terça-feira, 23 de novembro de 2021

Marxismo para além da economia política, um elogio.

Démerson Dias


Guiseppe Pellizza da Volpedo (1868-1907
Il Quarto Stato, 1901 (detalhe)
fonte: moya1017, apud wikimedia.org
"Marx" é, sobretudo, o método. E o método marxista passa por Hegel (sobre os ombros de gigantes, como se diz).

Marxistas colocam o conteúdo acima do método. Todos eles.

E Marx não nos convocou a sermos marxistas. Está suficientemente explicitado, na própria elaboração, que almejava a emancipação comunista. Esse é o desafio que Marx legou a seus sucessores. Alcançar o comunismo, não explicar, mesmo que pelos meios mais exóticos, criativos e intrincados, o funcionamento do capitalismo.

A barbárie em que estamos imersos não é uma fatalidade. É projeto político. Tanto, que é indistinguível das formas de consumo, que, por sua vez, compreendem a causa de destruição paulatina e gradativa do planeta e, por tabela, da própria humanidade.

Especialistas insistem em decifrar apenas fenômenos (epifenômenos) econômicos da política de extermínio em escala industrial, que caracteriza o capitalismo. 

E nem mesmo setores à esquerda se dedicam a estabelecer os vínculos absolutos e indissociáveis entre produção e destruição, entre riqueza e miséria (por isso, o ecossocialismo e os identitarismos). 

Porque essa é a finalidade da ciência capitalista, separar em escaninhos, fenômenos que são partes ou etapas do mesmo processo e projeto. Economia estuda os efeitos, sociologia estuda suas origens etc, mas nenhuma delas arranha a interdependência entre as partes e sua função no projeto geral. Tem que ser assim, do contrário, o castelo de cartas da racionalidade da economia política se revela e desaparece.

Aliás, a própria barbárie, é mais a forma como as injunções políticas, históricas, sociais, econômicas estão dispostas, do que algo impermeável e monolítico.

Assim como Keynes se inspirou em Marx para produzir uma teoria e política para tirar o capitalismo do lodaçal em que se meteu, é possível que algum teórico capitalista produza nova prestidigitação (como Fukuyama, Yuval Harari está chegando perto disso).

Se Keynes é o maior monumento capitalista salvacionista, depois que os fundamentos clássicos foram pervertidos, ele é explicitamente rejeitado pelos que deveriam defendê-lo, os próprios capitalistas. Existe algo deteriorado e implícito, quando pessoas à esquerda do capitalismo reivindicam um ideólogo capitalista mais do que os próprios sucessores dele.

O deus-mercado não é keynesiano, a rigor nem mesmo é neoliberal. Se existe algo que define o deus-mercado é sua radical irracionalidade, que é reivindicada como virtude.

A economia trafega no território do ilusionismo. O lastro material, a produção, e o próprio capital em sua constituição originária, como expressão de bens e produtos, assumiu sua expressão artificial e razoavelmente arbitrária. Não é acaso, é sintomático, que o que manda no mundo hoje é o cassino das commoditties.

Especialistas, à direita e à esquerda, buscam atribuir elementos de racionalidade baseados em forças produtivas, elas explicam as potencialidades econômicas, mas o mundo capitalista não é produtivista, é financista (e, ainda, e como sempre, usurpador).

E essa foi a natureza de suas crises desde 1929. Não por acaso, um problema com a redução das taxas de lucro, que, hoje em dia, se explicita nos momentos e circunstâncias em que alguém tenta realizar o lucro anunciado como expressão de riqueza pelo mercado financeiro.

Economicistas fingem que não é essa a natureza da crise. Mas ela nasce de forma bastante ordinária, sem vergonha mesmo, quando o sistema bancário sobrepõe sobre um mesmo montante de capital, camadas ilusórias, ou artificiais de moeda e anunciam como rendimento, liquidez e lucro.

Isso move um exército de peões do mercado financeiro a buscar novas etiquetas, adereços e fantasias para sobrepor ao capital primordial e revendê-lo "ad infinitum" (não é tema desse texto o papel que os governos cumprem nessa fantasia).

Basta que um idiota, ou um gênio pergunte, de onde vem esse dinheiro,  para que o castelo de caras desabe, inclemente. 

Não é outra a razão para a ascensão da China a status de império capitalista, em vias de ser "o império".

O capitalismo buscava o dumping social. O que era crítica corriqueira dos teóricos capitalistas, só serviu para promover disputas esquerdistas no mundo (e no sindicalismo da ordem). O pragmatismo dos capitalistas nunca foi movido por pudor ao explorar mão de obra escrava, semiescrava, ou precarizada. Ao contrário, lançou um pregão reverso do qual a China, finalmente, se saiu vitoriosa. 

Basicamente  por que o estado, explicitamente ditatorial, não teve pudor de sujeitar a população à pior condição de exploração para ganhar a parada, e se tornar a maior indústria de bens. De bugigangas feitas de polímero plástico aos componentes mais sofisticados da microeletrônica. 

No entanto, os especialistas ainda teimam que o Silicon Valley é a origem da inovação e riqueza no mundo. Como é possível que os mais ricos do mundo sejam medidos por papel fiduciário, e ninguém questione? Propaganda é mesmo a "alma do negócio", mas o deus-mercado não se ocupa de questões da alma. Sua alma é o lucro.

Como o capitalismo é definido pela própria irracionalidade, pouco importou ao deus-mercado que esse movimento deslocasse a economia real para a China, mesmo empobrecendo e gerando crises na meca capitalista. O capitalismo, nem muito menos o deus-mercado, não são nacionalistas.

Quem busca virtudes econômicas no capitalismo, ou mesmo razoabilidade, está tratando de outra coisa, não do capitalismo. Em verdade toda "intelligentsia" que maneja conceitos econômicos pautando qualquer laivo de racionalidade na economia política está, basicamente, masturbando construções teóricas que mimetizam comportamentos específicos, pontuais e restritos que existem na ordem capitalista, mas estão mais longe de explicá-la do que Marx jamais esteve.

A questão nunca foi, nem será, explicar o capitalismo. Ele existe e "atua", independente de explicação e seus objetivos são elementares e pragmáticos. Onde existir probabilidade de maior lucro, ali será o foco primordial do deus-mercado. E o que orbitar em torno dele, serão as rebarbas que irão fomentar ficções e idealismos, acalentando o sonho de que todos possam pôr as mãos na oportunidade mais lucrativa. Fetiche, sobre fetiche, sobre  fetiche, diria Frank Herbert.

Os marxistas que se contentam em remoer as conclusões de Marx sobre economia política estão prestando um desserviço à humanidade, desmerecendo sua a "obra da vida" e o projeto político que engajou Marx e Engels. Escapa àqueles o sentido que existe entre a tese onze sobre Feuerbach e o que supostamente, seria o espírito da obra prima de Marx. O projeto de "O capital" ser inacabado deveria ser encarado como reticências, mas o é como ponto de exclamação. Marx não gastaria seu esforço fundamental para explicar o capitalismo, ainda que ele o tenha feito de maneira quase sobrenatural, a ponto de que os próprios capitalistas respeitam e reverenciam mais o arsenal teórico marxista do que dos de Smith e Ricardo e outros.

O Capital não é uma obra sobre economia, é a aplicação do método dialético de Marx e Engels, sobre as mistificações econômicas. Mas não aderiu à economia política, a denunciou. Se sua obra fosse concluída teria reunido as condições para a emancipação sobre o capitalismo.

É necessário parar de fixar olhar e enaltecer os salamaleques inerentes ao gestual capitalista e responder ao seu projeto político autoritário. E não existe forma de fazê-lo sem trazer à superfície e para o protagonismo político, a multidão de excluídos. O intelectual orgânico da classe proletária que não se debruça sobre essa tarefa, está sendo cúmplice do ilusionismo.

Freud explica melhor os mercados do que todo o exército de economistas e especialistas que juram estar decifrando a economia política (depois de Freu, Lacan também sobre os ombros de Hegel) . Não é acidental que Marx tenha se esmerado em começar a explicar o capital (não o capitalismo) pela mercadoria e anuncia o fetiche como seu segredo metafísico.

E ainda existem os iludidos em estágio quase patológico. Os que acham que é possível produzir conhecimento racional e programas de governo a partir dos espasmos de racionalidade que alguns identificam com a mesma convicção das crianças, e alguns adultos de sorte, que encontram imagens coerentes no formato das nuvens.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

E o assassinato doloso na Prevent Senior?

Démerson Dias



Capa da revista Superinteressante
de 2014

O Brasil é uma disfunção política no cenário mundial. Do tipo que, em saúde pública seria prontamente isolado e estudado para não contaminar o meio e se buscar profilaxia.

