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Cultura, propriedade intelectual e apropriação cultural
Démerson Dias
Não existe sequer um mestre das artes plásticas, qualquer seja sua era,
sofisticação ou talento que não deva algo ao bípede humanoide que, certa vez, lambuzou
sua mão de barro e percebeu que podia imprimi-la numa parede de rocha.
Um mercenário caçador de tesouros pode dilapidar um ambiente de
prospecção arqueológica, se apropriar de um exemplar de arte rupestre e
vende-lo para um fetichista ou colecionador de arte.
Um arqueólogo competente deverá se empenhar para preservar, decifrar e
estudar aquela forma de expressão.
Um artista plástico, artesão, ou artista de rua podem se basear nela,
copiá-la em camisetas, xilogravuras, ou
qualquer outro tipo de artesanato, ou arte.
Uma empresa que negocia marcas e imagens pode pagar para que um artista
ou mercadólogo crie um conceito a partir dessa arte e massifique como marca
registrada de algum produto.
Não existe bem cultural na humanidade que seja circunscrito a uma única
comunidade, localidade, aldeia ou povoamento. Da mesma forma no capitalismo
ultraconsumista em que vivemos nada mais consegue ser muito sagrado.
A cultura é basicamente
apropriação, acumulação e aperfeiçoamento em torno de algum elemento
circunstanciado histórica e geograficamente. Assim como as funções utilitárias
e estéticas se alternam indefinidamente.
A cultura não pode, ou não deve, pertencer a um único indivíduo ou
grupo. O maior equívoco existente nesse território são as empresas,
absolutamente incapazes de esboçar qualquer ideia, pensamento, ou imagem
assenhorarem-se de uma formulação humana. No momento histórico em que a humanidade
admitiu como válido o termo “pessoa jurídica” abriu um flanco definitivo para a
expropriação de toda e qualquer criação humana por parte de grupos mercenários.
É absolutamente esdrúxulo admitir que uma coisa (empresa) possa ser dona de uma
produção humana apenas porque financiou direta, ou indiretamente, a criação de
um bem cultural imaterial, ou conceitual (deixo a ciência de lado, porque
lançaria o debate num cipoal). Só não estranhamos esse fato porque encaramos
com uma naturalidade bestial a apropriação da força de trabalho, talento e, às
vezes, da própria alma das pessoas.
Compreensível, mas lamentável o furor, de parte a parte, em torno do
recente debate sobre o uso de turbante por uma paciente de câncer. Verídica ou
não, essa específica a contenda a respeito de apropriação cultural, o tema está
em voga como fruto, bem-vindo, da necessária afirmação étnica e identitária dos
povos originários da África.
A defesa de valores é pertinente, mas todo embate apaixonado produz
desvios. Fatalmente, quando pessoalizamos questões culturais estamos enterrando
a possibilidade de encontrar as virtudes nesse debate. Da mesma forma que só
existe uma raça humana, por mais que existam variáveis baseadas em
circunstâncias geográficas e/ ou históricas, a cultura é produto comum a toda
humanidade. A cultura só é rica por que é plural. Se é focalizada e exclusiva,
aos poucos deixa de ser cultura. Da mesma forma, costumamos nos proteger do
fato de que as formas de extermínio e exploração também fazem parte da cultura
da humanidade.
O limite que define a plausibilidade desse debate deveria estar nas
intenções, circunstâncias e pessoas envolvidas. Uma pessoa sem relação
ancestral com a áfrica usar um turbante não pode ser equiparado, por exemplo
com um missionário de uma religião iconoclasta chutar uma imagem de um
personagem sagrado de outra religião.
Sobretudo, é fundamental entender a circunstância em que um item
cultural é utilizado por alguém alheio àquela cultura é uma ofensa ou elogio.
Elogios podem ser inadequados, claro, mas nesse caso será fundamental discutir
circunstância, propósito e até mesmo território.
Asa Yoelson era um judeu lituano. À revelia de seu pai seguiu carreira
como cantor e deixou sua marca na história do cinema, pintando o rosto de negro
em “O cantor de Jazz”. Será que existe suficiente polêmica acerca de
apropriação cultural na história de Al Jonson?
Existem inúmeras considerações de ordem formal a serem avaliadas que,
aparentemente estão passando ao largo desse debate. Quando um artista copia
arte de um afresco egípcio num tecido e vende como artesanato está lesando a
cultura egípcia? E quando comemos tapioca ou pirão estamos subvertendo a
culinária indígena?
Pra mencionar uma pergunta lançada por Gilberto Gil numa canção, a
umbanda é uma apropriação africana do catolicismo, ou uma imposição europeia
sobre a religião africana? Resistência ou rendição?
Li uma crítica segundo a qual o uso com finalidade puramente estética
do turbante implicaria em apropriação cultural indevida porque trata-se de
indumentária religiosa. Tese temerária, já que turbantes e túnicas são alguns
dos itens de vestimentas mais transculturais que existem. Estampa, padrão de
tecido, modelo representam justamente a “apropriação” específica que cada
segmento social atribuiu ao adereço. Mas o turbante usado em nossos dias é o
mesmo usado pelos povos africanos séculos atrás, ou também estes sofreram as
adaptações derivadas de outras culturas, ou mesmo do modo de produção
capitalista. Desconheço que só existam turbantes ritualísticos e artesanais.
