sábado, 26 de junho de 2021

Despolitização é projeto político

Démerson Dias


E na TV se você vir

um deputado em pânico

mal de simulado 

diante de qualquer

 mas qualquer mesmo

qualquer, qualquer

 plano de educação

 que pareça fácil 

que pareça fácil e rápido

E vá representar

 uma ameaça 

de democratização 

do ensino de primeiro grau

Caetano Veloso e Gilberto Gil - Haiti



Comemoração Centenáro de Paulo Freire Ilustração: Edgar Vasques / Freireando POA / Reprodução / Divulgação
     Em uma transmissão ao vivo de uma celebridade do mundo da música, uma criança, ao fundo, fala em denunciar Bolsonaro e chamam sua atenção que trata-se de uma transmissão pública.

     Um "campeão" da falácia do empreendedorismo, que abandonou os seus iguais para ser servil no centro da opressão mundial e, por oportunismo, torna-se agente político público. Ao ver que irmão, no pólo oposto das convicções socioeconômicas e fetichizadas, que reafirmava a primazia do bem comum sobre o individual e, por isso era perseguido pelos raivosos defensores da economia de mercado (necessariamente usurpadores do bem público), reconhece a virtude da existência dos serviços públicos.

     Uma das perversões mais espantosas produzida por aquela peçonha pedagógica chamada Educação Moral e Cívica, foi introjetar o dogma de que política pertence à esfera íntima. Esse programa ideológico não se sustenta no cotidiano, mas provoca várias desconstruções nas relações sociais (inclusive o ódio e o obscurantismo).

     Quando o senso comum afirma que não se discute política, religião e futebol, está sujeitando esses temas a um território de violências viscerais.

     Todo assunto suprimido arbitrariamente, escoa para região das pulsões, fetiches e infantilidades.

     O que pacífica é o diálogo. Principalmente porque o exercício de entender que a dimensão do outro é socialmente complementar a dimensão do eu é o que vai patrocinar o surgimento da tolerância na esfera social.

     Quanto mais as pessoas discutem,  se pronunciam e ouvem argumentos a respeito de um tema, maior esclarecimento e conhecimento produzido sobre ele.

     Traduzindo, conversar sobre um assunto é o principal jeito de chegarmos a acordos e consensos, sem que nenhuma das partes precise deixar de defender aquilo que acredita, ou gosta.

     Há alguns anos me incomoda que programas esportivos, irracionalmente diários, apresentem debates esportivos em formato muito similar a um ringue de lutas. E fazem mais sucesso aqueles que mais esbravejam. Programas como esses, ao invés de discutir as virtudes gerais do esporte e dos atletas, semeiam e adubam impulsos afetivos que afirmam que somente anulação e sujeição do time adversário (o outro) garantem a validade do “meu time”. O exercício psico-social cotidiano é que o eu somente subsiste diante da destruição contínua e permanente do outro.

     Na religião, a ideia de "povo escolhido" é o pai das guerras e as atrocidades. Assim como patrocinou a escalada machista que humilhou, torturou e assassinou mulheres. Ao fazê-lo criou as raízes do feminicídio contra o qual, felizmente, hoje nos contrapomos. Não é acidental que a matriz judaico-islamico-cristã seja a que produziu a esmagadora maioria dos processos de destruição.

     Ao contrário do que supõe, por indução ideológica, o senso comum, trata-se de uma estratégia de cerceamento impostas de forma subliminar. E são componente programático de um projeto autoritário de dominação e sujeição da sociedade.

     Essas e outras formas de obscurantismo, além de fazerem parte de qualquer modelo político autoritário, também estão na base da destruição de qualquer processo educacional saudável.

     Praticamente todas as formas religiosas evoluíram em algum sentido para o exercício da tolerância, principalmente o cristianismo. Imagine todas as religiões se unirem contra as injustiças e maldades que aprisionam e exploram seus povos. Teremos revolução.

     O esporte move e monopoliza paixões, imagine se a força da soma de todas as paixões organizadas, caso deixem as disputas apenas dentro do Gramado e busquem, singelamente, lutar por melhorias e garantias no mundo dos esportes (subárea da educação, consiste em entrelaçamento de aspectos socioeconômicos, saúde, e organizacional, ou seja, por extensão, políticos). Teremos revolução.

     Em sua potencialidade toda educação é uma guerra contra as falsidades e a favor do esclarecimento. Imagine todos os educadores e educandos reconhecendo a origem e sustentação das obscuridades, e também que só faz sentido entender o mundo para transformá-lo em algo melhor, quem inclua e admita a todos. Teremos revolução.

     Finalmente, é por isso que nossas mentes foram sabotadas, para termos aversão à discussão e à política. A política não foi uma invenção teórica e acadêmica. Ao contrário, o estudo sobre a política decorre da existência de uma prática social cuja essência está na promoção de um bem comum.

     Pertence à política o desenvolvimento da diplomacia como forma mais sofisticada de solução de conflitos, em particular, para pôr fim às guerras.

