domingo, 13 de agosto de 2023

A atualidade do mal

Démerson Dias



Atentado Rio Centro em 1981 - autor não localizado
Na primeira noite eles se aproximam, roubam uma flor e não fazemos nada.

Não sei que advertência fazer antes.

O presente texto pode ser fruto de paranoia. Delírios persecutórios. Pode ser que o 8 de janeiro de 2023 não tenha ocorrido. Nem qualquer dos fatos mencionados a seguir. Se assim for, trata-se de um ensaio que se presta à análise clínica, sem  valor maior para a reflexão política. Exceto pelo condizente contexto de mal estar na civilização.

A segunda advertência diz respeito ao título do texto. No esboço dei o nome de “a atualidade da barbárie”, a ideia era dialogar com Rosa Luxemburgo que melhor resumiu, na consignia “socialismo ou barbárie”, o desafio da humanidade. No caso do Brasil, parecia um desafio longínquo até 2013. 

Dez anos depois, a realidade capota. Enquanto ainda tentamos entender a dialética inscrita pelas manifestações de 2013, a barbárie já não é possibilidade. É um cardápio de investidas em múltiplos níveis, da política, à economia das almas da teologia da prosperidade, passando pelo programa de devastação desenvolvimentista da amazônia. Ou sua versão nua e crua, a guerra contra o potencial revolucionário da política inscrita na tradição dos povos originários.

O título durou até ver as cenas dos ataques sofridos pela deputada Lucia Marina dos Santos, Marina do MST em Nova Friburgo. Era a esquerda toda sofrendo aquele ataque.

Alterei para “a atualidade do mal”, porque o fascismo no Brasil, com mais esse ataque, deu prova de que está derrotando a civilização com razoável margem de vantagem e segurança. Como se tratasse, agora, apenas do encadear burocrático, metódico, de iniciativas aterradoras, falsamente desesperadas e meticulosamente perversas.

Caso a primeira advertência seja descartada, a segunda pode ser desconcertante:

É como se o país inteiro estivesse numa sessão de tortura cívica. E não é a esquerda constituída toda por Spartacus, é à direita que todos são Adolf Eichmann.


Elegemos um governo que concilia com nossos algozes. E gente demais comemora a prestidigitação institucional à serviço do recrudescimento da criminalização da política (de esquerda).

E como política, incluo até aquele movimento desesperado de se vasculhar lixo em busca de ossos, que imediatamente passaram a ser comercializados.

O fascismo não apenas “saiu do armário”. É financiado regiamente por gente que se senta com Lula, dá tapinha nas costas e garante acreditar num futuro para o Brasil. E não fazemos nada.

A isso se somam décadas de planejamento, exercícios e evoluções tanto das práticas do Esquadrão Le Coq, quanto da bomba do Rio Centro e a Marcha da Família da Família com deus pela Liberdade. Concluo que até as comemorações pelo noticiário que desnuda as malandragens da família Bozo, é parte do enredo de anestesia preventiva. Algo como a serpente que hipnotiza a presa.

Talvez eu devesse escrever a próxima frase e encerrar, é como se um pesadelo fosse desdobrado em sucessivos clímax.

Os fascistas estão tramando um linchamento público como novo degrau de sua investida, progressiva, lenta e segura rumo à consolidação definitiva da barbárie. Alguém falou em assassinato de uma criança de 13 anos?

Quem será a vítima que fará desabar nossa moral e demolir a resistência da vítima de tortura?

Do meu delírio, enxergo que a aproximação da descoberta de mandantes do assassinato de Marielle e Anderson estão relacionados imediatamente à ameaça de linchamento da deputada Mariana. Até o perfil pessoal das vítimas denuncia a premeditação. Não estão perseguindo a esquerda que se confunde com civilidade.

Ou será acidental a CPI do MST? Escalada premeditada, alvos estrategicamente encadeados de forma progressiva. O 8 de Janeiro não terminou e quando achamos que tornamos inelegível o fascismo estamos sendo iludidos de que estamos rompendo com o terror, enquanto ele é construído de forma metódica, perspicaz e paulatina. De forma irrestrita, lenta e segura.

Nos divertimos discutindo contrabando diplomático enquanto o cordão de extermínio pelas mãos da polícia vai se disseminando como marco civilizatório. Tangendo nossa civilidade para calabouços em que o regime fiscal vale tudo, e a vida, nada.

O que pode ser delírio, ou constatação decorre do perfilamento das ações perpetradas, desde 2013. O fascismo é ousado. Em prazo muito curto constituiu força popular e foi capaz de neutralizar uma manifestação típica e corriqueira das esquerdas. A ponto de que efetivamente conseguiu confundir a “inteligentsia” da esquerda, que passou a condenar tudo o que ocorria como investida exclusivamente reacionária.

Aquela esquerda que, inclusive, está de volta ao poder hoje, é incapaz de derrotar o fascismo. Nem sequer o reconhece. O valida, legitima. Não faz ideia de sua dimensão, alcance ou relevância. O capitalismo possui agora até mesmo um populismo para chamar de seu, porque as esquerdas não entenderam, ou desdenharam da necessidade de afirmar e construir um partido revolucionário.

Como a esquerda não fez sua revolução, a rebelião vigente é fascista. 

Vivemos mais uma etapa da contrarrevolução preventiva. E dessa vez nem ensaiamos organizar as massas. Basta um conciliador formidável, capaz de gerir o capitalismo melhor que toda a intelectualidade orgânica da burguesia.

Trata-se de um nível acima de sofisticação. Lastreada em algoritmos de manipulação de comportamento e justificada nas desgraças que o próprio desenvolvimento capitalista produziu. 

O Brasil entrou em guerra civil praticamente quando foi assinada a lei áurea. A burguesia, ressentida com a impositiva modernização de suas práticas pela monarquia ilustrada, tratou de acionar o círculo militar para um golpe de estado. E assim, o republicanismo brasileiro, até então, um sonho de liberais foi sequestrado pela burguesia parasitária. O que chamamos de nova república foi, não mais do que um surto caracterizado pela síndrome de Estocolmo.

A esquerda da ordem, inventada por Golbery do Couto e Silva, achou que havia apagado da nossa história a era dos ditadores, enquanto era iludida pelas telenovelas disfarçadas de noticiário.

O texto ficou demasiado longo então encerro sua introdução por aqui. Minha habilidade é afetada pelos inúmeros desdobramentos que vão se delineado, entre o delírio e o desastre anunciado em letras miúdas. Nossa democracia é um placebo que matará o paciente pelos efeitos colaterais. E porque não fizemos nada, já não há quase mais nada a fazer. Por enquanto é apenas um delírio. Espero não despertar ensopado de sangue.

 

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