Há muito tempo a assimetria de ser uma das piores distribuição de riquezas, estando entre as dez, ou quinze maiores economias do mundo, já comprovava, de um lado a falência de país enquanto projeto democrático. E de outro, a vitória de uma burguesia nacional parasitária em enganar a tantos por tanto tempo.

“Pretos, pobres e brancos pobres como pretos” são presos por roubar galinha. Ou, na dúvida, podem ser alvejados por 80 tiros.

Já no caso da Prevent Senior, pelo menos uma vítima escapou da morte certa prescrita pela direção da seguradora de saúde. Uma advogada afirma que pelo menos 12 médicos corroboram a versão da vítima.

Na periferia, se um policial achar que um negro é suficientemente parecido com um meliante ele já é preso para averiguações, se não condenado a pena de morte, aplicada em rito sumário. Até o momento, nem o passaporte dos donos da Prevent Senior foram confiscados preventivamente. Vai saber se ainda estão no país.

Evidentemente as vozes da moral,  dos bons costumes e das pessoas de bem, advertiriam que trata-se de aguardar o devido processo legal.

Dentre uma infinidade de abusos de autoridade, Gilmar Mendes inventou uma razão inconstitucional para usurpar prerrogativas e impedir que Lula tomasse posse como ministro e, dessa forma, garantir que fosse preso. A justiça, quando quer "prende e arrebenta".

Se no extremo da barbárie judicial nós temos a lava-jato, já conhecemos, pelo menos um caso que se encontra no polo oposto, a barbárie da  injustiça.

Temos uma vítima salva por intervenção da família, profissionais atestando prática criminosa e pacientes comprovando a intenção do crime com os kits precoces.

Somado a isso, constatações sumárias de negligência dos órgãos que deveriam apurar ou prevenir o conluio criminoso, no popular, cúmplices ou coniventes.

É como se o Brasil estivesse fazendo turismo por um campo de concentração e ainda confabulasse candidamente se existe hipótese de um crime estar sendo cometido, ou se as pessoas estavam ali apenas figindo estarem sendo exterminadas.

A comparação com a principal “conquista” do nazismo é inevitável.

Bem entendido, nem se trata da realização de experimentos que, fatalmente levaram ao óbito enquanto são testadas as hipóteses científicas.

Pessoas foram assassinadas nos hospitais da Prevent Senior por que o cálculo atuarial da empresa discriminava qual era a curva de sinistralidade que comprometia o lucro da empresa. E utilizaram o maior desvario profilático das últimas décadas, porque era emocionante atender aos caprichos ensandecidos de um governante genocida.

A OAB deveria propor um termo de compromisso com seus administrados, todos advogados deveria se recusar a defender os donos daquela repartição nazista. Dessa forma, a eles caberia apenas um advogado dativo a quem estaria resguardado direito de aceitar sobre protesto.

Bolsonaro é um fascista, mas tem razão em um ínfimo aspecto nas idiotices que diz, ele incita ao crime, mas não obriga ninguém a cometê-lo.

Deveria ser enquadrado como mentor intelectual do crime. Profissionais que denunciaram poderiam ter penas atenuadas, ou alternativas, mediante acordo de delação.

Os donos da Prevent Senior deveriam ser submetidos a tratamento precoce em prisão de segurança máxima, até que uma falência múltipla de órgãos os liberasse da pena.
E os cúmplices diretos a serem arrolados e devidamente penalizados, são as associações médicas, Procuradores, promotores e todos os que uma vez cientificados, deixaram de atender a obrigação de denunciar e colocar em andamento uma apuração dos fatos.
Apuração na cidade de São Paulo, refere-se a órgãos do governo estadual estariam envolvidos no acobertamento da prática.
Tudo indica que será mais um episódio de descaso com criminosos venais sendo tratados como pessoas de bem.

Agora mesmo, uma empresa de notícias afirma que a Prevent Senior nem foi a entidade onde mais ocorreram óbitos, foi apenas a quarta em proporção de mortos. Não se sabe se quem escreveu, editou ou determinou essa abordagem vomitou, morreu, ou sofre de demência cívica. Também deveriam ser enquadrados como também como cúmplices, por distorcer evidências.

Se nem uma ação premeditada, ostensiva, e generalizada de prática de crime dolosa (intencional) pode ser alcançada pela mão coercitiva do Estado, o povo (sobretudo os parentes das vítimas) tem pleno direito de tomar nas próprias mãos a justiça.


domingo, 3 de outubro de 2021

Os comunistas precisam de nova ofensiva teórica

Démerson Dias

         Q
uando uma fração da direita brasileira faz contraposição mais consistente e contundente ao ensaio fascistóide do bolsonarismo do que o conjunto das esquerdas, nos deparamos com uma crise que vai além da práxis.

Contudo propor um debate sobre práxis nas esquerdas, particularmente nas esquerdas socialistas, implicaria inventariar contradições históricas que não caberiam nem mesmo num ensaio acadêmico. Além de desviar a intenção principal dessa reflexão.

A advertência de Lênin, “sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário”, nos dias de hoje não se aplica apenas a setores revisionistas do campo socialista. Ao invocar Lênin não o faço nos marcos de uma disputa vanguardista a respeito de quem possui a melhor teoria revolucionária.

A hipótese que pretendo trabalhar aqui é que, talvez, nossas práticas políticas sejam insuficientes, porque articulamos de forma insuficiente nossas teorias. E a profusão de teorias é inversamente proporcional à nossa capacidade de intervenção política, ao menos em termos de efetividade. Tampouco é suficiente afirmar que essa deficiência se deve apenas a setores iludidos com soluções eleitoralistas, posto que setores que denunciam o eleitoralismo não são mais bem-sucedidos que aqueles.

Por vezes, como desculpa, dizemos que o capitalismo é mais objetivo porque o foco primordial é o lucro. Além de imprecisa, é uma constatação incorreta. O capitalismo articula o modo de poder que exerce, e controla a forma primordial de mediação sobre a realidade.

Enquanto as esquerdas, basicamente, mimetizam a presunção de serem portadores de verdades absolutas. Ao fazê-lo abandonamos a política como possibilidade de encontros e construções comuns. Achamos que estamos disputando o poder político com a burguesia, apenas porque ela nos fez acreditar que, disputá-lo entre nós, é a forma eficaz de combatê-la.

O campo socialista, em termos mundiais, falhou em suas investidas basicamente porque não fomos capazes de escapar à sedução do poder estatal. Nisso não fomos melhores do que o capitalismo, mesmo com evidentes avanços históricos. Ainda assim, os que não foram capazes de conquistar a máquina estatal, tampouco conseguiram desarmar a forma política capitalista em suas próprias práticas cotidianas.

Nossa pretensão de universalidade não é apenas precária. Ignoramos o universo todo. Nossa análise da conjuntura internacional conta a história das opressões, não a dos oprimidos. Seguimos não dando voz a eles, porque determinamos como sua voz deve soar, notadamente em consonância com nossa visão de mundo.

E essa nossa visão de mundo é particular e autocêntrica. De certo modo, portanto, nós também praticamos uma forma disfarçada de opressão histórica, exigindo dos oprimidos que respondam apenas a partir das formas que consideramos válidas. Não por acaso, parcela majoritária das esquerdas exige que os oprimidos repliquem as formas políticas dos opressores.

Alguns setores das esquerdas conseguem ser críticos mais contundentes com experiências à esquerda do que são com a direita. Por esse diapasão, Mandela cedeu à forma de estado imposta pelos colonizadores. Cuba precisa ser democrática a partir da forma burguesa de exercício de poder. A China deve se vergar ao modelo civilizatório ocidental. Abominamos a Coreia do Norte porque a forma que ela encontrou para se proteger da influência do mundo externo foi criar uma versão esdrúxula de falanstérios vitorianos.

Setores do nosso ecossocialismo se apresentam como críticos do modelo extrativista, negando a cadeia alimentar e supondo o humano como espécie superior, não concorrente, coisa que pelo menos a natureza, desabona.


É possível encontrar sentido e razão em todas essas perspectivas.

Ocorre que importa pouco (na verdade não importa nada) a qualidade das nossas divergências, se as assumimos como se fossem verdades absolutas e intransponíveis. Ao fazê-lo, rompemos com a única força capaz de, efetivamente, superar o capitalismo, nossa diversidade e pluralidade.

Não por acaso, setores de vanguarda do capitalismo, ou de conciliação com ele, se fortalecem mais do que as esquerdas como críticos e profetas dos limites do neoliberalismo. Isso nada mais é do que o capitalismo se reciclando de mais uma de suas crises estruturais. Por via das dúvidas, alguns capitalistas mais aloprados já começam a providenciar o desembarque do planeta, através de nova corrida espacial.

O lixo que produzimos é tanto uma calamidade econômica, quanto desastre humanitário. No entanto, nos debatemos por discutir essas questões sem reconhecermos que o esgotamento do planeta é produto do antropoceno e não exclusivamente do capitalismo.

