Imagem: Dinho Lascoski / Instagram |
Apesar da adjetivação no título, minha intenção é enfatizar que estamos lidando com um evento político relacionado a um tipo de exceção cognitiva. E lançar mão da adjetivação implica em aceitar que minha capacidade de análise está aquém do fenômeno em si, ou seja, nesse caso, reflito porque não entendo.
E que fenômeno é esse que leva milhões de pessoas a relativizar uma chacina, por conivência, de 680 mil pessoas?
Minha primeira constatação foge ao cerne da questão, para traçar uma perspectiva mais ampla: as esquerdas não possuem ferramentas para incidir efetivamente na realidade brasileira.
A fragmentação compulsiva e o sectarismo programático nos colocam “fora de fase” em relação à parcela ampla e expressiva da população, o chamado “povo”, mas que é também chamado de classe que vive do trabalho.
Da mesma, forma não entendemos nossos adversários, a burguesia. Ainda que tenhamos clareza de que ela não é monolítica, parcela das esquerdas precisam que, grosso modo, seja. Só assim, Lula (ou as outras direções validadas pela classe mais do que pretensos revolucionários) é um convicto rendido ao capitalismo, não alguém que tem sabido explorar suas contradições para alavancar uma conciliação de classes consistente.
Numa perspectiva que se pretenda marxista, o problema em torno da conciliação de classes não consiste em ser uma heresia, essa conciliação foi cunhada fundamentalmente pelo varguismo e Lula vem aperfeiçoando a solução.
Conciliação que é evidentemente frágil, por não ser conciliação entre partes soberanas. A conciliação é um engodo vanguardista, já que, nem mesmo a burguesia, se compromete efetivamente. Vargas pagou com a vida por ela. Então, esclarecendo, conciliação com a burguesia é sempre a socialização dos prejuízos e a privatização dos lucros.
Não se trata de uma frente COM o povo, mas um espetáculo PARA o povo, em que o valor do ingresso vai todo para o dono do circo. A conciliação elimina a classe trabalhadora da mesa de negociação, ficando em seu lugar, seus representantes tipicamente definidos conforme a expressão burguesa de democracia.
Feita a (longa) ressalva, temos já uma primeira pista para interpretar o sucesso da rearticulação fascista no país. Seria possível mais digressão, já que existem outras similaridades com Vargas, quando a burguesia perdeu unidade, Vargas surge como conciliador e não por coincidência surge também o integralismo, em ambos os momentos o país vive situação simultânea com o capitalismo mundial.
Como o povo fica sempre fora dos “pactos sociais” do capitalismo, qualquer um que tenha uma abordagem crítica condizente e mais simples sobre o pacto burguês pode assumir em seu nome, ou contra ele, algum protagonismo. Dito de outra forma, o bolsonarismo cresceu à sombra da conciliação de classes, assim como o integralismo, ainda que não exclusivamente em função dela.
Outro aspecto que me parece pertinente é que setores excluídos da concertação, tanto das burguesias quanto das classes trabalhadoras, passam a orbitar o modelo explicativo que “revela” sua exclusão do centro decisório.
Bolsonaro consegue ocupar o espaço de representação popular, ou burguesa para aqueles setores que aspiravam protagonismo, ainda que sem reflexão consciente.
O comprometimento dos pastores da prosperidade é decorrência previsível, já que catalisam subjetividades das classes trabalhadoras ao mesmo tempo que, ou em razão daquela, passam a ocupar espaços no campo da burguesia periférica e parasitária. Tais pastores remetem às capitanias coloniais e a seus iguais na burguesia suserana. Em alguma medida essa burguesia reproduz a vassalagem feudal periférica, ou colonial (um emblema tão ridículo quanto eloquente é o empresário que coloca uma Estátua da Liberdade como símbolo de sua empresa, cujo nome é saudosista da ditadura de Fulgêncio Batista).
Outro aspecto pertinente diz respeito aos viúvos da mais recente ditadura burguesa explícita no Brasil, a de 1964. Alguns setores, justificados no autoritarismo foram compelidos a se recolherem do palco central da política, mas tiveram seus lugar-tenentes pendurados não apenas pelo artigo 142 da constituição de 1988, senão, principalmente pela militarização das forças policiais, até mesmo em âmbito civil.
Alguns dos mais renomados torturadores eram civis, como o próprio DOPS, e, sabemos hoje, que a plateia das torturas também contava com empresários tão pervertidos quanto os torturadores. Provavelmente não se reivindica a tortura1 como estratégia de guerra, mas como exaltação da própria perversão, assim como policiais que se comprazem matando um deficiente numa câmara de gás improvisada, seguindo instruções de cursos preparatórios para facínoras.
