Sobre a barbárie que nos espreita
Démerson Dias*
Angústia, medo e estranhamento são
sensações cotidianas que devem afligir qualquer humano que viva no Brasil neste
início de 2017. Não posso agora aprofundar o primeiro equívoco desta frase, a
crise é civilizatória, cíclica e estrutural. Ou seja, alcança todo o mundo
civilizado em graus diversos, parece recuar em alguns momentos e nos afeta de
maneira visceral, pois não bastarão alívios cosméticos. Alguns brasileiros
querem crer que a versão brasileira da crise é a pior do mundo, ou ainda, é exclusiva, e às vezes
conseguem crer, de fato. Mesmo com um Trump esfregado em nossas janelas.
Tampouco posso me dedicar aos otimistas contumazes como um senhor numa conversa
de taxi que, a cada vez que a conversa esbarrava na “realidade” dizia:
“Mas vai melhorar!”. Ou ainda, os “coachs” do eterno entusiasmo e positividade.
A questão é que a dor, o medo, o desconforto, a depressão, não são, nem o mal
em si, nem mesmo sua causa. Aprender a lidar com essas inseguranças não é
apenas necessidade, é a única possibilidade de rompermos com o ciclo. E quanto
mais a fundo formos, quanto mais radicais nossas investidas para desvendá-las,
mais perto dessa ruptura estaremos. Usar chavões de auto-ajuda para localizar a
crise não a torna mais suportável, é como tentar escondê-la debaixo do
tapete. E o volume embaixo do tapete cada vez mais vai tomando conta do recinto
todo, porque fugir do desafio não o torna mais fácil, simples. E não, isso não
nos torna “vencedores”.
Não é possível ser resiliente a
tudo. Morrer não significa resiliência à vida, é apenas parte natural e
decorrente de estar vivo. Não encontrar forças para superar os desafios não
significa ser fraco, às vezes os desafios estão mesmo fora da nossa capacidade,
mas negá-lo não vai torna-lo menor.
Quase não resisto a mencionar o
zen, de onde foram destiladas boa parte das receitas de positividade e
auto-ajuda, o ego não pode ocupar a centralidade da solução, pois é parte,
quando não o todo, da centralidade do problema.
A questão que quero abordar sobre
aquela frase inicial parte de outra abordagem.
Independe da profundidade do
abismo, da lancinância da dor, se há chance de superar os percalços ela não
estará na fuga, mas na contraposição. É preciso encarar o desafio de frente,
pois é assim que ele nos confronta. Tampouco é possível tergiversar com o
desastre, ele está em curso, não é recente e não vai desaparecer ao sopro de algum
encanto.
Existe uma matriz econômica de
onde ramificaram parte dos problemas. A crise de 2008 (subprime) não passou,
não foi marola e o que foi lançado como solução apenas tornou-a mais dramática.
Socializar a crise e bonificar seus inventores, que é a típica solução do
capitalismo, apenas levou a crise a um estágio mais profundo.
A aparente primazia política é, em
verdade, social. Só parece política porque os que a causaram (junto com seu partido,
a mídia) precisam reivindicar estar no controle, como justificar sua inocência,
porfiando que apenas por eles chegaremos a alguma solução.
Mas o ódio desvairado que assola
algumas coletividades no planeta, agudamente no Brasil, demonstram a agonia
de um modelo de valores que, não apenas não comporta mais as contradições
(e possibilidades) internas, mas também esgotou seu repertório de “soluções”.
O passo seguinte implicará em novo
encolhimento da quantidade de eleitos à salvação (claro, há novos ricos
pululando no mundo, que horror!). No Brasil, as classes remediadas serão
solapadas com mais virulência do que ofenderam os neoconsumidores de linha
branca, carros e passagens aéreas.
A parcela do mundo a ser salva da barbárie calculada
precisa abocanhar mais algumas cabeças. Não é mais possível sustentar a
exploração “necessária” apenas com o contingente de marginais. Diriam os
crentes na mobilidade social que é preciso “cortar na carne”. Eles acreditam
que são parte da classe predestinada
Tolice, a elite do mundo precisa
apenas de mais despojos e agora almeja empobrecer antigos remediados.
No Brasil esse é o padrão da crise
em seu aspecto institucional e econômico, os miseráveis que tiveram algum
alento do assistencialismo engajado, serão o lastro que irá rebaixar uma
parcela até então remediada. Aqueles que administravam o matadouro são
convocados a entrar na fila do abate.
O clamor pela paz é fútil, a paz
foi conspurcada há tempo demais e as primeiras vítimas das atrocidades, seus
cadáveres, e os sucessores deles já estão ensurdecidos de tanto gritar por
respeito.
Não me parece possível ainda
determinar o custo humano da crise que vivemos, o que consigo vislumbrar é que
novas matrizes de ação política e social precisam ser conectadas. Respostas à
barbárie são ensaiadas em pequena escala aqui, ali, planeta adentro.
Os autoritarismos, salvadores da
pátria, heróis e mesmo os gênios da humanidade perderam a primazia de sancionar
seu legado. As soluções são colaborativas, não pela indulgência dos poderosos,
mas justamente pela generosidade dos espoliados de poder, dos desvalidos.
Fora da estratosfera elitista,
cercada por muros de preconceito e carne viva, somente poderão sobreviver os
que souberem reconhecer seus iguais e trabalhar solidariamente pela
autopreservação.
As sessões de ódio são
contagiosas, mas se consomem, antes, a si mesmas. Assim como as crenças na
positividade segregacionista, serão gravetos na turbulência. Apenas os que
forem capazes de aceitar a virtude da pluralidade, a força da generosidade e a
soma das identidades dentro da diversidade, terão condições de abrir caminho
por sobre a barbárie. Os "deserdados" da terra precisam reconhecer a crise como um parto. Mas é fundamental não deixar o feto morrer ainda no útero.
* Ilustração - Autodestruição - Self-Destruction - William Niu, ilustrador estadunidense. http://niuner.deviantart.com/art/Self-Destruction-176389322
* Ilustração - Autodestruição - Self-Destruction - William Niu, ilustrador estadunidense. http://niuner.deviantart.com/art/Self-Destruction-176389322
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