O “espírito científico” que busca vida em outros planetas é o mesmo que critica, mas produz e reproduz formas de extinção da vida no nosso.

Aliás, as diversas formas de terceirização e privatização do que deveria ser comum, produzem distorções que seguem no sentido contrário, ou ao avesso do que seria prudente, ou necessário. E são soluções técnicas e teóricas “superiores” de relações econômicas. Nossas críticas às formas de precarização e opressão não apostam em efetiva ruptura com a forma de mediação social autoritária.

A democracia como regime político é tutelada pelo “espírito acadêmico” em que qualquer hipótese é válida. Mas a realização de ideias no plano social não admite certos tipos de contradição, e o obscurantismo do reascenso fascista apenas demonstra o quão destrutiva é a tolerância democrática a ideias intolerantes.

Temos reivindicado a democracia mesmo que ela represente, para imensa parcela da humanidade, a coação sob a alça de mira de fuzis, infindáveis filas de miseráveis, famintos e desempregados. Mal nos damos conta de que não conseguimos diferenciar o tipo de democracia que defendemos daquela oferecida como fetiche pelo capitalismo.

E nos rebelamos quando o neoliberalismo confirma seu absoluto desprezo pelas formas liberais de democracia. Apelamos para que não maltrate a democracia tanto assim. Vamos prontamente salvar a democracia burguesa que é inimiga dos povos

No caso brasileiro, parte das esquerdas se comoveram com uma direita que, finalmente, compilou e expressou as maldades todas, sem qualquer filtro de civilidade.

Foi suficiente para que diversos setores das esquerdas entrassem numa espécie de catarse arrivista, como se, finalmente, tivéssemos a prova de que sempre estivemos certos.

Nos afogamos numa guerra de narrativas na qual o adversário nem sequer disfarça que seja mero expediente diversionista. E acabamos por achar que somos vitoriosos por construir os memes mais inspirados. Como se não fosse escancarado que este é um governo de piadas prontas. Basta acreditar no que dizem os próprios profissionais de comédia “stand up”.

Ainda assim, esse movimento maniqueísta não aciona em nós as incansáveis advertências dos mais importantes pensadores marxistas.

Cedemos a uma inócua disputa de narrativa que se presta mais a preencher lacunas em folhetins e embalar grupos de zap. Mas é miserável como forma de manifestação política emancipatória.

É preciso consolidar os consensos em torno do pensamento marxista, socialista, comunista, anarquista, libertário, inclusive categorizando tais vertentes, mas fundamentalmente, sinalizando nossos avanços políticos e teóricos.

O identitarismo não é uma deturpação capitalista, é sim a expressão do vácuo do que deixamos de ocupar. E quando denunciamos que sua parcialidade é alienação, não estamos enxergando o quanto nós mesmos deixamos tais setores a mercê de investidas autoritárias. Inclusive setores religiosos que saltaram da teologia da libertação para a teologia da prosperidade, sem que isso desperte em nós a percepção de que as condições objetivas se agravaram avassaladoramente, mesmo com todas nossas “conquistas civilizatórias” contra o dragão do neoliberalismo.

A ponto de que já existem hoje iniciativas dentro do capitalismo que são mais radicais na exigência dessas pautas do que as que conseguimos produzir em nossas fileiras. Alguns exemplos contundentes são Greenpeace e Humans Rights, médicos e jornalistas sem fronteira, que possuem inventário e intervenção mais sólida do que o conjunto das esquerda mundiais.

E ainda há os que negam, ou se surpreendem quando setores da direita capitalista brasileira (inclusive o judiciário, que é o instrumento mais reacionário numa república) são mais contundentes contra as desventuras fascistas do que praticamente todo o conjunto das esquerdas. Isso, e mais, quem anuncia que essa esquerda está esgotada como projeto civilizatório é acusado de celerado, ou inconsequente.

O capitalismo, nesses desvãos, é formalmente mais solidário do que os que se reivindicam porta-vozes do proletariado. Um capitalismo que jamais será humanizado, no entanto possui uma face, por vezes mais tolerante e includente do que o campo socialista consegue ser.

Preventivamente, preciso advertir que qualquer um que receba essas palavras como crítica direta não alcançou seu sentido ou intenção.

Marx traduziu com ninguém os sentidos do capitalismo. E os capitalistas aprenderam com ele, talvez mais do que os próprios marxistas.

Por vezes, os marxistas se aplicam a decifrar meandros da teoria econômica, sem se dar conta de que Marx produziu, sobretudo, uma crítica à economia política. E essa desatenção tem custado ao campo socialista, descompromisso com o que poderia vir a ser um estudo de campo e realidade, voltado à elaboração de uma economia marxista.

Ainda mais abrangente que uma economia marxista, uma política emancipatória frente ao capitalismo. Acusar o capitalismo de estado das experiências socialistas “reais” é tão improdutivo e inconsequente quanto reclamar que a destruição da camada de ozônio está aumentando a temperatura do planeta. Não basta constatar, é essencial fazer algo a respeito.

Da forma como agimos, transformamos o décimo primeiro postulado sobre Feuerbach numa profissão de fé, eternamente anunciada, mas nunca entendida o suficiente para se tornar ação efetiva.

Temos sido incapazes até mesmo de superar divergências entre nossas visões de mundo. Em que universo paralelo seria possível nos unirmos para construir uma prática solidária, se nem mesmo conseguimos fazer aproximações teóricas nas hermenêuticas marxistas.

Evidentemente não se trata de uma questão singela. A complexidade do pensamento marxiano suscita permanente redescoberta e em novos desdobramentos teóricos e políticos. Mas deveria ser evidente que Marx estava explicando o mundo capitalista para oferecer bases para transformá-lo, não para entendê-lo com maior acuidade.

Esse esforço coube aos capitalistas que o aplicaram de forma que socialista algum seria capaz de fazer. Por isso, inclusive, surgem leituras supostas, ou assustadoramente marxistas dentro do próprio pensamento capitalista.

O neoliberalismo é um exemplo consistente de utilização do instrumental de análise marxiano para estender ao máximo a capacidade de sobrevida do capitalismo a partir de intensas e extenuantes ressignificações de suas crises estruturais. A ponto de que prospera, por exemplo, no Brasil, em plena crise sanitária espetacular investida política de desmonte inclusive do sistema público de saúde.

Enquanto setores das esquerdas ainda tentam derrotá-lo no campo da economia política. E não se trata apenas de reconhecer que amplos setores das esquerdas seguem acreditando na governabilidade burguesa.

O fato é que não é possível derrotar o capitalismo dentro de seus próprios fundamentos e subjetividades. É preciso ir muito além e entender que negar o capitalismo, em hipótese alguma, pode ser confundido com emancipação. Estamos exauridos justamente pela negação maniqueísta do capitalismo.

Mais do que afirmar o novo, cabe aos comunistas afirmar o básico e o comum. Não como mera denúncia dos resultados da opressão. Mas como afirmação a partir dos sujeitos revolucionários, ou seja, nos cabe afirmar que "mundo novo'' é esse que irá emancipar a sociedade do capitalismo.

Nossas expressões de poder, desde os estados constituídos, até nossas práticas em organizações sociais, sindicais, partidos, não vão além das expressões que o próprio capitalismo prescreve.

Mesmo quando nos anunciamos como libertários, insinuamos uma liberdade que não enxerga além da revolução francesa. Aquela não é a mesma liberdade que cabe a sujeitos históricos, pertence a um território de liberdade coletivista, como aventou a Comuna, mas não emancipatória, muito menos que seja comum por incluir a todos.

Ainda nos apegamos a um ideal humano iluminista. Como se o iluminismo não fosse uma espécie de reserva moral do capitalismo. Mesmo admitindo que não há problema em ceder por simpatia, ou nostalgia, ao que preconiza o iluminismo, convém ter em mente que a ruptura com o capitalismo está fora do alcance de sua visão de mundo.

Faria sentido supor que precisamos de um novo iluminismo? Talvez, mas o novo não pode ser o velho reformado. O capitalismo está esgotado, mas não conseguimos parir seu sucessor, embora a humanidade esteja prenhe de certezas sobre qual futuro não queremos.

Não se trata mais apenas de deter o capitalismo, mas de desarticular a barbárie na qual já estamos imersos. É possível até, que a própria crítica ao capitalismo seja obsoleta diante do desafio que é descobrir qual outro mundo é efetivamente possível, não como solução para a barbárie, mas como reversão das formas insustentáveis de economia, política e mesmo percepção da realidade.

Evidentemente, podemos recusar destruir nossas ilusões políticas. Mas sem isso jamais conseguiremos construir uma escapatória para a enrascada em que já estamos plenamente metidos. E afundando.


