segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Sobre a barbárie que nos espreita






Sobre a barbárie que nos espreita
Démerson Dias*



Angústia, medo e estranhamento são sensações cotidianas que devem afligir qualquer humano que viva no Brasil neste início de 2017. Não posso agora aprofundar o primeiro equívoco desta frase, a crise é civilizatória, cíclica e estrutural. Ou seja, alcança todo o mundo civilizado em graus diversos, parece recuar em alguns momentos e nos afeta de maneira visceral, pois não bastarão alívios cosméticos. Alguns brasileiros querem crer que a versão brasileira da crise é a pior do mundo, ou ainda, é exclusiva, e às vezes conseguem crer, de fato. Mesmo com um Trump esfregado em nossas janelas. 
Tampouco posso me dedicar aos otimistas contumazes como um senhor numa conversa de taxi que, a cada vez que a conversa esbarrava na “realidade” dizia: “Mas vai melhorar!”. Ou ainda, os “coachs” do eterno entusiasmo e positividade.
A questão é que a dor, o medo, o desconforto, a depressão, não são, nem o mal em si, nem mesmo sua causa. Aprender a lidar com essas inseguranças não é apenas necessidade, é a única possibilidade de rompermos com o ciclo. E quanto mais a fundo formos, quanto mais radicais nossas investidas para desvendá-las, mais perto dessa ruptura estaremos. Usar chavões de auto-ajuda para localizar a crise não a torna mais suportável, é como tentar escondê-la debaixo do tapete. E o volume embaixo do tapete cada vez mais vai tomando conta do recinto todo, porque fugir do desafio não o torna mais fácil, simples. E não, isso não nos torna “vencedores”.
Não é possível ser resiliente a tudo. Morrer não significa resiliência à vida, é apenas parte natural e decorrente de estar vivo. Não encontrar forças para superar os desafios não significa ser fraco, às vezes os desafios estão mesmo fora da nossa capacidade, mas negá-lo não vai torna-lo menor.
Quase não resisto a mencionar o zen, de onde foram destiladas boa parte das receitas de positividade e auto-ajuda, o ego não pode ocupar a centralidade da solução, pois é parte, quando não o todo, da centralidade do problema.
A questão que quero abordar sobre aquela frase inicial parte de outra abordagem.
Independe da profundidade do abismo, da lancinância da dor, se há chance de superar os percalços ela não estará na fuga, mas na contraposição. É preciso encarar o desafio de frente, pois é assim que ele nos confronta. Tampouco é possível tergiversar com o desastre, ele está em curso, não é recente e não vai desaparecer ao sopro de algum encanto.
Existe uma matriz econômica de onde ramificaram parte dos problemas. A crise de 2008 (subprime) não passou, não foi marola e o que foi lançado como solução apenas tornou-a mais dramática. Socializar a crise e bonificar seus inventores, que é a típica solução do capitalismo, apenas levou a crise a um estágio mais profundo.
A aparente primazia política é, em verdade, social. Só parece política porque os que a causaram (junto com seu partido, a mídia) precisam reivindicar estar no controle, como justificar sua inocência, porfiando que apenas por eles chegaremos a alguma solução.
Mas o ódio desvairado que assola algumas coletividades no planeta, agudamente no Brasil, demonstram a agonia de um modelo de valores que, não apenas não comporta mais as contradições (e possibilidades) internas, mas também esgotou seu repertório de “soluções”.
O passo seguinte implicará em novo encolhimento da quantidade de eleitos à salvação (claro, há novos ricos pululando no mundo, que horror!). No Brasil, as classes remediadas serão solapadas com mais virulência do que ofenderam os neoconsumidores de linha branca, carros e passagens aéreas.
 A parcela do mundo a ser salva da barbárie calculada precisa abocanhar mais algumas cabeças. Não é mais possível sustentar a exploração “necessária” apenas com o contingente de marginais. Diriam os crentes na mobilidade social que é preciso “cortar na carne”. Eles acreditam que são parte da classe predestinada
Tolice, a elite do mundo precisa apenas de mais despojos e agora almeja empobrecer antigos remediados.
No Brasil esse é o padrão da crise em seu aspecto institucional e econômico, os miseráveis que tiveram algum alento do assistencialismo engajado, serão o lastro que irá rebaixar uma parcela até então remediada. Aqueles que administravam o matadouro são convocados a entrar na fila do abate.
O clamor pela paz é fútil, a paz foi conspurcada há tempo demais e as primeiras vítimas das atrocidades, seus cadáveres, e os sucessores deles já estão ensurdecidos de tanto gritar por respeito.
Não me parece possível ainda determinar o custo humano da crise que vivemos, o que consigo vislumbrar é que novas matrizes de ação política e social precisam ser conectadas. Respostas à barbárie são ensaiadas em pequena escala aqui, ali, planeta adentro.
Os autoritarismos, salvadores da pátria, heróis e mesmo os gênios da humanidade perderam a primazia de sancionar seu legado. As soluções são colaborativas, não pela indulgência dos poderosos, mas justamente pela generosidade dos espoliados de poder, dos desvalidos.
Fora da estratosfera elitista, cercada por muros de preconceito e carne viva, somente poderão sobreviver os que souberem reconhecer seus iguais e trabalhar solidariamente pela autopreservação.
As sessões de ódio são contagiosas, mas se consomem, antes, a si mesmas. Assim como as crenças na positividade segregacionista, serão gravetos na turbulência. Apenas os que forem capazes de aceitar a virtude da pluralidade, a força da generosidade e a soma das identidades dentro da diversidade, terão condições de abrir caminho por sobre a barbárie. Os "deserdados" da terra precisam reconhecer a crise como um parto. Mas é fundamental não deixar o feto morrer ainda no útero.

* Ilustração - Autodestruição - Self-Destruction - William Niu, ilustrador estadunidense. http://niuner.deviantart.com/art/Self-Destruction-176389322


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