Por isso também insisto que não se tratava exatamente de uma ditadura civil militar, mas de uma expressão cabal da própria burguesia operativa e seus serviçais, atuando em nome do conjunto daquela classe.
Uma chave explicativa desse contexto, parece-me repousar num aspecto tido como periférico: a pauta da educação moral e cívica. Sentido em que, provavelmente, a burguesia patrocina um ajuste no mito fundador brasileiro.
A criminalização (vulgarmente, marginalização) dos povos escravizados e dos originários não era suficiente para manter as influências desses povos fora do protagonismo político. Era preciso criar uma moral que desse conta das subjetividades. E o recurso, em alguma medida, foi semelhante ao utilizado pela Inglaterra que impôs o vício de ópio na China para, em seguida, chamá-los de doentes, e a doença era exatamente o ópio impingido a eles.
No Brasil a marginalização foi naturalizada, como fenômeno característico das populações oprimidas, índios não prestavam para ser escravos porque eram preguiçosos, não rebeldes, e negros não foram libertados porque a história deu razão à sua causa, mas como benesse dos setores “nobres”. Mal-agradecidos, tornaram-se bandidos.
Ocorre que a democracia, ou qualquer ensaio dela, instala, ou restaura protagonismos e demole mitos morais. Nos últimos 30 anos esses setores vinham sendo progressivamente incluídos, não apenas na cena política, talvez principalmente, na cena econômica. Ressalto que os povos originários brasileiros conquistaram, perante o mundo, o protagonismo no discurso ambiental brasileiro. Essa ênfase é necessária porque, mesmo setores à esquerda os considera mais primatas do que rebeldes.
Eis que aqueles setores que tinham sido relegados aos bastidores e armários, suportavam cada vez menos o silêncio obsequioso. A guerra civil que despeja sangue negro e originário (e dos próprios policiais, “pretos, pobres, ou brancos pobres como pretos”) não era mais suficiente para aplacar o vício necrófilo desses setores que, ao contrário do que quer crer a religião do trabalho, ocupam posição em todas as castas do sistema de vassalagem, inclusive o popular, já que, por excelência, os capatazes modernos são as forças policiais.
E não é acidental que o estopim, ou gota d’água, tenha sido o assistencialismo turbinado, aplicado pelo lulismo. Pobres frequentando aeroportos, empregadas indo à disney e tendo acesso a celulares, plebe envergando grifes em que só não constavam as etiquetas porque todas são e produzidas pelos mesmos escravizados “modernos” em qualquer parte do mundo.
O produto da conciliação remediada, segura e progressiva esbarra na moral recalcada que se sente cada vez mais humilhada. Como os instrumentos ideológicos da burguesia nunca foram desarmados, como o protagonismo político nunca alcança, de fato, a base da sociedade, e como a luta de classes é encoberta e mistificada, surge o bolsonarismo como produto da moral autoritária que não é acolhida na mesa do banquete conciliador. E percebe que, cada vez mais, se aproxima da fração social que sobrevive das migalhas que escapam à mesa do banquete.
Em boa medida isso reitera, inclusive, o postulado marxiano que afirma que o capital é um instrumento de mediação social, mas o que é determinante na caracterização da burguesia é o efetivo controle das forças de produção. A parcela dos capitalistas que não estão no comando, rebela-se e conta, para isso, com a fração autoritária das classes trabalhadoras que, sem educação libertária, sonha em ser opressora.
A diferença entre a patologia biologicamente orgânica, ou psíquica e a politicamente orgânica e autoritária é que a segunda produz 680 mil mortes e ainda se ufana disso.
Não existe eleição que pacifique isso.
1Foi distribuída versão em que, por lapso de revisão, aparecia a palavra cultura no lugar de tortura. Os dedos as vezes tem vida própria, ou conexão direta com o subconsciente kkkkkk O texto, de correção / esclarecimento, gira em torno do seguinte: Camaradas, esse texto é a síntese do que venho tentando refletir como caracterização do bolsonarismo desde 2013. Para quem vem aturando meus desmazelos formulativos as reiterações são evidentes. 🤣. Não vou conseguir corrigir em todos os lugares que postei, no parágrafo 15 consta que "não se reivindica a cultura como estratégia de guerra" meus dedos me traíram, o certo é "não se reivindica a TORTURA", embora tenha um sentido válido, já que a tortura surge como cultura de defesa da subjetividade, a proposta era mencionar que a tortura não é apenas solução militar, mas resposta perversa constituída.