sábado, 4 de março de 2017

A Dor Como Mercadoria



A Dor Como Mercadoria
Démerson Dias
Detalhe de Guernica - Picasso - 1937
 Ana Victoria Rodrigues Silva, 6 anos, moradora da favela da Vila Prudente é baleada, e há controvérsias sobre a recusa de policiais ali presentes em prestar socorro à menina[1]. Talvez os tiros que a vitimaram tenham partido desses policiais.
João Victor Souza de Carvalho, de 13 anos, foi morto após abordagem de seguranças de uma loja Habib’s[2], ao invés de prestarem socorro, os seguranças o arrastaram e jogaram no chão “feito um pacote flácido”. Talvez o menino tenha sido assassinado pelo segurança.
Um jogador de futebol condenado por ser mandante do estrangulamento, assassinato, esquartejamento e ocultação do corpo de Eliza Samúdio está em liberdade, não por progressão da pena, mas porque o Judiciário veio em seu socorro atendendo a alegação de que a morosidade do próprio judiciário está produzindo uma injustiça nos termos da lei. Talvez valha a pena mencionar que Eliza era atriz de filme pornô e estaria, segundo seus assassinos, chantageando o nobre esportista em razão de um filho de ambos. Há quem considere que em um enredo como esse e diante do currículo da vítima, o crime seria justificável.
Para alguns a pena de morte é sumária e dispensa até mesmo culpa. Para outros cabem recursos e vigilância contra eventuais danos ou deslizes formais. Ou como se diz, para um dos brasis todos são inocentes até prova em contrário. Para o outro, todos são suspeitos, culpados e as penas, inclusive a morte, são cumpridas imediatamente, via de regra os justiceiros estatais preferem aplicar de vez a pena irrevogável.
Não são apenas duas realidades sociais. São dois ordenamentos jurídicos distintos. Nos enganamos dizendo que a lei é descumprida em relação aos pobres, quando, em verdade, a lei para os pobres é a aplicação mais draconiana e extrema possível de qualquer ordenamento. O esportista está sendo solto porque é o que garante a lei a um “réu primário, com bons antecedentes”.
Pretos, pobres e brancos pobres como pretos e mulheres são assassinados porque nasceram culpados e seus antecedentes são sempre incriminadores e desprezíveis. Há um Brasil em estado de exceção permanente.
Essas são apenas algumas notícias colhidas nos últimos dez dias. Com pouca  “sorte” podemos encontrar conjunções trágicas em qualquer tempo na cobertura de morbidez funcional da mídia.
Uma canção da década de 70[3], dizia que "a dor da gente não sai no jornal". Hoje aparece, mas como espetáculo, como se fosse apenas mais um folhetim fictício. Existe uma exaltação ritualística da violência, narradores com voz impostada, dramaticidade ensaiada, cenas cinematograficamente dirigidas, toda essa mis-em-scene banaliza a dor e nos provoca, não a solidariedade, mas o alívio de não ter sido essa a nossa vez. A violência parece uma fatalidade, não uma decisão arbitrada pelos “de cima”.
Pessoas consomem morbidez e, dado o “ibope” parece que sentem prazer nisso. Talvez esbocem indignação, ou até desejo de vingança. Mas nada que possa contrariar os ditames da disseminação do ódio e do medo. Claro, do contrário, a mídia corporativa não apostaria nesse filão. Vendem dramas e dores como um estalo de chicote a nos lembrar que sabemos rugir.
A criminalidade é patrocinada em primeiro lugar pela escancarada iniquidade do país, é legitimada pela truculência e genocídio estatal. Ingênuo é achar que todos vão morrer dando graças ao sistema opressor. A violência na sociedade é basicamente reativa.
Não é que a criminalidade esteja na moda, está onde e como sempre esteve, a injustiça também. No entanto, não estamos mais próximos de dar um tratamento humanitário aos dramas da criminalidade do que estávamos há 30 anos.
Assim como o crime organizado beneficiou-se do convívio com a inteligência política que combateu, morreu e perdeu a guerra contra a ditadura de 1964, os esquadrões da morte tornaram-se, enfim, política de segurança consumada.
Mentecaptos elogiam torturadores em suposto templo da democracia e uma turba de acólitos baba convulsivamente em seu louvor. Exceto pelos indignados de sempre, pelos cínicos e pelos bandidos de outros empreendimentos que aquiescem condescendentemente em silêncio.
