uando
uma fração da direita brasileira faz contraposição mais
consistente e contundente ao ensaio fascistóide do bolsonarismo do
que o conjunto das esquerdas, nos deparamos com uma crise que vai
além da práxis.
Contudo
propor um debate sobre práxis nas esquerdas, particularmente nas
esquerdas socialistas, implicaria inventariar contradições
históricas que não caberiam nem mesmo num ensaio acadêmico. Além
de desviar a intenção principal dessa reflexão.
A
advertência de Lênin, “sem teoria revolucionária não pode haver
também movimento revolucionário”, nos dias de hoje não se aplica
apenas a setores revisionistas do campo socialista. Ao invocar Lênin
não o faço nos marcos de uma disputa vanguardista a respeito de
quem possui a melhor teoria revolucionária.
A
hipótese que pretendo trabalhar aqui é que, talvez, nossas práticas
políticas sejam insuficientes, porque articulamos de forma
insuficiente nossas teorias. E a profusão de teorias é inversamente
proporcional à nossa capacidade de intervenção política, ao menos
em termos de efetividade. Tampouco é suficiente afirmar que essa
deficiência se deve apenas a setores iludidos com soluções
eleitoralistas, posto que setores que denunciam o eleitoralismo não
são mais bem-sucedidos que aqueles.
Por
vezes, como desculpa, dizemos que o capitalismo é mais objetivo
porque o foco primordial é o lucro. Além de imprecisa, é uma
constatação incorreta. O capitalismo articula o modo de poder que
exerce, e controla a forma primordial de mediação sobre a
realidade.
Enquanto
as esquerdas, basicamente, mimetizam a presunção de serem
portadores de verdades absolutas. Ao fazê-lo abandonamos a política
como possibilidade de encontros e construções comuns. Achamos que
estamos disputando o poder político com a burguesia, apenas porque
ela nos fez acreditar que, disputá-lo entre nós, é a forma eficaz
de combatê-la.
O
campo socialista, em termos mundiais, falhou em suas investidas
basicamente porque não fomos capazes de escapar à sedução do
poder estatal. Nisso não fomos melhores do que o capitalismo, mesmo
com evidentes avanços históricos. Ainda assim, os que não foram
capazes de conquistar a máquina estatal, tampouco conseguiram
desarmar a forma política capitalista em suas próprias práticas
cotidianas.
Nossa
pretensão de universalidade não é apenas precária. Ignoramos o
universo todo. Nossa análise da conjuntura internacional conta a
história das opressões, não a dos oprimidos. Seguimos não dando
voz a eles, porque determinamos como sua voz deve soar, notadamente
em consonância com nossa visão de mundo.
E
essa nossa visão de mundo é particular e autocêntrica. De certo
modo, portanto, nós também praticamos uma forma disfarçada de
opressão histórica, exigindo dos oprimidos que respondam apenas a
partir das formas que consideramos válidas. Não por acaso, parcela
majoritária das esquerdas exige que os oprimidos repliquem as formas
políticas dos opressores.
Alguns
setores das esquerdas conseguem ser críticos mais contundentes com
experiências à esquerda do que são com a direita. Por esse
diapasão, Mandela cedeu à forma de estado imposta pelos
colonizadores. Cuba precisa ser democrática a partir da forma
burguesa de exercício de poder. A China deve se vergar ao modelo
civilizatório ocidental. Abominamos a Coreia do Norte porque a forma
que ela encontrou para se proteger da influência do mundo externo
foi criar uma versão esdrúxula de falanstérios vitorianos.
Setores
do nosso ecossocialismo se apresentam como críticos do modelo
extrativista, negando a cadeia alimentar e supondo o humano como
espécie superior, não concorrente, coisa que pelo menos a natureza,
desabona.
É
possível encontrar sentido e razão em todas essas perspectivas.
Ocorre
que importa pouco (na verdade não importa nada) a qualidade das
nossas divergências, se as assumimos como se fossem verdades
absolutas e intransponíveis. Ao fazê-lo, rompemos com a única
força capaz de, efetivamente, superar o capitalismo, nossa
diversidade e pluralidade.
Não
por acaso, setores de vanguarda do capitalismo, ou de conciliação
com ele, se fortalecem mais do que as esquerdas como críticos e
profetas dos limites do neoliberalismo. Isso nada mais é do que o
capitalismo se reciclando de mais uma de suas crises estruturais. Por
via das dúvidas, alguns capitalistas mais aloprados já começam a
providenciar o desembarque do planeta, através de nova corrida
espacial.
O
lixo que produzimos é tanto uma calamidade econômica, quanto
desastre humanitário. No entanto, nos debatemos por discutir essas
questões sem reconhecermos que o esgotamento do planeta é produto
do antropoceno e não exclusivamente do capitalismo.