A crítica à apropriação capitalista de bens culturais é pertinente. Mas
tenho lido comentários que basicamente encaram a questão como direito ou
proibição de consumir. Há, inclusive quem afirme que até o uso como opção
estética seria condenável. É lastimável que tenhamos subordinado inclusive a
estética ao seu valor monetário. Se houvesse um monopólio absoluto do turbante de
origem africana bastaria ao capitalismo estilizar um turbante indiano, tingir o
tecido no Marrocos e talvez até compar algum conceito e estampa de alguma
comunidade Inuit. Ninguém teria condições de incomodá-lo. Mas uma pessoa
jurídica é imensamente mais poderosa do que uma transeunte que considere que
aquele adereço a deixará mais bonita. Ou as pessoas vestem coisas para ficarem
mais feias?
Ou seja, alguns acusam a apropriação cultural como que defendendo a
restrição ao uso comercial. Evidentemente, esse discurso só vai funcionar com
indivíduos periféricos do mercado consumidor. Há décadas os turbantes
frequentam os desfiles pret-a-porter. Inclusive Simone de Beauvoir. Clamores de
apropriação passam ao largo daquelas passarelas. Seria pertinente indagar se só
as pessoas à margem da cultura oficial estão praticando apropriação cultural?
Estética é aspecto cultural que funciona como motor evolucionário da
espécie humana. Não é so válido, é obrigatório denunciarmos quando o deus
mercado subverte itens culturais com finalidade de lucro (ou ainda como
dominação ideológica) Mas quando esse debate desce às pessoas fatalmente
estamos transitando para a cultura do totalitarismo.
Outra linha de argumentação duvidosa diz respeito à uma eventual
imposição de que o uso deveria estar condicionado à valorização histórica e
cultural e inclusive religiosa. Eis uma trilha perigosamente dogmática. Afirmar
que só pode ter acesso a bem cultural quem compartilhar do ideário (político,
científico, religioso etc) é sintoma de fundamentalismo.
Não existe um bem cultural sem antecedentes. Alguns, inclusive encontrados
na própria natureza. Turbantes não fariam sentido entre as populações tropicais
da região pantaneira ou amazônica. Mas ocorreu de forma indeterminada em uma
faixa razoavelmente ampla entre África, Ásia e Europa.
Ainda que houvesse uma apropriação nociva, ela ocorreu décadas atrás.
Por falar em Al Jonson, a portuguesa Carmem Miranda já havia se apropriado em
terceira mão do turbante no início do século passado. Não consta que usava para
aviltar a cultura africana embora tenha lucrado com seu uso.
No caso de símbolos culturais sempre lamento o preconceito com que o
nazismo manchou a suástica. Símbolo semi universal da humanidade encontrado
tanto na cultura nórdica quanto na hindu asiática.
Muito antes de ser símbolo do cristianismo a cruz era, por exemplo,
adaga. Aliás, o cristianismo em si mesmo é uma religião sincrética. E evidente
a relação da cruz com o símbolo quaternário, cuja origem se perde na história
do simbolismo humano.
Acho necessário que qualquer etnia ou segmento valorize seu símbolos e
resguarde sua identidade. Mas não saber distinguir quando uma opção mesmo
estética representa valorização desse símbolo e confundir isso como degradação,
ofensa, ou expropriação é basicamente inverter a lógica racista que devemos
combater.
Nossas identidades nos valorizam, mas acima de tudo é preciso não ceder
às fragmentações política e culturalmente arbitradas.
Esse capítulo de nossa cultura não estará superado enquanto não for
consenso que não existe mais de uma raça humana no planeta. E isso não deve
desmerecer qualquer etnia ou cultura. Quando eu canto um fado, luto kung-fu,
uso turbante, ou fotografo um minarete não estou expropriando cultura, mas
valorizando-a. Mas é preciso ter generosidade e respeito para não confundir
afinidade e respeito com seu exato contrário, nem muito menos ver ofensa quando
o que existe é elogio.
Acho importante deixar pelo menos apontado um aspecto que
sintomaticamente passa ao largo de discussões como essa que poderiam dirimir praticamente
qualquer polêmica. Quando vamos discutir especificidades culturais e étnicas
relacionadas à ancestralidade africana, a qual ancestralidade especificamente
estamos nos referindo? Já que não se trata todo unitário. Mas qual das etnias
possui primazia nessa questão? Descendentes de Guiné, bantus, sudaneses etc? A
afinidade que consolida os descendentes africanos como referência unitária é
pós africana. Antes, disso existiam etnias distintas com valores e culturas
diversos. Fico sempre com a impressão que tratamos como um país único o que é,
em verdade, um continente. Com tantas variáveis quanto as que encontramos entre
tupis, ianomâmis, xavantes etc.
Embates culturais jamais deveriam descer ao nível dos indivíduos, não
existe um de nós sequer que não seja mestiço de inúmeras tendências culturais.
O Brasil aliás, é expressão virtuosa dessa mescla. O grande expropriador segue
incólume e absolutamente alheio ao embate entre ofendidos e ofensores.
Cultura deve existir como referência de identidade, quando reivindicada
como propriedade passa a ocupar outro departamento das relações sociais. A
prática que reivindica direito autoral, exclusividade de uso ou prerrogativa e
direito a propriedade é a dos exploradores. Aos explorados, costuma caber a
solidariedade, unidade e generosidade.
A questão central é justamente a virtude e finalidade da cultura. Cultura
é bem comum e sua expropriação, essa sim é condenável. Convém ir às raízes da
questão cultural, nestes tempos o que apela para a exclusividade não é cultura,
é o mercado.
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