“Se for preciso faz a guerra,
Mata o mundo,
fere a terra
… canta um hino
Louva à morte
... vai à luta
Capoeira”
Marcos e Paulo Sérgio Valle -
Viola enluarada
Detalhe de Guerra e Paz - Candido Portinari - 1956 |
E aqueles que são condescendentes com os erros,
dúvidas e descaminhos da esquerda acabam por justificar a barbárie como estágio
da realidade “em si”, quando deveriam encará-la como o que, de fato, é:
resultado dos insaciáveis processos de opressão, os quais não ocorrem por
perversidade moral da burguesia, mas porque a destruição generalizada é
tendência estrutural e estável no capitalismo.
Não cabe nesta reflexão a
complementação dialética desse raciocínio, porque não se trata de destruir tudo
o que passou a existir em decorrência do capitalismo, do contrário seríamos
devolvidos a formas primitivas de produção.
Mas as esquerdas, ao contrário, vão
longe demais validando os modos de reprodução capitalistas, como se pertencessem
à “natureza humana”, ou correspondessem a condições inerentes da prática social
da espécie. O capitaismo não é ontológico, mas constituído históricamente.
Em
parte, isso tem raízes na forma como a URSS organizou seus modos de produção, em
especial seu gestor, o Estado. Parece que, por não ter conseguido ainda
conformar uma perspectiva de vida social sem um Estado opressor, as esquerdas
acreditam nas “forças da ordem” capitalista.
As práticas internas das
organizações de esquerda sugerem essa incapacidade de superar o autoritarismo e
opressão como forma de mediação social, o que não é inconcebível, mas já deveria
ser evidente, quando se coloca em perspectiva uma organização comunista da
sociedade como efetiva superação do capitalismo. Ou seja, uma sociedade
organizada sem a necessidade de um órgão opressor e onipresente que tenha como
tarefa tutelar as vontades e disposições gerais das sociedades.
Aceitamos e
naturalizamos o papel das forças opressoras. Como se diz, “damos de barato” que
os aparelhos de repressão possuem o monopólio do uso da força. A esquerda se
contenta com o papel de uma necessária expressão de paz. Ao fazê-lo não apenas
colabora com as forças da opressão capitalista, como censura e renega as frações
da sociedade que recorrem à contra-violência, uma condição que só faz sentido
quando a ação violenta indiscriminada e totalitária da ordem, nos introjetou a
concepção de cidadania como solução superior à luta de classes.
Não raro, as
esquerdas conformadas, ou remediadas, se apropriam e reproduzem elementos da
moral burguesa que justificam que “pobres que recorrem ao uso da força”, seja na
forma defensiva, seja expropriando valores para garantir sua subsistência, estão
“fora da justa razão”. Essa noção está tão arraigada que mesmo áreas contíguas
como expressões de sexualidade, consumo de opiáceos, custam para serem
autenticados por setores da esquerda.
Nesse cenário, por mais que a
autoproclamação queira garantir o contrário, a ação das esquerdas fica aquém dos
postulados da desobediência civil, esse desdobramento de comportamento
limítrofe, admitido pelo pensamento liberal.
Quando o poder constituído
determina restrições aos direitos de manifestação, a esquerda protesta
veementemente, e aquiesce. Ao fazê-lo valida e reconhece a autoridade do
opressor sobre suas formas de luta, ou seja, admite que não possui protagonismo
decisivo.
Um dado que não é secundário e está sendo explicitado “ad nauseam”
pelo bolsonarismo, é exatamente o absoluto descompromisso com pactos sociais
elementares de tolerância e convivência pacífica. É preciso muita ingenuidade
para não perceber que Jacarezinho, encomendada na véspera por Bolsonaro, não
seja um eloquente discurso de insujeição e desqualificação da corte máxima no
país. Ou seja, de todo, absolutamente todo, ordenamento jurídico em vigor. O que
mais é preciso afrontar para nos convencer que o governo anseia e patrocina a
anomia absoluta? E nossa resposta até o momento é que seremos os heróicos
responsáveis por restaurar a ordem burguesa diante de seu dejeto fascista.
A
política e o discurso de ódio, em realidade, não são juízos morais, mas
expressão desse descompromisso. Ou seja, são a linha de intervenção que renega
qualquer pacto civilizatório, desses com que as esquerdas ainda se iludem.
