sábado, 29 de junho de 2013

Tremeluz de candeeiro

Si molesto com mi canto
A alguno que venga a oir
Le aseguro que es un gringo
O un dueño deste pais
Daniel Viglietti – A desalambrar

Bem diz a cautela histórica que não somos capazes de alcançar a envergadura das ações no momento em que transcorrem. Mas a quantidade de gente querendo se assenhorar dos últimos acontecimentos, de tão pródiga, nos obriga a lançar luzes sobre sombras para buscar, pelo menos, decifrar o que é real e o que segue sendo fantasmagórico no atual quadro.

É a política, idiota!

Sempre subestimei a iniciativa que contesta o tema passagens de ônibus. É evidentemente, um tema periférico. Custa a crer que o tema efetivamente empolgue estudantes. Mas eis que essa garotada do Movimento Passe Livre conseguiu fazer o que sindicalistas e militantes profissionais não conseguiram. Projetar a indignação de uma causa menor para os temas reais e candentes da sociedade.
De fato, transporte pago é uma ofensa ao direito de ir e vir. É, inclusive parte do custo do produto “mão de obra”. No entanto não existe real solidariedade da sociedade em relação a essa questão. Mas eis que um intervenção tão pretensiosa quanto todas as outras e não mais que isso, em dado momento, ganha corpo transcendente.
A mídia quer esquecer completamente o debate, mas parte daquelas pessoas que olharam com esperança as manifestações já tem como certo que o questionamento aos custos do transporte público é tarefa elementar da cidadania. Os que possuem condições não padecem dessa limitação de locomoção. Mas o trabalhador sem dinheiro estará obrigado a pedir emprestado até mesmo par achegar ao trabalho e continuar a receber seu salário mês a mês.
A locomoção na cidade não pode ficar refém daqueles que a operam com finalidade de lucro.
Em tempo, não me escapou um singelo cartaz afixado fugidiamente na avenida paulista com os dizeres “volta CMTC1”.

It's the Everything, Stupid!

Não tardou nada até que o levante contagiasse parcela expressiva da população, especialmente estudantes e a eles se unissem inúmeros descontentes, a exemplo dos Indignados espanhóis (se não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir), ou dos Piqueteiros argentinos (“que se vão todos”)
A primeira perplexidade social surge exatamente em relação ao mote das manifestações. Concretamente o aumento de R$ 0,20 nas passagens de ônibus da cidade de São Paulo, surgiu como catalisador. Mas somaram-se aos manifestantes de primeira hora um conjunto de manifestantes para quem os R$ 0,20 era o menor dos problemas, se é que eram problema.
Mas se o processo epidêmico é bem-vindo nas causas políticas, não havia porque nos surpreendermos com a incorporação das transversalidades todas. Um movimento horizontal, plural e descentralizado não tardou 48 horas pra atrair descontentes de todos os matizes.
Inclusive os descontentes com os descontentes.
Eis a mais flagrante fragilidade de uma insurgência com essas características. Evidentemente não ficariam de fora os reacionários que ao longo de anos tentaram lotar as ruas, nunca indo muito além de uma centena.
Movimentos “pela paz” ou “anticorrupção” são expressivamente conservadores os primeiros porque ignoram o clamor dos excluídos para quem, “paz sem voz é medo”, os segundos porque só enquadram a corrupção passiva, quando não são acalentados justamente pelos corruptores para eximirem-se de suspeitas.
A esses todos, assim como aos confusos que apenas se contentavam em assistir de camarote, logo ocorreu a polêmica. “Tudo isso por apenas R$0,20?”. “Não é apenas por R$0,20, estúpido”. “R$0,20 é apenas o começo!”. “R$0,20 é o fim do mundo!” “R$0,20, ora os R$0,20!” “Nada é tão tudo quanto R$0,20”.
Não tardou, é claro para que surgissem bandeiras socialmente mais criativas: “Crack por R$0,20 o papelote”. “Saldão: Ocupai as lojas que cobram mais do que R$0,20!”

¡Que se vayan todos!”

Partidos e vanguardas de esquerda por vezes se consideram com mandato divino para a indignação. Sobretudo aqueles que atiram em todas as direções, em algum momento haverão de ter incluído as passagens de ônibus urbano entre suas bandeiras históricas.
Afirma a filosofia futebolística que “quem não faz, leva”. Fato é que essas vanguardas nos esquecemos de notar que quanto mais tempo deixamos de viabilizar a ruptura da ordem, mas nos aproximamos, aos olhos dos cada vez mais excluídos, ou incluídos na pauperização da inclusão, entre os defensores do status quo. Com efeito, se tardamos demais com a revolução, a rebelião social, quando ocorre, é também contra nós.
O anonimato é mais nocivo às causas populares do que a auto-proclamação. Mas o azar é dos que deixaram de perceber que o modelo de partidarismo vigente é o burguês conservador. Por mais que sejamos controversos em relação a ele, nos subordinamos aos seus ditames. A banalização da política, mais que isso, sua “fulanização” é promissora aos oportunistas. Quando nos negamos a denunciar o formalismo instrumental da política, a detenção de poder nas mãos de poucos, enfim, as proclamações de elites detentoras de verdades, estamos, nesse quesito específico, nos alinhando ao status quo.
Não por acaso, Lutero realiza uma importante reforma no mundo cristão ocidental, quando anuncia a destituição de prerrogativas especiais na guarda do conhecimento e acesso à divindade por parte da escolástica, dos iluminados, ou dos delegados institucionais.
A fé, bem como a democracia, a riqueza que a humanidade produz, o espaço urbano etc pertencem a todos. Os que secundarizam essa simples constatação encontram-se alinhados, à vista dos não alinhados, como partes ou fragmentos de um todo unitário.