     O debate político, quando eu exponho as minhas razões e ouço, com respeito, mesmo que apenas ritualístico, as razões do outro, produz afinidades e sínteses. Inclusive por determinação biológica (busca por padrões convergentes).

     A violência contra o outro, na natureza, só existe no contexto da sobrevivência. Não existe agressão por presunção, exceto em situações muito específicas. Importante notar que numa mesma espécie, isso só foi observado a partir do surgimento de algum tipo de consciência (noção de eu).

     A discussão política produz também o surgimento do “terceiro mediador”. Quando presenciamos a exposição de dois pontos de vista supostamente contrários, somos capazes de entender que as razões de um, não necessariamente exclui as razões de outro. A política é, portanto, também, o território em que os interesses são hierarquizados e dispostos de forma a contemplar da melhor possível a totalidade social. Mais ainda, sem debate político não existe aproximação e inclusão das diferenças. E somente a partir dele rejeitamos a indiferença ao sofrimento alheio, ou comum.

Deu para entender porque ainda não destruímos nossos opressores?


quinta-feira, 3 de junho de 2021

Transgressão ou barbárie

Démerson Dias

“Se for preciso faz a guerra, 
Mata o mundo, 
fere a terra
… canta um hino
Louva à morte
... vai à luta
Capoeira”
 Marcos e Paulo Sérgio Valle - Viola enluarada