Na
base da rejeição que a esquerda empreende em relação a essas práticas está a
suposição de que a mera existência, abstrata e formal, de um documento
constitucional é suficiente para cumprirmos “com o nosso dever cívico”. Mesmo
que essa civilidade seja permanentemente violentada, agora, pelo próprio
presidente da república.
Impossível que a mensagem da burguesia seja mais clara.
Ainda assim, há esquerdas demais colocando-se como fiadoras de um pacto social
mais que moribundo. A civilidade brasileira apodrece sob o peso de meio milhões
de assassinados pela negligência premeditada do poder central.
E o resultado
dessa adesão a um pacto já extinto pela burguesia, corresponde exatamente à
dificuldade que algumas esquerdas possuem em incorporar prontamente, como
deveria ser, as pautas feministas, da negritude, de artistas e mesmo de
profissionais do sexo, tidos igualmente como marginais, por uma esquerda que não
apenas é utópica, mas convictamente alienada.
Notadamente essas esquerdas ficam
aquém, em termos de compreensão da realidade social, até mesmo dos postulados do
cristianismo primitivo, que corrigia perspectivas autoritárias do judaísmo.
Todas as estruturas que justificam e reproduzem a ordem capitalista precisam ser
decididamente desconstruídas, bem entendido, destruídas em sua funcionalidade
reacionária e opressora. Nesse aspecto, até mesmo a desmilitarização das
polícias é pauta insuficiente, fora dos marcos dos próprios profissionais de
segurança.
As esquerdas que não são capazes de ir além dos postulados éticos do
liberalismo clássico, nem sequer são utópicas. São esquerdas que justificam e
trabalham em favor da ordem. E o contexto organizacional das esquerdas sugere
que ainda não existe no país alguma organização relevante que possa reivindicar
propriamente o caráter revolucionário.
O abuso da truculência e da violência institucional na
ação política reacionária, não são uma exceção na política brasileira. O Brasil
republicano sempre foi um conflito de classes com prevalência de táticas de
guerra. Nós é que nos permitimos entorpecer e negar a guerra civil que foi
transposta à realidade do país praticamente logo no nascedouro da república.
Por
isso nos custa enxergar a explicitude do discurso institucional do assassinato
em jacarezinho. Mas não só ali. Também em Brumadinho, Pinheirinho e inúmeras
versões mais tênues ou contundentes. Mesmo a extinção formal da etnia Juma é
expressão da luta de classes patrocinada pela burguesia.
No entanto, somos
tolerantes com a barbárie. Apesar de nossos discursos, nossa prática se
subordina à lógica de que a burguesia tem o monopólio da violência, “graças a
deus”, porque nós somos virtuosos.
Entendemos a luta de classes como categoria
de análise não como expressão da realidade política. Talvez nos imobilize o fato
de que o braço opressor pertence à mesma classe que é oprimida e, dessa forma,
vítima e opressor fossem indistinguíveis.
Evidentemente esse não é o centro da
questão da luta de classes, mas enquanto a esquerda seguir insistindo numa luta
de classes sem luta efetiva ela será única vítima. Ou melhor, ela não, mas o
povo efetivamente oprimido, porque a maior parte das esquerdas são acomodadas
nas classes remediadas. O centro da questão é que as esquerdas não praticam uma
luta insurrecional, e não existe revolução sem insurreição, sem transgressão da
ordem.
As esquerdas podem conseguir pautar uma ruptura por outras vias? Isso é
possível em algum futuro. O que está dado, neste momento, é que não haverá
transformação real no Brasil que não seja banhada em sangue. E essa é uma
imposição dos opressores, não um desejo dos oprimidos. Por enquanto, só o lado
opressor está praticando, impunemente, suas chacinas e a isso ainda dão o nome
de justiça. Ao fazê-lo, não apenas distorcem e invertem o sentido de justiça,
mas estão também afirmando que qualquer rebeldia está fora dos parâmetros
civilizatórios aceitáveis por eles.
Por enquanto seguimos concordando com isso.
E o resultado é que somente um dos lados tem seu sangue vertido pelas ruas,
rincões e guetos. Seguimos bestializados.
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Xi, francisquinho, deitaram a língua na jabuticaba!