O
“espírito científico” que busca vida em outros planetas é o
mesmo que critica, mas produz e reproduz formas de extinção da vida
no nosso.
Aliás,
as diversas formas de terceirização e privatização do que deveria
ser comum, produzem distorções que seguem no sentido contrário, ou
ao avesso do que seria prudente, ou necessário. E são soluções
técnicas e teóricas “superiores” de relações econômicas.
Nossas críticas às formas de precarização e opressão não
apostam em efetiva ruptura com a forma de mediação social
autoritária.
A
democracia como regime político é tutelada pelo “espírito
acadêmico” em que qualquer hipótese é válida. Mas a realização
de ideias no plano social não admite certos tipos de contradição,
e o obscurantismo do reascenso fascista apenas demonstra o quão
destrutiva é a tolerância democrática a ideias intolerantes.
Temos
reivindicado a democracia mesmo que ela represente, para imensa
parcela da humanidade, a coação sob a alça de mira de fuzis,
infindáveis filas de miseráveis, famintos e desempregados. Mal nos
damos conta de que não conseguimos diferenciar o tipo de democracia
que defendemos daquela oferecida como fetiche pelo capitalismo.
E
nos rebelamos quando o neoliberalismo confirma seu absoluto desprezo
pelas formas liberais de democracia. Apelamos para que não maltrate
a democracia tanto assim. Vamos prontamente salvar a democracia
burguesa que é inimiga dos povos
No
caso brasileiro, parte das esquerdas se comoveram com uma direita
que, finalmente, compilou e expressou as maldades todas, sem qualquer
filtro de civilidade.
Foi
suficiente para que diversos setores das esquerdas entrassem numa
espécie de catarse arrivista, como se, finalmente, tivéssemos a
prova de que sempre estivemos certos.
Nos
afogamos numa guerra de narrativas na qual o adversário nem sequer
disfarça que seja mero expediente diversionista. E acabamos por
achar que somos vitoriosos por construir os memes mais inspirados.
Como se não fosse escancarado que este é um governo de piadas
prontas. Basta acreditar no que dizem os próprios profissionais de
comédia “stand up”.
Ainda
assim, esse movimento maniqueísta não aciona em nós as incansáveis
advertências dos mais importantes pensadores marxistas.
Cedemos
a uma inócua disputa de narrativa que se presta mais a preencher
lacunas em folhetins e embalar grupos de zap. Mas é miserável como
forma de manifestação política emancipatória.
É
preciso consolidar os consensos em torno do pensamento marxista,
socialista, comunista, anarquista, libertário, inclusive
categorizando tais vertentes, mas fundamentalmente, sinalizando
nossos avanços políticos e teóricos.
O
identitarismo não é uma deturpação capitalista, é sim a
expressão do vácuo do que deixamos de ocupar. E quando denunciamos
que sua parcialidade é alienação, não estamos enxergando o quanto
nós mesmos deixamos tais setores a mercê de investidas
autoritárias. Inclusive setores religiosos que saltaram da teologia
da libertação para a teologia da prosperidade, sem que isso
desperte em nós a percepção de que as condições objetivas se
agravaram avassaladoramente, mesmo com todas nossas “conquistas
civilizatórias” contra o dragão do neoliberalismo.
A
ponto de que já existem hoje iniciativas dentro do capitalismo que
são mais radicais na exigência dessas pautas do que as que
conseguimos produzir em nossas fileiras. Alguns exemplos contundentes
são Greenpeace e Humans Rights, médicos e jornalistas sem
fronteira, que possuem inventário e intervenção mais sólida do
que o conjunto das esquerda mundiais.
E
ainda há os que negam, ou se surpreendem quando setores da direita
capitalista brasileira (inclusive o judiciário, que é o instrumento
mais reacionário numa república) são mais contundentes contra as
desventuras fascistas do que praticamente todo o conjunto das
esquerdas. Isso, e mais, quem anuncia que essa esquerda está
esgotada como projeto civilizatório é acusado de celerado, ou
inconsequente.
O
capitalismo, nesses desvãos, é formalmente mais solidário do que
os que se reivindicam porta-vozes do proletariado. Um capitalismo que
jamais será humanizado, no entanto possui uma face, por vezes mais
tolerante e includente do que o campo socialista consegue ser.
Preventivamente,
preciso advertir que qualquer um que receba essas palavras como
crítica direta não alcançou seu sentido ou intenção.
Marx
traduziu com ninguém os sentidos do capitalismo. E os capitalistas
aprenderam com ele, talvez mais do que os próprios marxistas.