 
Detalhe de Guerra e Paz - Candido Portinari - 1956
     Sem transgressão a esquerda não vai a lugar algum, exceto para a direita. O que tem paralisado, e também inibido a esquerda, em parte, descende da negligência em relação tanto a uma crítica radical sobre a realidade, mas também a uma prática radical. Sobretudo, cumpre entender que não existe transformação no conformismo e também que é preciso ter uma prática coerente, consistente e condizente com essa constatação.
     E aqueles que são condescendentes com os erros, dúvidas e descaminhos da esquerda acabam por justificar a barbárie como estágio da realidade “em si”, quando deveriam encará-la como o que, de fato, é: resultado dos insaciáveis processos de opressão, os quais não ocorrem por perversidade moral da burguesia, mas porque a destruição generalizada é tendência estrutural e estável no capitalismo. 
     Não cabe nesta reflexão a complementação dialética desse raciocínio, porque não se trata de destruir tudo o que passou a existir em decorrência do capitalismo, do contrário seríamos devolvidos a formas primitivas de produção. 
     Mas as esquerdas, ao contrário, vão longe demais validando os modos de reprodução capitalistas, como se pertencessem à “natureza humana”, ou correspondessem a condições inerentes da prática social da espécie. O capitaismo não é ontológico, mas constituído históricamente. 
     Em parte, isso tem raízes na forma como a URSS organizou seus modos de produção, em especial seu gestor, o Estado. Parece que, por não ter conseguido ainda conformar uma perspectiva de vida social sem um Estado opressor, as esquerdas acreditam nas “forças da ordem” capitalista.
     As práticas internas das organizações de esquerda sugerem essa incapacidade de superar o autoritarismo e opressão como forma de mediação social, o que não é inconcebível, mas já deveria ser evidente, quando se coloca em perspectiva uma organização comunista da sociedade como efetiva superação do capitalismo. Ou seja, uma sociedade organizada sem a necessidade de um órgão opressor e onipresente que tenha como tarefa tutelar as vontades e disposições gerais das sociedades. 
     Aceitamos e naturalizamos o papel das forças opressoras. Como se diz, “damos de barato” que os aparelhos de repressão possuem o monopólio do uso da força. A esquerda se contenta com o papel de uma necessária expressão de paz. Ao fazê-lo não apenas colabora com as forças da opressão capitalista, como censura e renega as frações da sociedade que recorrem à contra-violência, uma condição que só faz sentido quando a ação violenta indiscriminada e totalitária da ordem, nos introjetou a concepção de cidadania como solução superior à luta de classes.
     Não raro, as esquerdas conformadas, ou remediadas, se apropriam e reproduzem elementos da moral burguesa que justificam que “pobres que recorrem ao uso da força”, seja na forma defensiva, seja expropriando valores para garantir sua subsistência, estão “fora da justa razão”. Essa noção está tão arraigada que mesmo áreas contíguas como expressões de sexualidade, consumo de opiáceos, custam para serem autenticados por setores da esquerda. 
     Nesse cenário, por mais que a autoproclamação queira garantir o contrário, a ação das esquerdas fica aquém dos postulados da desobediência civil, esse desdobramento de comportamento limítrofe, admitido pelo pensamento liberal. 
     Quando o poder constituído determina restrições aos direitos de manifestação, a esquerda protesta veementemente, e aquiesce. Ao fazê-lo valida e reconhece a autoridade do opressor sobre suas formas de luta, ou seja, admite que não possui protagonismo decisivo. 
     Um dado que não é secundário e está sendo explicitado “ad nauseam” pelo bolsonarismo, é exatamente o absoluto descompromisso com pactos sociais elementares de tolerância e convivência pacífica. É preciso muita ingenuidade para não perceber que Jacarezinho, encomendada na véspera por Bolsonaro, não seja um eloquente discurso de insujeição e desqualificação da corte máxima no país. Ou seja, de todo, absolutamente todo, ordenamento jurídico em vigor. O que mais é preciso afrontar para nos convencer que o governo anseia e patrocina a anomia absoluta? E nossa resposta até o momento é que seremos os heróicos responsáveis por restaurar a ordem burguesa diante de seu dejeto fascista. 
     A política e o discurso de ódio, em realidade, não são juízos morais, mas expressão desse descompromisso. Ou seja, são a linha de intervenção que renega qualquer pacto civilizatório, desses com que as esquerdas ainda se iludem. 
     Na base da rejeição que a esquerda empreende em relação a essas práticas está a suposição de que a mera existência, abstrata e formal, de um documento constitucional é suficiente para cumprirmos “com o nosso dever cívico”. Mesmo que essa civilidade seja permanentemente violentada, agora, pelo próprio presidente da república. 
     Impossível que a mensagem da burguesia seja mais clara. Ainda assim, há esquerdas demais colocando-se como fiadoras de um pacto social mais que moribundo. A civilidade brasileira apodrece sob o peso de meio milhões de assassinados pela negligência premeditada do poder central. 
     E o resultado dessa adesão a um pacto já extinto pela burguesia, corresponde exatamente à dificuldade que algumas esquerdas possuem em incorporar prontamente, como deveria ser, as pautas feministas, da negritude, de artistas e mesmo de profissionais do sexo, tidos igualmente como marginais, por uma esquerda que não apenas é utópica, mas convictamente alienada. 
     Notadamente essas esquerdas ficam aquém, em termos de compreensão da realidade social, até mesmo dos postulados do cristianismo primitivo, que corrigia perspectivas autoritárias do judaísmo.
     Todas as estruturas que justificam e reproduzem a ordem capitalista precisam ser decididamente desconstruídas, bem entendido, destruídas em sua funcionalidade reacionária e opressora. Nesse aspecto, até mesmo a desmilitarização das polícias é pauta insuficiente, fora dos marcos dos próprios profissionais de segurança.
     As esquerdas que não são capazes de ir além dos postulados éticos do liberalismo clássico, nem sequer são utópicas. São esquerdas que justificam e trabalham em favor da ordem. E o contexto organizacional das esquerdas sugere que ainda não existe no país alguma organização relevante que possa reivindicar propriamente o caráter revolucionário. 
     O abuso da truculência e da violência institucional na ação política reacionária, não são uma exceção na política brasileira. O Brasil republicano sempre foi um conflito de classes com prevalência de táticas de guerra. Nós é que nos permitimos entorpecer e negar a guerra civil que foi transposta à realidade do país praticamente logo no nascedouro da república.
     Por isso nos custa enxergar a explicitude do discurso institucional do assassinato em jacarezinho. Mas não só ali. Também em Brumadinho, Pinheirinho e inúmeras versões mais tênues ou contundentes. Mesmo a extinção formal da etnia Juma é expressão da luta de classes patrocinada pela burguesia. 
     No entanto, somos tolerantes com a barbárie. Apesar de nossos discursos, nossa prática se subordina à lógica de que a burguesia tem o monopólio da violência, “graças a deus”, porque nós somos virtuosos.
     Entendemos a luta de classes como categoria de análise não como expressão da realidade política. Talvez nos imobilize o fato de que o braço opressor pertence à mesma classe que é oprimida e, dessa forma, vítima e opressor fossem indistinguíveis. 
     Evidentemente esse não é o centro da questão da luta de classes, mas enquanto a esquerda seguir insistindo numa luta de classes sem luta efetiva ela será única vítima. Ou melhor, ela não, mas o povo efetivamente oprimido, porque a maior parte das esquerdas são acomodadas nas classes remediadas. O centro da questão é que as esquerdas não praticam uma luta insurrecional, e não existe revolução sem insurreição, sem transgressão da ordem. 
     As esquerdas podem conseguir pautar uma ruptura por outras vias? Isso é possível em algum futuro. O que está dado, neste momento, é que não haverá transformação real no Brasil que não seja banhada em sangue. E essa é uma imposição dos opressores, não um desejo dos oprimidos. Por enquanto, só o lado opressor está praticando, impunemente, suas chacinas e a isso ainda dão o nome de justiça. Ao fazê-lo, não apenas distorcem e invertem o sentido de justiça, mas estão também afirmando que qualquer rebeldia está fora dos parâmetros civilizatórios aceitáveis por eles.
     Por enquanto seguimos concordando com isso. E o resultado é que somente um dos lados tem seu sangue vertido pelas ruas, rincões e guetos. Seguimos bestializados.