Pobres, resistência ou autonomia?

Démerson Dias*


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fonte: pinclipart
Desde o final da década de 70 acompanho os movimentos sociais no Brasil. E a partir de 89 fiz parte do "mundo sindical” e conheci de perto as organizações sindicais e movimentos sociais. Fiz parte das coordenações de iniciativas como o Fórum Social Mundial e do Jubileu Sul, em especial nas lutas contra a ALCA, tratado de “livre comércio”.

Não demorou muito para compreender que o movimento sindical, que cresceu no combate à ditadura de forma valorosa, se inseriu num contexto de validação do capitalismo. Como setor mais organizado e com mais recursos no campo das lutas sociais, acabou subordinando outras iniciativas à sua visão de mundo. Minha percepção, mesmo sendo parte deste segmento, é que o sindicalismo se tornou uma espécie de aristocracia dos movimentos sociais.

E esse jeito de ver o mundo definiu a forma como o conjunto das esquerdas combativas pensam a transformação da realidade.

Não vou entrar no debate sobre a distinção principal ocorrida nas esquerdas após a superação da ditadura de 64. Com o bipartidarismo, todas as esquerdas estavam abrigadas no MDB. Com a chamada redemocratização, o setor da esquerda da ordem ou permaneceu no PMDB, ou fundou o PSDB. A esquerda combativa, basicamente migrou para o PT e o PDT brizolista. O PSB naquele período compôs com essa esquerda. Infelizmente todas essas siglas acabaram compondo mais tarde a “esquerda da ordem”, termo utilizado por Florestan Fernandes para designar uma esquerda que não tem uma crítica radical à forma como a burguesia conduz o estado brasileiro.

Esse processo afetou todas as pautas sociais.

A ausência de uma crítica sobre a qualidade da democracia impediu as esquerdas de entenderem que não faz sentido afirmar que existe democracia no Brasil quando “pretos, pobres e brancos pobres como pretos” existem fora das margens da civilidade. E não apenas esses, mulheres, LGBTQIA+, também existem num patamar sub civilizado, por mais conquistas que tenham alcançado. E o assassinato permanente de todos esses segmentos é a prova que a “civilidade democrática” é inferior à anunciada “pujança” da nossa democracia. O Brasil vive praticamente um projeto de extermínio de populações que o “sistema” não tem interesse em incorporar, com suas identidades, potencialidades, virtudes e necessidades.

É mais ou menos como num recente jantar com um ex-presidente em que se faz uma crítica cômica e superficial ao atual governante fascista, mas todos os presentes, homens brancos, velhos e velhacos, de alguma forma, se beneficiam desse projeto político que está custando ao país, desnecessariamente, a pior crise sanitária da história.

Outro fator igualmente grave é o contexto jurídico e policial. Meio milhão de pessoas, em sua maioria pretos, compõem a população carcerária brasileira. E metade deles está preso de forma irregular, sem que os trâmites legais tenham sido cumpridos devidamente.

Fato ainda mais estarrecedor nessa mesma área da democracia, no Brasil não existe formalmente a pena de morte, mas isso só vale para brancos e burgueses. Pretos e pobres são executados sumariamente pelas forças que, na retórica, deveriam garantir a vida. 

A prova de que não existe disposição de democratizar a justiça no país é a tentativa de se aprovar o “excludente de ilicitude”, que diz que basta ao policial dizer que matou alguém porque se assustou, para que não seja penalizado.

Nesse cenário, as esquerdas, inclusive as da ordem, mas não apenas elas, sinalizam para esses setores “fora da ordem” que a solução para eles é fazerem luta de resistência.  Eleger políticos progressistas e apostar em políticas assistenciais ou que se limitem a alcançar o que a burguesia permitir.

Ou ainda, se colocarem como polo passivo de iniciativas assistenciais do estado e de entidades que diminuam a penúria, e promovam uma inclusão subordinada.

O efeito concreto dessa lógica política é que recolhemos as migalhas que caem da mesa do banquete burguês. E brigamos entre nós para ver quem consegue garantir a própria subsistência.

Na pauta econômica, a esquerda da ordem convoca os pobres ao empreendedorismo. Nova roupagem da velha meritocracia. Um debate arcaico que é incapaz de se contrapor à religião do trabalho.

Levando em conta a violenta derrota da luta armada, as esquerdas se omitiram de analisar a guerra civil que o estado patrocina contra as populações já excluídas e marginalizadas. E repudiam quando os setores que morrem pelas mãos da “lei e da ordem” expressam sua resistência com discursos que reproduzem essa violência. Nem denunciar a violência expressando raiva é permitido às vítimas.

E esse é o contexto de marginalização do RAP e Hip Hop, aceito como manifestação cultural, mas não como discurso político. É evidente que o mercado cultural vai tentar, a todo custo transformar, o funk em pura ostentação, que estigmatiza homens, mulheres e pobres como membros de gangues, ou objetos sexuais. E faz isso para tentar calar o grito e a manifestação profunda e consistente de crítica social daqueles que deram voz à realidade da exclusão política.

O que falta às esquerdas é entender que existe um potencial de protagonismo revolucionário nesses setores. Fica encoberto pelo apego à institucionalidade que se existe um “lugar de fala” da revolução brasileira, ele está mais próximo das populações marginalizadas, do que dos gabinetes e instituições.

Tenho enorme respeito pelas iniciativas políticas da esquerda, mas o termo excluído ameniza a ação premeditada da “civilização” que impõe a exclusão (exclusão da ordem, portanto, à sua margem), com forma de selar o destino de populações inteiras.

Bolsonaro patrocina a morte de 600 mil pessoas e é protegido pelo sistema.

Quem assalta e mata para comprar a pedra de crack é “a escória da humanidade”. E não pode nem mesmo ser alimentado pelo Padre Julio Lancellotti.

Não se trata de romantizar a violência dos excluídos, mas entender que o presidente tem diante de si a maior empresa do país que é o estado, pode eleger a política que achar conveniente. Mas quem luta pela sobrevivência tem muito menos poder de escolha, às vezes não tem escolha alguma.

Acho que precisamos inverter toda a lógica.

É política de estado que esses setores excluídos não tenham acesso a recursos mínimos de civilidade. De diversas formas, a organização política e social do país tenta perpetuar, para o povo pobre, um modo de existência que seja o mais próximo possível da realidade das senzalas.

Para não reconhecer o direito à cidadania aos descendentes dos escravizados, a “civilização brasileira” preferiu trazer imigrantes livres da Europa para substituir a mão de obra sequestrada da África.

Não precisa ser assim

Mas o desenvolvimento das forças produtivas oferece alternativas que permitem avançar na pauta social de forma que as esquerdas ainda não reconheceram.

O estado já não existe para as populações excluídas, ou melhor, o que existe é repressor e assassino. Mas o seu vácuo está lá e é apropriado, por atores sociais diversos, inclusive o crime organizado que, em alguns casos chega a garantir o acesso à medicação e condições menos precárias de subsistência. 

Além do básico que é oferecer emprego, pertencimento e identidade para inúmeros jovens rejeitados pela civilização.

O que tem faltado às perspectivas de esquerda é entender que é possível atuar para alavancar o protagonismo, inclusive político dessas populações.

Em vez de oferecer medidas assistencialistas, é possível promover autonomia. Existe uma economia de subsistência nos territórios excluídos. Durante a pandemia, associações de favelas demonstraram consciência política e organização econômica para administrar a crise humanitária. Somado à ação do SUS, essas iniciativas garantiram que a calamidade não fosse ainda maior.

Na própria esquerda existem formulações sobre um modelo de organização sócio econômica conhecida como economia solidária.

Os setores excluídos já estão à deriva em relação ao mundo civilizado. No entanto, o que cria riqueza é o trabalho, não o capital. O que está faltando para esses setores é aprenderem a funcionar como coletividade política autônoma. E nos dias de hoje isso pode estar ao nosso alcance.


Démerson Dias é funcionário público do judiciário federal (TRE-SP) e foi dirigente sindical nessa categoria.


sábado, 11 de setembro de 2021

O BODE SUBIU NO TELHADO

Démerson Dias


Síntese: Essa reflexão discorre sobre as seguintes perspectivas.

Bode no telhado em Bariri. 2015.
Cinegrafista amador anônimo
1) Por enquanto, a burguesia acha que salvou Bolsonaro e a sim mesma, da enrascada em que se meteu ao flertar com o fascismo.

2) Em tese, o próximo movimento cabe ao campo oposto. Se o foco permanecer apenas no fora Bolsonaro, sem consolidar o combate às reformas neoliberais, mas principalmente, sem colocar a sociedade precarizada no núcleo das pautas e das lutas, estaremos apenas “esquentando os motores” para 2022.