Na mídia, mesmo quando a ênfase da matéria está na palavra dos familiares das vítimas, o tratamento editorial insinua que se trata do "outro lado". O lado certo é o da criminalidade, a contestação é suposição. Policiais são vítimas da violência porque são seu principal instrumento. Para o sistema a morte de policiais é basicamente dano colateral e efeito moral para instilar ainda maior violência do aparelho repressor.
Um policial morto nunca será vinculado ao seu colega de corporação que pratica o sadismo institucional. Bons policiais morrem, maus policiais também. Uma parcela dos fora-da-lei são criminosos contumazes, adestrados ou naturalizados. Alguns outros são peões. A quantidade de mortes de custodiados pelo poder público desmoraliza qualquer vocação para a justiça que exista no aparato policial. Não é apenas repressor, cumpre política de extermínio.
O que realça o Brasil no mapa da morte, além das vítimas diretamente envolvidas nos confrontos entre policiais e marginais, é que uma infinidade de danos colaterais não são computados como pessoas inocentes. Nascer, crescer e viver numa favela, já não fosse suplício suficiente, é preliminar para suspeição. Empresas de segurança possuem prerrogativas acima da cidadania, poder de polícia e presunção de inocência.
O combate ao crime organizado cumpre basicamente o mesmo papel que a guerra ao terrorismo. São pano de fundo para disputa de poder e mercado. Quando um helicóptero com mais de 400 quilos de cocaína  é acobertado por todas as instâncias e autoridades, fica claro o embuste da fachada. O governante que leva o posto avançado da polícia para a boca da periferia o faz para encobrir que não enviou para lá educação, saúde e condições mínimas de dignidade. A polícia chega como advertência aos que não se conformarem da maneira mais subserviente possível. Chega para bater, torturar e matar. E as pessoas de bem exige que sejam recebidos de braços abertos.
Mas o senso comum apregoa que pretos, pobres e brancos pobres como pretos, são como escória. Exército de reserva.
Deveria estar mais do que claro que as instituições e o poder público não pretender alterar a situação. O Ministério Público mantém em nível apenas residual o acompanhamento da ação policial ilegal, ou truculenta. As defensorias de boa vontade não apenas são violentadas em seu ofício[4], como correm, seguidamente, o risco de viver a mesma sorte daqueles que pretendem defender[5].
O país precisa desmascarar a própria hipocrisia e enxergar que vivemos um ambiente de guerra civil permanente e o Estado está nas duas frentes, combate e fomento do crime, não se distingue fundamentalmente da criminalidade. Os criminosos não cumprem a lei, o Estado jamais pode deixar de cumpri-la. Justamente quando o faz, dá início à reação em cadeia.
É irrelevante demandar de forma passiva as autoridades sobre o estado de violência. Dentre as suas finalidades, a política de extermínio, é uma plataforma higienista, além de cumprir o papel de manter o medo generalizado em um nível tangível. Que outra razão haveria para manter a polícia com caráter militar, se não para perseguir os “inimigos internos” do sistema? E por que nas metrópoles a pedagogia policial é idêntica à do crime organizado? Às vezes coincidem até no linguajar.
As polícias não são uma cura para a violência, e sim, uma prescrição de uso contínuo em qualquer Estado autoritário. E estes são a imensa maioria dos Estados no planeta.
A violência é subproduto da injustiça. Quando o Estado deixa de cumprir seu papel fundamental de indutor, promotor e defensor da justiça, a repercussão se estende por toda a sociedade. Mas ao estado cumpriria a missão de ser solução para a violência. Não sua causa.
Se o Estado é incapaz de ser justo, é necessário redefinir o Estado e inventar  um critério de justiça que não seja ódio, nem vingança, e que seja capaz de impor ou constranger o Estado a cumprir sua função sem hipocrisia.

Criança Morta-Portinari-1944

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Xi, francisquinho, deitaram a língua na jabuticaba!