Algumas reivindicações de setores econômicos acerca do código florestal são aberrantes. A “necessidade de desmatamento” a pretexto do desenvolvimento econômico é esdrúxula quando se ocupa de uma visão unilateral da questão: o lucro.
Em alguns anos é possível que gerações futuras nos condenem pela voracidade em destruir os biossistemas naturais. Cheguei a ouvir, certa vez alguém dizendo que os países centrais dispuseram dos recursos naturais de forma incontinente para alavancar suas condições socioeconômicas, e agora que seria a vez do Brasil.
Argumento curioso. Hitler instituiu o III Reich patrocinou o genocídio de milhões de pessoas, supostamente para que a Alemanha deixasse de ser um país à reboque da Europa. O que seria do mundo se cada país em condição econômica e social precária reivindicasse seu “direito natural” a instituir um III Reich próprio?
Alguns crimes ambientais deveriam ser considerados como “lesa-humanidade”
E a questão nem é assim tão maniqueísta. As distorções na proposta para o código florestal não podem ser pensadas a partir do foco imediatista, utilitarista, nem clientelista. De que adianta acomodar populações urbanas à beira de córregos, expondo-as a doenças, alagamentos e precariedades, quando o Estado, ou seja a expressão política da sociedade, deveria garantir condições de moradia dignas?
A forma acintosa como o governo (Executivo e Legislativo) assumiram unilateralmente a discussão, propicia toda gama de distorções. E algumas suspeitas ignominiosas.
Por exemplo, a publicada pelo Correio Braziliense que dá conta de que 15 deputados e 3 senadores seriam beneficiados com a revogação de nada menos que trinta violações à lei ambiental. Numa sociedade séria, ou regime político, correspondente, estas pessoas deveriam estar afastadas do processo decisório desse tipo de questão. Mas não, são elas mesmas as principais patrocinadoras do tema no congresso, sob vergonhoso endosso do governo e diversos parlamentares.
Há algum tempo, quem vive em cidades como São Paulo vem assistindo o resultado de alterações açodadas e desmedidas sobre leitos de rios e córregos. Sabemos também, há muito mais tempo ainda, que a ocupação organizada e não predatória do solo e de seus recursos não apenas resolveriam, como potencializariam a capacidade produtiva do pais.
No entanto a prática contumaz e criminosa como isso ocorre, (e que foi consolidando-se, inclusive, ao arrepio da lei), ao invés de ser combatida e revertida, está a ser chancelada a partir, exatamente, dos queixumes daqueles que, até então, nem mesmo atenderam a disposições legais elementares.
Do sumário executivo de um consistente relatório de 120 páginas, elaborado pela Academia Brasileira de Ciência (ABC) em conjunto com Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), destaco alguns elementos:
“O Brasil detém uma imensa extensão territorial para a produção agropecuária: são cerca de 5,5 milhões de km2 com uso potencial para os mais diversos tipos de cultivos e níveis de adoção de tecnologias agrícolas. Entretanto, 76% do total dessas terras aptas apresentam alguma fragilidade decorrente de limitações nos solos, condição que requer planejamento criterioso na ocupação agrícola, com adoção de práticas de manejo conservacionista que também levem em consideração as emissões de gases de efeito
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Entretanto, mesmo considerando os avanços na agricultura conservacionista e o sucesso da agricultura tropical, o processo histórico de ocupação do território brasileiro resultou, em alguns casos, no aumento das pressões sobre o meio ambiente, em processos erosivos, na perda de biodiversidade, na contaminação ambiental e em desequilíbrios sociais. Assim, o desperdício dos recursos naturais decorrente do uso inadequado das terras é uma realidade a ser enfrentada e levando a repensar essa ocupação para evitar os erros do passado e promover uma gradual adequação ambiental da atividade rural. A agricultura brasileira, que atualmente, possui uma nova dimensão socioeconômica e ambiental e é responsável pelo superávit comercial brasileiro, demanda ciência, inovação, tecnologias modernas e atenção redobrada quanto aos seus impactos sobre os recursos naturais.
Os diagnósticos realizados demonstram que existe um passivo da ordem de 83 milhões de hectares de áreas de preservação ocupadas irregularmente, de acordo com a legislação ambiental em vigor. Estima-se que o impacto da erosão ocasionado pelo uso agrícola das terras no Brasil é da ordem de R$ 9,3 bilhões anuais, que poderiam ser revertidos pelo uso de tecnologias conservacionistas e pelo planejamento de uso da paisagem, gerando benefícios ambientais.