3) Talvez as esquerdas tenham perdido o bonde da história, permitindo que a própria burguesia encontrasse formas de acomodar sua aventura fascista. Um novo pacto republicano traz de volta o protagonismo institucional ao centro da política. Esse protagonismo vinha “descendo para as ruas” diante dos paradoxos lançados por Bolsonaro.

4) Está fora desse texto a reflexão do que será o legado bolsonarista na política nacional, se é que ele foi efetivamente desarmado. O primeiro desdobramento desse fenômeno foi o desembarque das linhas auxiliares da burguesia, MBL, Dória etc, do barco bolsonarista.

Agora nova cisão ocorre diante do abandono da investida frustrada que havia mobilizado o que sobrou do “bolsonarismo raiz”, como caminhoneiros e classes médias subalternas. O agronegócio apoiador de Bolsonaro não deve sofrer com essa ação frustrada, já que sua pauta é condizente com a da burguesia nacional e imperialista. Fatalmente setores populares sofrerão os maiores abalos, ou acabarão “pagando o pato” pelos erros de seu líder.

O inesgotável “quid pro quo” burguês brasileiro1

Ao contrário do que estão se apressando alguns, a montanha do golpe bolsonarista não pariu um rato. A burguesia brasileira, que flertou com o fascismo, chamou Michel Temer para realizar a redução de danos.

Era isso, ou arriscar expor a farsa da democracia burguesa, o que abriria um flanco para manifestações populares que poderiam distorcer a democracia de fachada existente no país.

Esse movimento, além de salvar a agenda de reformas neoliberais, da contaminação sistêmica pelos desvarios bolsonaristas, salva também a democracia burguesa da constatação de que o país viveu mais um momento de fiasco do “capitalismo raiz da burguesia nacional”.2

Agora, inclusive a esquerda da ordem, poderá, em coro com a mídia, reafirmar que “o Brasil tem jeito” e o jeito é o capitalismo, fim da história, utopia liberal. Como se queira.

Não é difícil entender o sentido da intervenção de Michel Temer, é a volta do pacto republicano burguês. Alguém, ou algo fez a visão de meia polegada de Bolsonaro entender que, antes que ele demolisse a república, a república devoraria a ele e, principalmente, seus filhos, o fragílimo calcanhar de Aquiles do patriarca.

Era previsível. Para tentar protegê-los, Bolsonaro já havia cedido aos militares e, posteriormente, ao Centrão.

Agora, formal ou politicamente, entrega, novamente seu mandato, para salvar a família. Típico de qualquer cretinismo3.

A diferença é que os militares em torno dele são a fração mais incompetente das Forças Armadas, e a competência do Centrão sempre foi o fisiologismo capitalista, nunca a governança.

A vetusta e embalsamada figura de Michel Temer é uma intervenção de outro nível. Republicano que conhece o caminho das benesses estatais, mas transita solenemente pelas cortes.

Bolsonaro é uma expressão franca e patética da burguesia. Um cão de guarda raivoso que, por falta de opção, e devido à estupidez típica da burguesia, foi o que sobrou para dar andamento ao projeto de dominação burguês.

Projeto que está explícito nas estatísticas. O Brasil possui a pior exclusão social do mundo, mesmo sendo uma das maiores economias.

Mais uma vez, um acordo republicando muda tudo para que tudo permaneça como está. Pelo menos até o próximo soluço hidrofóbico de Bolsonaro.

Enquanto isso, os de sempre seguirão pagando pela crise, inclusive com suas vidas. A burguesia no Brasil, também, nunca perde, mesmo diante de seus fiascos. Dessa vez Bolsonaro ofereceu algo caro, perdeu parte do controle sobre a boiada, a começar pelos caminhoneiros de seu curral particular.

Como se trata de mais um remendo, algumas variáveis vão depender de como evoluam esses atores secundários. Bolsonaro segue vivo e o bolsonarismo, mais ainda.

A burguesia mantém o cão raivoso como primeira via para impor à esquerda um brete entre ele e uma terceira via capitalista, que só existe pra isso mesmo, forçar a esquerda a fazer concessões. Engana-se quem supõe que burguesia acredita em terceira via.

A democracia burguesa brasileira sempre foi e sempre será uma via única, uma ditadura burguesa que eventualmente aceita uma fachada liberal.

O mito fundador do início do século passado, apregoa que os ricos são bem-intencionados e a indolência e falta de civismo dos pobres é o único empecilho para que o país alcance todo seu potencial.

O mito foi inventado para esconder a verdade mais elementar: o que destrói o país é a burguesia brasileira. E tem esquerda passando pano para esse mito.

Não é acidente de percurso

A solução Michel Temer é previsível. O que parece difícil, é convencer setores das esquerdas que Bolsonaro não é um acidente de percurso. Existe algum requinte em despachar o ex-presidente para essa interlocução. Afinal, alguém que ainda que por pouco tempo, foi preso.

Mesmo após deposição de ministros, impeachment de uma presidenta e a prisão do candidato virtualmente eleito para as eleições de 2018, ainda há quem acredite que está compactuando com a burguesia quando dialoga com o rodapé do capitalismo brasileiro.

Considerando o golpe contra Dilma a “Ponte para o futuro” foi o golpe 1.0 da burguesia, a eleição de Bolsonarismo foi a ponte para o futuro 2.0. Agora entramos na fase 3.0 da tentativa da burguesia retomar o controle da agenda do Estado.

Em outro contexto histórico, Bolsonaro seria o capitão do mato, donatário, bandeirante, ou a mosca do cocô do cavalo. Não importa, ele foi a solução encontrada pela burguesia para impedir o social liberalismo lulista de voltar à gestão do estado e derrotar o golpe de 2016, pelas urnas. Bolsonaro foi o movimento que a burguesia para emplacar de forma mais genuína seu projeto de governo4.

Se a intenção da burguesia fosse desconstruir Bolsonaro, bastaria ter prendido seus filhos no mesmo rito sumaríssimo que utilizou nas perseguições ao PT.

A burguesia não tentou calar Bolsonaro, nem combater seu governo. Seu esforço é apenas que ele não distraia os objetivos da burguesia com suas proverbiais e folclóricas incontinências verbais.

Os indícios que ligam Bolsonaro a esquemas de crime organizado, assassinatos por encomenda e corrupção ativa são infinitamente mais sólidos do que as razões que levaram ao golpe de 2016, seus antecedentes e decorrências. Tudo isso a serviço da burguesia.

E, surpreendentemente foram considerados pelas próprias vítimas e setores da esquerda como “parte do jogo”. Tamanha insensibilidade talvez explique o engajamento apenas retórico nas causas que efetivamente afligem as parcelas excluídas da população. É como uma espécie de ônus civilizatório, como me alegou, tempos atrás, um defensor do lulismo diante da greve de servidores públicos contra a privatização da previdência em 2003.

Não é acidente, portanto, que apesar de Marielle, Bebiano, Adriano, além das, cada vez mais incontestáveis, relações com rachadinhas, milicianismo e como se já não fosse absolutamente suficiente o elogio explícito a Brilhante Ustra, Bolsonaro siga livre para produzir novas catástrofes. As regras do jogo capitalista justificam toda e qualquer opressão.

Resta saber se os desdobramentos do 7 de setembro foram suficiente, ou se o cachorro doido, acuado, não entendeu o recado e pode se tornar mais violento. Essa hipótese parece razoavelmente afastada por mais uma perda de legitimidade. No entanto, a esfera de apoio miliciana e evangélica não foi desmontada. Isso ainda permite a Bolsonaro alguma margem de manobra.

Uma certeza podemos ter, qualquer que seja o custo para a burguesia ao preservar Bolsonaro e sua gangue, a trilha de mortos só aumenta.

O sonho oligárquico da esquerda da ordem

Desde que a monarquia aportou no o Brasil, o país nunca mais deixou de ser oligárquico (antes era basicamente vassalo e bandeirante de várias estirpes).

Por isso, quando alguma esquerda insiste em conciliação de classe, trata-se de autoilusão consciente. Normalmente para recusar uma solução por fora do ordenamento burguês.

Essas esquerdas parecem achar que se conquistarem o pódio de melhores gestoras do capitalismo, implique em aumento da zona de influência. Algo como um “operário padrão” da governança capitalista. Os galanteios dos países centrais contribuem com a ilusão de que os mandatários brasileiros exercem o poder, de fato.

Dito de outra forma, o núcleo da esquerda da ordem tem convicção que não é uma esquerda socialista, falta seus apoiadores descobrirem o mesmo. E ao resto da esquerda, notar que não existe conciliação estratégica com esse setor.

A estratégia é a conciliação por cima, não por baixo. A esquerda socialista, ou cede a isso, ou segue sendo ela mesma.

O erro lógico e talvez congênito da esquerda socialista talvez seja não perceber que o papel admitido para as esquerdas, pela burguesia é servir de anteparo e deixar o povo fora da política, inventando uma democracia que nunca se realiza. No sindicalismo popular: pelego.