Por
vezes, os marxistas se aplicam a decifrar meandros da teoria
econômica, sem se dar conta de que Marx produziu, sobretudo, uma
crítica à economia política. E essa desatenção tem custado ao
campo socialista, descompromisso com o que poderia vir a ser um
estudo de campo e realidade, voltado à elaboração de uma economia
marxista.
Ainda
mais abrangente que uma economia marxista, uma política
emancipatória frente ao capitalismo. Acusar o capitalismo de estado
das experiências socialistas “reais” é tão improdutivo e
inconsequente quanto reclamar que a destruição da camada de ozônio
está aumentando a temperatura do planeta. Não basta constatar, é
essencial fazer algo a respeito.
Da
forma como agimos, transformamos o décimo primeiro postulado sobre
Feuerbach numa profissão de fé, eternamente anunciada, mas nunca
entendida o suficiente para se tornar ação efetiva.
Temos
sido incapazes até mesmo de superar divergências entre nossas
visões de mundo. Em que universo paralelo seria possível nos
unirmos para construir uma prática solidária, se nem mesmo
conseguimos fazer aproximações teóricas nas hermenêuticas
marxistas.
Evidentemente
não se trata de uma questão singela. A complexidade do pensamento
marxiano suscita permanente redescoberta e em novos desdobramentos
teóricos e políticos. Mas deveria ser evidente que Marx estava
explicando o mundo capitalista para oferecer bases para
transformá-lo, não para entendê-lo com maior acuidade.
Esse
esforço coube aos capitalistas que o aplicaram de forma que
socialista algum seria capaz de fazer. Por isso, inclusive, surgem
leituras supostas, ou assustadoramente marxistas dentro do próprio
pensamento capitalista.
O
neoliberalismo é um exemplo consistente de utilização do
instrumental de análise marxiano para estender ao máximo a
capacidade de sobrevida do capitalismo a partir de intensas e
extenuantes ressignificações de suas crises estruturais. A ponto de
que prospera, por exemplo, no Brasil, em plena crise sanitária
espetacular investida política de desmonte inclusive do sistema
público de saúde.
Enquanto
setores das esquerdas ainda tentam derrotá-lo no campo da economia
política. E não se trata apenas de reconhecer que amplos setores
das esquerdas seguem acreditando na governabilidade burguesa.
O
fato é que não é possível derrotar o capitalismo dentro de seus
próprios fundamentos e subjetividades. É preciso ir muito além e
entender que negar o capitalismo, em hipótese alguma, pode ser
confundido com emancipação. Estamos exauridos justamente pela
negação maniqueísta do capitalismo.
Mais
do que afirmar o novo, cabe aos comunistas afirmar o básico e o
comum. Não como mera denúncia dos resultados da opressão. Mas como
afirmação a partir dos sujeitos revolucionários, ou seja, nos cabe
afirmar que "mundo novo'' é esse que irá emancipar a sociedade
do capitalismo.
Nossas
expressões de poder, desde os estados constituídos, até nossas
práticas em organizações sociais, sindicais, partidos, não vão
além das expressões que o próprio capitalismo prescreve.
Mesmo
quando nos anunciamos como libertários, insinuamos uma liberdade que
não enxerga além da revolução francesa. Aquela não é a mesma
liberdade que cabe a sujeitos históricos, pertence a um território
de liberdade coletivista, como aventou a Comuna, mas não
emancipatória, muito menos que seja comum por incluir a todos.
Ainda
nos apegamos a um ideal humano iluminista. Como se o iluminismo não
fosse uma espécie de reserva moral do capitalismo. Mesmo admitindo
que não há problema em ceder por simpatia, ou nostalgia, ao que
preconiza o iluminismo, convém ter em mente que a ruptura com o
capitalismo está fora do alcance de sua visão de mundo.
Faria
sentido supor que precisamos de um novo iluminismo? Talvez, mas o
novo não pode ser o velho reformado. O capitalismo está esgotado,
mas não conseguimos parir seu sucessor, embora a humanidade esteja
prenhe de certezas sobre qual futuro não queremos.
Não
se trata mais apenas de deter o capitalismo, mas de desarticular a
barbárie na qual já estamos imersos. É possível até, que a
própria crítica ao capitalismo seja obsoleta diante do desafio que
é descobrir qual outro mundo é efetivamente possível, não como
solução para a barbárie, mas como reversão das formas
insustentáveis de economia, política e mesmo percepção da
realidade.
Evidentemente,
podemos recusar destruir nossas ilusões políticas. Mas sem isso
jamais conseguiremos construir uma escapatória para a enrascada em
que já estamos plenamente metidos. E afundando.