As faces do terror, ou a sua sombra?

É assustador. O crepitar das chamas no contexto social sempre parece agredir nossa benevolência com o ordenamento autoritário. Mas o fogo é rebelde por excelência. Existe enquanto não consome tudo o que lhe permite a sobrevida. Não é seletivo, cordato, ou submisso.
O que escapa à visão dos escandalizados é que fogo contra fogo apenas aprofunda o incêndio.
O fogo da rebeldia sempre será sagrado quando confrontado com o fogo premeditado da ordem. Tudo o que foi destruído em todas as manifestações por parte dos rebelados não se equipara a um único hematoma provindo da arma de um torturador do Estado. Não vale, aliás, uma só lágrima produzida por efeito do gás lacrimogênio.
Mas os hipócritas são muitos, inclusive os que sorriram e jactaram-se diante da emboscada urdida pelo aparato repressor paulista.
Vou lançar aqui a minha gotinha de denúncia do descalabro. Quem circulou pelas imediações da Av. Paulista no dia 12/06 pode conferir a TOCAIA DA TROPA DE CHOQUE preparando o bote aos manifestantes. Os estúpidos leem as mentiras de jornal e nem sequer raciocínio. Naquele dia, por exemplo, não haveria que se falar em transtorno ao trânsito na Paulista. Simplesmente porque POLÍCIA E CET ELIMINARAM TODO O TRÂNSITO. Ninguém conseguia acesso, no máximo cruzar a avenida.
Essa apenas a mais prosaica das mentiras.
OS MANIFESTANTES FORAM, SIM, EMBOSCADOS NA CONSOLAÇÃO. Imagino os idiotas de farda tendo orgasmos ao dizer coisas como “vamos da um pito nos meninos”. Um comentarista que até respeito postou no facebook que os manifestantes DEVEM ajudar na identificação dos vândalos e baderneiros. ALTO LÁ! NÃO DEVEM NADA!!!!!! É o estado que deve a nós todos.
Não sei desde quando a PM filma manifestações. Acho que desde sempre. Razão pela qual é um acinte ouvir que nós, o povo, é que devemos tomar precauções. ATÉ PODEMOS, mas o que eu duvido mesmo é que a polícia não tenha condições de identificar. Não há mesmo é interesse. E por que será?
Há uma resposta singela no vídeo abaixo:


Deu pra entender? Deu pra entender, ou é preciso desenhar?
Não há palavras para mencionar o cinismo das explicações oficiais. Não vou repetir, mas cada sílaba publicada em favor da razão coercitiva da política é tão criminosa quanto as ações da mesma. Alguns amigos e amigas confiam na neutralidade cívica da polícia. Fiquem à vontade, mas me incluam absolutamente fora dessa.
Aliás, antes que me esqueça, já que a mídia toda esqueceu. DIRETA OU INDIRETAMENTE AS RESPONSABILIDADES NOS CASOS EM SÃO PAULO SÃO DO GOVERNADOR GERALDO ALCKMIN. Seja pelo mando, seja pela negligência, ele é a autoridade coatora responsável por cada projétil de borracha, cada lágrima causada pelo gás pimenta.
A coisa do vinagre, então, é um momento das ficções de realismo fantástico que são despejadas na realidade. Pessoas presas por portarem vinagre.
As pessoas “da paz” podem dizer o que quiserem. Tanto quanto, na dúvida pró-réu, na dúvida, A CULPA É DO ESTADO. A culpa é da PM.
Divulguei ainda a pouco um depoimento que traz o seguinte: "Aproximou-se de mim um sujeito com o rosto tampado por uma camiseta. Ele descobriu parcialmente a face e me disse no ouvido que era policial e que pediria que não atirassem para que pudéssemos evacuar a vítima (penso ter visto esse autodeclarado policial perto de mim, quando eu tentava falar com um oficial, e depois correndo ao meu lado. Se for a mesma pessoa, ele era um dos exaltados que instavam à violência)." Isso ocorreu em Belo Horizonte.
Se os governantes fossem minimamente decentes entregariam seus cargos. Como não são, ao menos por competência deveria destituir todas as autoridades militares de seus postos e renovar a totalidade dos comandos. Mas certo mesmo seria acabar com essa gang de criminosos oficiais desmilitarizando a polícia.
Bem, eu iria seguir com os comentários, mas reviver algumas manifestações oficiais não me permitiriam mais que dizer impropérios. Vou poupar os bytes e a paciência geral.
 Se os humores me permitirem avanço na narrativa.


1 Antiga Companhia Municipal de Transportes Coletivos, criada em 1946 e extinta em 1995.

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