O bolsonarismo é a prestidigitação criada tanto pela necrofilia da burguesia, quanto pela presunção narcísica das esquerdas da ordem.

A esquerda que aposta em 2022 é mais solidária com a burguesia do que com o sofrimento da população vítima da maior chacina da história do país.

Não é preciso grande esforço para ter certeza que tanto FHC, quanto Lula, ou Dilma teriam comportamento diametral em relação à crise humanitária da pandemia. Ocorre que Sarney, Itamar e Temer também teriam.

Da mesma forma manter algum compromisso com reivindicações sociais não é suficiente para romper como a burguesia, ou com as formas de autorreprodução do capitalismo.

Eis o fator que deveria balizar o debate das esquerdas. As esquerdas socialistas devem perseguir e cumprir o projeto estratégico de colocar a classe trabalhadora no poder. E deixar as demais esquerdas, seguirem seu destino através de acordos gerenciais com o capitalismo, cujo horizonte alcançará, no máximo, algo similar às agendas keynesianas, derrotadas pelo neoliberalismo. No que seja admitido à burguesia de um país periférico, bem entendido5.

É um novo estatuto da disputa entre o socialismo utópico e científico. Superação de aparências, ou radical do capitalismo.

O alcance estratégico dessa segunda via de esquerda é conhecido. Com a implosão da URSS e as contingências inerentes à periferia do capitalismo, a burguesia nacional sempre tenderá a sabotar, da forma mais firme possível, qualquer alternativa que implique em concessão às formas liberais que prescrevem, por exemplo, reforma agrária, tributária, do ensino etc.

Ao contrário do que acalentava a fração desenvolvimentista do tucanato, as privatizações só têm valor para a burguesia nacional enquanto forma de enriquecimento no curto prazo.

O alcance econômico estratégico dessa burguesia é tão extenso quando a meia polegada da visão bolsonarista. Enquanto para setores dóceis da esquerda, as privatizações parecem consolidação de um capitalismo nacional autônomo, na prática, significa concretamente desnacionalização e enfraquecimento econômico do país. E, de forma ainda mais desconcertante, cedendo estatais brasileiras para estatais estrangeiras6.

Escapa às teorizações sobre a conciliação de classe das esquerdas que a burguesia recusou a promessa de Bolsonaro que só sairia morto do poder. Embora seja evidente que sua deposição poderia significar uma redução drástica nos índices de mortalidade que seu governo patrocina, não foi esse o centro da preocupação da burguesia com Bolsonaro, e sim o dano ideológico que seus questionamentos às instituições estão patrocinando. Na impossibilidade de invasão da sede do Supremo Tribunal Federal (STF) o gado bolsonarismo partiu para ocupar, sem sucesso, o Ministério da saúde. A contar pelos arroubos, talvez a ocupação servisse para exigir mais eficácia e agilidade nos óbitos da pandemia. Afinal, pobres custam muito caro ao país.

Novamente, tomando como referência o rito sumário da perseguição ao PT, é mais importante para a burguesia barrar governos com enfoque social mais consistente, do que combater o banditismo estatal, o coronelismo e todos os vícios que Bolsonaro representa.

Não cabe mencionar o fisiologismo, ele está no cerne do caráter da burguesia brasileira. No entanto, não é um dado menor que a burguesia prefere ter um fascista no poder do que evitar a pior crise humanitária da nossa história.

Os que projetam o horizonte político para 2022, aceitem, ou não, acreditam em algo parecido. Como se alguma omissão diante da chacina da pandemia fosse condizente com o modelo republicano burguês de democracia e a solução para isso é o processo eleitoral. Como se o “mercado democrático” fosse resposta suficiente para a crise humanitária. Nem os países centrais do capitalismo apostaram nesse delírio7.

Não bastasse tudo isso, o flerte da democracia burguesa com o fascismo exige um contorcionismo adicional às esquerdas conciliadoras. Que tipo de acordo é possível com uma classe que admite o fascismo como resposta política válida?

O que nos coloca, finalmente, diante do impasse crucial das esquerdas brasileiras.

Aquilo deu nisso

A tolerância às contradições da burguesia brasileira levou as esquerdas da ordem a validar a opção do eleitorado por Bolsonaro. Como se diz, aquilo deu nisso.

Infelizmente, não foi uma tolerância passiva, tanto a esquerda tucana (herdeira direta e primária das diretas já), quanto as versões petistas, foram eleitas com um discurso inequivocamente de esquerda. Mas governaram como direita.

Um auto engano conveniente sugere que o povo é inconsciente e vota embalado apenas no mercadismo (marketing) eleitoral. Uma concepção condescendente de política.

A eleição de Bolsonaro sugere que não é bem assim.

As vitórias de FHC, Lula, Dilma8 e Bolsonaro, todas possuem como característica a afirmação de que o modelo de gestão burguês do estado é rejeitado pela população. É vergonhoso que sucessivos e veementes apelos, em campanha pelas pautas da educação e saúde, sejam deformadas em políticas que, quando não destroem frontalmente esses setores, os oferecem para a predatória exploração capitalista.

Dessa forma, a esquerda da ordem subordina o potencial do país à indigência intelectual da burguesia brasileira. E ainda sugerem que essa é a forma ótima de gestão pública.

Concretamente, acabam validando falácias neoliberais (estado gerencial, assistencialismo turbinado e outras balelas) como fosse possível existir um capitalismo ilustrado e humanista.

Todos os governos de esquerda, antes de Bolsonaro produziram a desconstituição do projeto constitucional de 1988. Isso considerando que o PT, tendo Lula à frente, assinou, porém rejeitou, pela esquerda, o texto constitucional9.

E só fez sentido para expressiva parcela da população votar em Bolsonaro porque tanto a esquerda tucana, quanto a petista, validaram o gerencialismo privado, fundamentado por Bresser Pereira10.

Não fosse esse comprometimento, o país não teria superado polêmicas políticas anacrônicas e bizarras.

Um exemplo dessa polêmica é que, após mais de 20 anos de governos de esquerda, em ainda existam questionamentos com o marco regulatório para demarcação de terras indígenas.

Em relação aos povos originários, não é possível existir dúvida de que somos invasores. Supor que é plausível e sensato que seu direito à terra possa ser absolutamente subordinado ao ordenamento dos invasores é padecer de um delírio cognitivo que só faz sentido no contexto das expropriações capitalistas.

Concretamente a oficialidade do país está levantando suspeitas sobre quem chegou primeiro na terra, a fazenda de agronegócio ou os habitantes Parque Xingu?

A Constituição tem mais de 30 anos. O país deveria, há muito, ter incluído, num debate sobre garantias e direitos fundamentais, uma política que reparação pelos etnocídios indígenas, bem como restauração dos espaços originários.

Com base em perspectivas antropológicas e geográficas teria sido possível estabelecer ou refundar uma política de convivência entre povos originários e as populações pós-coloniais. Inclusive de segmentos miscigenados.

É inadmissível que nós, “povo civilizado” não tenhamos compreensão de que essa discussão é fruto de uma abstração política, não um dado da realidade territorial do Brasil. No entanto, governos ilustrados e progressistas de esquerda pouco fizeram para ir além das medidas de demarcação restritiva dos direitos dos povos originários. Só por isso é possível ouvir hoje, idiotas falando em “empreendedorismo indígena”, ou pior, recatequizando da forma mais bárbara possível esses povos.

Diante disso, como não reconhecer que a política brasileira segue validando o extermínio indígena, em prol do pujante e inequívoco progresso capitalista?

Em questão contígua a essa, no governo Lula, sob gestão da ex-seringueira e “ambientalista” Marina Silva foi aprovada legislação florestal que corteja o latifúndio. Ou ainda, Belo Monte11.

Ações, que, inercialmente, autorizaram mudanças posteriores, que hipotecam o futuro e o destino da questão ambiental brasileira ao parasitismo internacional e, em boa medida, devolvem o país ao extrativismo quinhentista (com o genocídio incluído).

O Brasil e o próprio PT, que abrigaram Paulo Freire, um dos maiores expoentes em pedagogia da humanidade, reduziram o tema educação a um dilema financeiro.

Como se o acesso às pastelarias de ensino, que vendem educação como quem vende pastéis de vento, fosse o obstáculo decisivo para a superação do problema educacional brasileiro. Isso abriu caminho para a aberração da Base Nacional Curricular Comum.

Desde o restabelecimento das eleições, é absolutamente obrigatório incluir a educação e a saúde na pauta da campanha eleitoral, em especial para os cargos executivos12.

Uma vez no governo, profissionais dessas áreas são tratados como párias e incompetentes. Nem mesmo uma proposta de valorização condizente de salários ao nível da importância da função ocorreu aos competentíssimos governantes.