Há necessidade de medidas urgentes dos tomadores de decisão para reverter o estágio atual de degradação ambiental. Para estancar esse quadro, as Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Legais (RLs) deveriam ser consideradas como parte fundamental do planejamento agrícola conservacionista das propriedades. A percepção das RLs e das APPs como uma oportunidade deve ser acompanhada de políticas de Estado de apoio à agricultura que simplifiquem e facilitem os trâmites burocráticos. Para concretizar essa proposta, é indispensável uma articulação entre os órgãos federais, estaduais e municipais visando à implementação da legislação ambiental, que não pode ficar sob a responsabilidade exclusiva do proprietário ou possuidor rural. Os Estados e os municípios desempenham papel importante na estruturação dos órgãos responsáveis pela regularização das RLs e APPs.
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Recomenda-se a implantação de políticas públicas mais consistentes voltadas a garantir que todos os produtores – notadamente os que têm menos acesso a tecnologias disponíveis – venham a integrar efetivamente a sistemas produtivos técnica e ambientalmente corretos.
Os dados científicos disponíveis e as projeções indicam que o País pode resgatar passivos ambientais sem prejudicar a produção e a oferta de alimentos, fibras e energia, mantendo a tendência das últimas décadas de aumento continuado de produtividade, desde que políticas mais consistentes de renda na agropecuária sejam implementadas.
Para a harmonia e o avanço na utilização das terras brasileiras, há necessidade de um cuidadoso planejamento integrado de uso compatibilizando os zoneamentos agrícola e ecológico-econômico com o ordenamento territorial e a revisão do Código Florestal, dentro de um novo conceito de paisagens produtivas sustentáveis.”
Diz ainda o sumário que o país, detentor de 20% da biodiversidade do planeta pode beneficiar-se, inclusive economicamente, desses recursos, o que seria potencialmente inviabilizado, ao se atender apenas às intenções imediatistas da atual propositura legislativa, provocando eventualmente retrocessos irreversíveis nessa área.
E conclui: “O Brasil é o país que abriga o maior número de espécies de plantas, animais e microrganismos do mundo. Isso representa um enorme diferencial de capital natural, estratégico para o desenvolvimento socioeconômico do país, que precisa ser conservado e utilizado de forma sustentável. Ao mesmo tempo, a inovação tecnológica está na raiz do sucesso brasileiro da agricultura tropical e é o trunfo mais poderoso para qualificar países na competição no mercado globalizado.
O aprimoramento do Código Florestal brasileiro deverá servir de base para políticas públicas inovadoras dentro do conceito do ordenamento territorial brasileiro e do planejamento da paisagem.”
Não se trata de posição de ambientalistas radicais (se é que um ambientalista de verdade pode abster-se de sê-lo) ou de opositores raivosos a qualquer forma de desenvolvimento. E sim da opinião de cientistas historicamente comprometidos com os interesses do país.
A advertência é a de que, nem a sustentabilidade, nem os interesses econômicos estão, de fato, sendo alcançados com a versão do código em pauta.
Ocorre que o projeto de lei é encarado por alguns como a oportunidade de um butim ambiental antes que outros “retardatários da devastação” prevaleçam-se da leniência legal e oficial. Uma lei para os espertalhões de ocasião que irá penalizar a esta e às próximas gerações. Esse raciocínio, já é um velho conhecido nosso: “levar vantagem em tudo” (e como há falsos moralistas endossando a proposta!).
A proposta de alteração do Código Florestal não é apenas, privada de virtudes. Trata-se de um tolo (porque imprevidente) achaque por parte de uns poucos a um patrimônio (eu acho que é a discussão vai muito além da questão da propriedade, e da contraposição entre direito público e privado, mas concedo aqui à contemporaneidade do debate) que não é nem somente do nosso país, nem tampouco do nosso tempo.
É impressionante que governantes estejam imensamente mais preocupados e comprometidos com a entrada do país no “conselho de guerra, tutela e assassinatos” da Onu, onde somos sobejamente periféricos, mas recuse-se terminantemente a encarar com visão soberana e estratégica um contexto em que somos “primus inter pares”.
A mediocridade, de fato, é um calabouço.
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Xi, francisquinho, deitaram a língua na jabuticaba!