Démerson Dias
Laerte Coutinho - 2019 |
Esse não é um texto que vai fluir como outros. É uma opção diante da falta de opção. E não me refiro à opção de votar em Lula no primeiro turno. Isso é prosaico e se tiver sorte, consigo explicar o porquê antes do final do texto.
Votar em Lula no primeiro turno é mais necessário do que útil. E a primeira necessidade é mesmo afetiva.
Tamanho desamor destilado em todas as áreas e territórios exige que busquemos restaurações. O quanto antes. É preciso nos permitirmos soltar a respiração presa, sobressaltada a cada gesto, violência ou cretinismo a que fomos expostos impiedosamente. No mínimo há 680 mil razões para votar contra Bolsonaro. Logo. Urgente.
Estamos nas ruas divulgando nossos candidatos, mas com um olho em movimentos suspeitos e provocações. Alguns acabam cedendo, o que é quase inevitável. Bolsonaro organizou um exército que vai às ruas pronto para matar e, por ele, morrer até, se for o caso. Isso só não foi observado porque não tem sido essa a nossa disposição.
As forças policiais e militares estão, preliminarmente, ao lado do fascistas. E parte delas, são de criminosos militarizados. Não bastasse isso, os CACs são uma força armada de mais de meio milhão de vândalos e assassinos.
O que consideramos civilidade está por um triz. E o triz não está sob a responsabilidade, nem das forças da ordem, nem das autoridades. Se o pólo da sociedade que vai derrotar a familícia nas urnas estivesse disposto à guerra, já estaríamos em guerra civil.
Ela já existe e é patrocinada pelo Estado, só não está declarada porque para a parcela branca e remediada, lutar a guerras dos pretos e pobres não vale a pena. É mais cômodo deixá-los morrer com a voz esganiçada e sufocada. Pretos, pobres, e ainda, as mulheres, indígenas, lgbtqiap+.
Até crianças e desvalidos.
À sombra da reinauguração do Museu do Ipiranga me ocorre a letra de outro hino, o da república “nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”. O que não sabemos mesmo é quando o país deixou de ser um exterminador de futuros, esperanças e vidas.
É quando temos um facínora com uma caneta de mandatário que descobrimos a real vocação, já que nenhum escrúpulo institucional foi capaz de evitar que chegasse ao poder alguém que já fez todas as promessas e ameaças possíveis, desde, inclusive de fazer “o trabalho que o regime militar não fez, matando uns trinta mil, começando com FHC”. Foram 680 mil mortos e estávamos todos avisados. Não existe brasileiro um com mais de 22 anos que não tenha adquirido ao menos uma nódoa hipócrita na alma. Convém sabermos disso quando alguém reivindicar a qualidade da democracia brasileira.
O pior inominável só não ocorreu por imperícia do outro lado. Bolsonaro só não deu o golpe “no mesmo dia! no mesmo dia!” por que além de incompetente político é covarde. Já a competência para ludibriar os alucinados não é a mesma necessária para articular forças sociais minimamente sóbrias.
Ainda assim, corromper alguns milhares de militares e civis para desconstruir o esboço civilizatório é algo muito mais fácil. Destruir não exige mais do que construções, materiais ou abstratas. E Bolsonaro foi profundamente bem sucedido como um governo de demolição.
Não deveria ter sido eleito. Eleito não deveria ter tomado posse, e isso teria ocorrido se o TSE fosse cioso e coerente com seu papel. Como não foi, está até hoje servindo cafezinho para militares de moral cívica pra lá de duvidosa.
Como Bolsonaro tomou posse, deveria ter sido derrubado por um brasilianaço como o ocorrido na Argentina, novamente, como não se deu, deveria ter sido deposto por um impeachment. No limite, condenado por omissão nas 680 mil mortes, atestadas como criminosas, por omissão, prevaricação e conluio numa CPI em que os crimes foram escancarados.
Perdemos todas as oportunidades. O país perdeu. Essa sopa protonacional que temos por aqui foi incapaz de reconhecer e inibir a pior força destrutiva que surgiu entre nós, mesmo após uma das ditaduras mais estúpidas do mundo.
Entendo setores das esquerdas, que fazem ressalvas, mas o que ainda não elaboramos suficientemente é que essa eleição está apenas devolvendo o país a 31 de agosto de 2016.
O pastelão criminoso da burguesia parasitária inventou um “não país”, uma excepcionalidade cívica que custou muito e há muitos custou tudo. Refiro-me a 680 mil mortos, reitero, reafirmo, se pudesse citaria a todos nominalmente (exceto os bolsonaristas, talvez). Não se trata de dar uma vitória a Lula no primeiro turno. Em 2 de outubro de 2022. A derrota de Bolsonaro está atrasada há mais de 2100 dias.
Pelo aspecto eleitoral, concluiria aqui. No entanto, a situação é mais complexa do que pressionar botões.
Nem mesmo Lula será suficiente para calcinar a chaga cívica que se abriu tanto com o golpe, quanto com a eleição de 2018. Em alguns casos, o país regrediu décadas, o modelo constitucional do bolsonarismo, com sorte, é o de 1968. E isso foi implementado no país, sem que uma lei sequer fosse revogada. Apenas pelo silêncio dos bons” mencionado por Luther King.
A questão aqui não é se Lula é a melhor opção, mas que o governo Bolsonaro exige uma resposta civilizatória de um tipo que ainda não inventamos. E talvez nem sejamos capazes. Decidir as eleições em 2 de outubro nunca foi tão urgente e nem, também, tão dramático.
Assim que ouvirmos o sinal sonoro da urna, o que somos instados a fazer pelo passado e para o futuro é respirar fundo e, enquanto ainda choramos pelos nossos mortos, erguer a cabeça para ir à luta construir o país que nem existiu e já sofreu um atentado quase fatal. Morte ao fascismo!