Educadores são mantidos como profissionais de segunda linha, quando são o tênue fio que evita que o país desabe rumo à indigência cognitiva. Condição que garante maior, ou menor autonomia de um país em relação à vassalagem colonial e garante agregar valor à produção dos bens primários.

Na saúde, como se viu na pandemia, os profissionais desse setor foram a única linha divisória entre vida e morte. Já que governantes tergiversaram, ou simplesmente foram solidários com a ação criminosa do governo federal.

O mais ambicioso projeto de inclusão política que as esquerdas da ordem conseguem oferecer à população é a oportunidade de se fingirem donos dos próprios sonhos e desejos, ostentando grifes alienantes, e almejando fazer parte de uma civilização que lhes exclui e abomina.

A precarização da saúde e educação funciona como forte âncora para evitar a sociedade tenha condição e habilidade para reivindicar seu protagonismo político.

Especificamente sobre o período Lula, se suas conquistas fossem sólidas e radicais, não estaríamos assistindo um dos mais brutais ataques aos serviços públicos, no exato momento em que a pior pandemia da história massacra o país13.

A comunidade internacional assistiu estarrecida o desastre sanitário brasileiro, já que o SUS é referência mundial em matéria de política universal de saúde.

Acreditar na gestão gerencial do Estado é supor que o setor privado seja capaz de atender a necessidades estruturais da sociedade. Pode ser que isso funcione, em alguma medida, em algum país do centro do capitalismo, sempre lastreado em exploração de nações colonizadas. Mas aqui, com uma burguesia perdulária e parasitária, que patrocina o cretinismo político de parlamentares e governantes, exige, até mesmo de setores arejados da politica um arrojo maior em termos de políticas públicas.

Num contexto de esquerda socialista, os fundamentos políticos e ideológicos precisam ser diametrais. Torna-se cada vez mais impossível, até mesmo, dialogar com modelos de gestão capitalistas quando o interlocutor é a burguesia brasileira.

O povo brasileiro e sua vocação para a rebeldia

Ao contrário do que pressupõem, acreditam, ou querem fazer crer algumas esquerdas, o povo brasileiro14 é potencialmente rebelde.

São os povos originários lutando contra a dizimação, os povos de origem africana lutando contra a exploração e frações de abrasileirados que lutaram contra os desmandos da corte e pela libertação do território do jugo imperialista.

O Brasil que existia antes dos europeus era grande, poderoso e mágico. Foi obra do imperialismo ibérico em conjunto com uma nobreza parasitária sabotar insistentemente que as potencialidades se afirmassem. A miscigenação que poderia ser manancial civilizatório, se tornou prática de branqueamento. Sem a burguesia nacional, caudatária do capitalismo imperialista, o território brasileiro teria realizado seu potencial, pelo sincretismo dos povos.

As esquerdas da ordem rompem com um compromisso e tradição de mais de cem levantes, rebeliões e revoltas populares que construíram o que existe de história nesse país. Estendidos por 500 anos de história, não se passariam cinco anos, sem algum tipo de revolta social.

Somente a partir do golpe republicano, ou seja, em menos tempo do que curou o Quilombo de Palmares, com a exaltação burguesa e militarista e a invenção do mito fundador, essa história de lutas foi soterrada a um patamar de folclore.

Ações que moveram índios, negros, patrícios ou nacionalistas, mulheres e homens, por um mote simples: o direito de existir de forma autônoma e soberana.

O direito de construírem seu próprio país, ou nação.

Estamos aparvalhados diante dos dilemas da institucionalidade burguesa, enquanto deveríamos pensar e sentir como sente e pensa a maioria da população. Para esse latente Brasil real, pouco importa a face de “quem sobe ou desce a rampa”.

A esquerda que pretende apenas ser uma guarda de turno, ou fazer queda de braço para ser a cara do opressor, cumpre o papel de impedir que os excluídos se reconheçam como protagonistas da própria história.

Não deveria fazer sentido, para quem reivindica a tradição de esquerda, ser protagonista num contexto civilizatório que admite meio milhão de mortos.

Principalmente porque essas formas de etnocídio não são uma excepcionalidade no país que exterminou (e segue exterminando) etnias inteiras de povos originários.

Neste mesmo momento, outro meio milhão de brasileiros apodrece em nossas cadeias. Pelo menos metade deles não faz ideia de que existe um ordenamento jurídico no país, porque este ainda não os alcançou.

Tratamos a fome e a miséria como estatística.

Assim como a guerra civil em curso que alcança os mais altos índices do mundo em extermínio populacional, num país em que apenas formalmente a pena de morte não existe. Se aprovada a versão bolsonarista do excludente de ilicitude, passará a existir sub-repticiamente15. Assim como a democracia brasileira, mas em sentido inverso.

A situação política, econômica, institucional está na berlinda.

A resposta consequente para as esquerdas seria uma mudança radical de pauta. Na verdade é preciso romper com a pauta imposta pela governabilidade capitalista.

Em vez de defender uma posição de resistência, será preciso pautar o rompimento com a ordem das contrarreformas. A debacle econômica do governo Bolsonaro está lançando a economia num horizonte que nos aproxima das condições próximas às que inspiraram o Argentinazo de 2001.

Com o rearranjo promovido por Temer, isso foi retoricamente arrefecido. Mas a crise alavancada pela internacionalização dos preços do petróleo não vai diminuir, ao contrário.

As esquerdas comprometidas com a superação do capitalismo, em invés de pautar a centralidade das ações exclusivamente na derrota da experiência fascista da burguesia, deveriam construir laços e condições para estarem de prontidão quando o momento em que a instabilidade institucional alcançar seu ponto de maior fragilidade.

Esse momento também pode ser oferecido pelo desespero do bolsonarismo em seus estertores.

No entanto, é preciso uma nova forma de política. Na verdade uma política que hoje é considerada arcaica no Brasil. Sobretudo pelos auspícios da esquerda da ordem, parece que a boa política é aquela “civilizada”, praticada nos gabinetes, acompanhada de rapapés, quitutes e retórica, com alta dose de demagogia gerencial.

Evidentemente é preciso romper com a parcela da esquerda que tem como projeto estratégico a ambição de seguir sendo a melhor gestão capitalista do país que a burguesia permite.

Nossa tradição histórica merece e exige mais que isso.

Por enquanto, os diálogos virtuais ainda estão disponíveis para conspiração emancipatória. É momento de começar a conclamar e preparar o povo para a luta contra a carestia, contra o autoritarismo, contra a violência policial, em defesa da saúde, educação e de soberania.

Só quem está de olhos muito fechados não percebeu que o ordenamento jurídico já foi plenamente dinamitado pelas últimas investidas do bolsonarismo, a serviço da burguesia.

Quem quer que assuma em 2022 irá se deparara com inúmeros paradoxos. O Estado brasileiro da constituição de 88 não existe mais. Até mesmo os serviços públicos foram contaminados pela retórica empreendedora, por mais paradoxal que seja alguém supor que empreendedorismo e atividade pública sejam compatíveis.

Paira sobre a esquerda o desafio de criar condições para um novo regime constituinte, mas para isso é necessário que a convicção quanto a uma nova ordem tenha sido elaborada a partir da base da sociedade.

E aqui cabe a ressalva que estou considerando essa hipótese, embora não reconheça entre os atores mais expressivos da esquerda, ninguém com a disposição e capacidade necessárias para impulsionar o que é latente na sociedade e na luta pela sobrevivência.

Se há uma lição a aprender com o bolsonarismo é que ele não teve pudor de dizer o que pensa. E para isso afrontou séculos de construções teóricas e morais, pelo menos, desde o início do iluminismo, e, principalmente do último século e suas guerras.

É lastimável que esses que têm diante de si uma tradição de luta libertária, ouçam gritos com toda sorte de perversidade e insensatez, mas sintam-se constrangidos em assumir de forma incondicional a causa da solidariedade aos excluídos.

E o problema é exatamente esse, as esquerdas brasileiras fazem parte dos incluídos e sendo incapazes de, pelo menos, estabelecer uma empatia que vá além da retórica doutrinária e instrumental.

Eu poderia dizer que é preciso sujar os pés no barro, dos esgotos a céu aberto que assolam metade da população brasileira. Visitar a fome que destroça famílias, lares e esperanças.

Mas a pandemia também trouxe para a atualidade, nossas reuniões por banda larga e atividades com segurança sanitária. Ocorre que o problema ainda vai mais fundo do que isso.

Falta-nos, pelo menos nos colocarmos à altura do que propõe o pacifista Martin Luther King jr, em seu discurso no Cornell College no ano de 1962. “Pode ser que tenhamos que nos arrepender nesta geração, não apenas pelas palavras e ações mordazes das pessoas más, mas pelo silêncio terrível das pessoas boas.” Hoje, estamos aquém dessa advertência.

