formato esférico da Terra (o questionamento que durou bastante tempo tinha relação com o heliocentrismo, não com o formato da terra).
     
No contraponto do que eu escrevi estão outras verdades baseadas em pressupostos que são doutrinas ou dogmas. O que revela, mas não liberta, geralmente, se necessário, mata.

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