Não deveria fazer sentido na esquerda alguém reivindicar e lutar arduamente ser mandatário num contexto civilizatório e num ordenamento jurídico que admite meio milhão de mortos como efeito colateral. Ou ainda que trata questões como a fome, a miséria e o desemprego como indicador estatístico.

É inegável que o bolsonarismo grita com estardalhaço. Erramos porque confiamos que apenas nossa fala com bom senso e radicalidade teórica seja o contraponto suficiente. Quando o necessário é trazer a voz das ruas para o cenário político.

É caduca a crença de que é preciso “conceder” consciência política aos excluídos. Eles estão sobrevivendo ao capitalismo, apesar dos infindáveis flertes das esquerdas com as balelas institucionais. Até o momento, essa fração expurgada da civilização existe por si mesma, não porque os arranjos republicanos permitiram.

Na verdade sobrevivem exatamente apesar desses arranjos. E a pandemia deu a dimensão da vitalidade desse povo, que ainda nem existe nos manuais e teorias políticas que consagramos.

Nossa tarefa irrecorrível é garantir que a consciência existente seja um embrião para uma prática transformadora. O tempo da catequese das cartilhas foi pulverizado tanto pela ditadura, quanto pela reestruturação produtiva.

O índice da inclusão não é mais apenas dar voz, pois qualquer um tem sua voz imortalizada num aplicativo.

Além de apostar em lideranças locais, com sua vitalidade e aceitar também seus equívocos. Parar de discutir a fome e amplificar a voz dos famintos. Deixar de reivindicar os excluídos, e trazer para a arena política sua retórica e suas ações inorgânicas. Essa mesma percepção alavancou a evangelização conservadora e nos deixou vendo poeira.

A esquerda socialista precisa parar de acreditar que proclama o comunismo e ir aprender com quem ainda está cultivando suas sementes. Não são os movimentos políticos organizados e institucionais, nem a aristocracia das esquerdas que estão preservando nossas raízes.

O povo está onde sempre esteve. É ele que está no “lugar comum” da emancipação da classe trabalhadora. Dizendo de forma pós moderna, é com eles que está o lugar de fala da revolução.

A burguesia retomou o controle do jogo. Colocaram o bode no telhado.

Se deixamos o bode, ele cai do telhado e morre e, com sua morte, “os problemas acabaram”.

Se o tiramos, quem vier depois vai retomar sua missão. De qualquer forma, tudo retornará ao “ciclo virtuoso” burguês, concentração nababesca da riqueza de um lado, exclusão, morte e luta desesperada (ou consumista) pela sobrevivência.

A cilada está armada e a burguesia oferece 2022 como fetiche. E volta à disputa invocando o mérito de ter “neutralizado” o cão raivoso, já que não foi a ação decisiva das oposições que aplacou a onda bolsonarista (ao menos por enquanto).

Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Michel Temer, et caterva tornam-se fiadores em potencial da terceira. Isso se Bolsonaro não for desidratado exponencialmente até lá.

Se não entendemos que essa institucionalidade foi parida pela burguesia, portanto é dela o dever de embalá-la, seguiremos presos ao ciclo conservador, ou reacionário. E vamos, felizes, lutar para salvar a democracia burguesa de si mesma, enquanto ela lucra com nossa dedicação e esforço.

O que importa é salvar o povo da maldita democracia burguesia, não resolver as crises dela. Nossa luta não começou, nem vai terminar com a deposição de Bolsonaro e sua gangue.

Ousar lutar, ousar vencer!

* Démerson Dias. Servidor Público Federal no TRE/SP e ex-dirigente sindical.


Apêndice: Hipóteses em torno da conciliação de classes após 64.

Esse texto consolida reflexões que venho fazendo ao longo dos últimos anos. Mas é baseado mais em práxis política e alguma articulação de memórias do que em fundamentações teóricas.

Minhas observações derivam de mais de trinta anos de experiência e observação do funcionamento do aparelho do Estado, especificamente, mas não exclusivamente, em nível federal.

Acho pertinente expor essas considerações para aferição dos contornos e deficiências da análise. Apesar do ponto de fuga singular, essas considerações abrangem os embates ocorridos com as gestões do estado desde 1988 até o presente.

Tanto o tucanato, quanto o lulismo tentaram parcerias com a periferia desenvolvimentista do capitalismo.

FHC sucumbiu ao rentismo no embate ocorrido no PSDB que desautorizou o polo desenvolvimentista de seu governo.

O lulismo historicamente se constituiu a partir de uma concepção antiestatista dentro da esquerda. Numa perspectiva até mais conservadora que o tucanato.

As vitórias do partido no Rio Grande do Sul trouxeram para o centro de sustentação do PT uma concepção mais avançada que a do tucanato, no entanto esse setor não teve espaço condizente com esses avanços nos governos Lula. Muito pouco da experiência acumulada nos executivos do RS pautou, ou foi pautada nos governos do PT. Nem mesmo os avanços de elaboração sobre espaço público e espaço estatal da política.

Tampouco concepções sociais arrojadas como o “direito achado na rua” que circulou por ali nos tempos de gestão petista, engajou uma visão minimamente libertária do ordenamento jurídico. Ao contrário a política carcerária recrudesceu nos anos Lula. O sistema foi aprimorado sem que isso implicasse em ampliação efetiva da administração da justiça no país.

Talvez tenha ocorrido exatamente o contrário. Matéria do The Intercept16 em 2018 afirma que foi o aparato repressor patrocinado por Lula e Dilma que constituiu o estado policial que levou Lula à prisão.

Assim como a legislação antiterrorismo aprovada por Dilma à guisa de medidas para dar mais segurança à realização das olimpíadas paira sobre movimentos sociais, dando, inclusive, mote ao bolsonarismo para rotular de terroristas os movimentos sociais.

A experiência de governo gaúcha teve importância (sobretudo em algumas polarizações com o segmento sindical paulista, também no poder), mas aparentemente a opção preferencial de Lula por Dilma ajudou a neutralizar historicamente aquelas experiências.

No poder, o lulismo não recorreu ao arcabouço neoliberal bresseriano herdado da era FHC. Mas também não desarticulou seu desmonte, menos ainda as privatizações.

Embora tenha se valido de um discurso anti-privatista, Pac, Fies, Prouni e sua atuação nas agências reguladoras introduziu variáveis de fortalecimento do avanço do setor privado em áreas de atuação social do estado.

Inclusive no avanço de concepção privada na gestão dos bancos públicos. Os importantes avanços nas políticas do BNDES ratificam essa estratégia, alavancando de forma impressionante as oligarquias privadas e o “livre empreendedorismo social”.

Nesse último aspecto chega a ser cruel estabelecer que a reposta à miséria estrutural produzida pelo capitalismo possui como principal solução, ou o assistencialismo, ou o empreendedorismo dos miseráveis.

Como se o mercado fosse uma entidade isenta de ideologia e preconceito e a meritocracia existisse. E ainda que o capitalismo brasileiro não funcionasse a partir de um voraz lóbi sobre os orçamentos públicos. Valeria buscar saber sobre o destino do empreendedorismo da baixada do Glicério, enaltecida por Lula como o momento mais marcante de sua gestão.

Apesar da lamúria de FHC é durante o período lulista que fica consagrado no país um modelo social liberal.

Uma radicalização no sentido errado, já que foi encarada tanto pelas classes médias, quando pelo núcleo da burguesia como uma investida frontalmente contraditória com compromisso do lulismo com esse segmento, que é o setor que efetivamente dita os rumos políticos e econômicos do país.

O lulismo pagou caro para, atender apenas superficialmente as necessidades materiais e políticas dos excluídos e ainda pagou pesada fatura por isso.

O caráter antiestatal do PT o aproxima mais da burguesia nacional do que as contradições internas do antigo tucanato. A polêmica entre desenvolvimentismo e monetarismo é típica da intelectualidade liberal.

Embora a vitória do rentismo se alinhe ao neoliberalismo, o debate só perdeu atualidade com a renovação do tucanato pela captura hostil de João Dória.

Setores à esquerda do PT seguem defendendo que é possível fazer o partido restaurar o protagonismo do estado social através de uma inflexão em direção ao público não estatal.

Contudo, essa percepção só tem validade num contexto de uma nova fase de um social liberalismo, o que, aparentemente está fora do horizonte do capitalismo mundial, em particular dos países periféricos. A crise de 2008 e ainda mais a pandemia de 20/21 praticamente soterram movimentações “virtuosas” na disputa capitalista.

Ainda assim, seria necessário demover o próprio Lula de seu projeto narcísico estratégico. Um simulacro segundo o qual, o reposicionamento do país entre as dez maiores economias possibilitará um distanciamento do país da zona periférica do capitalismo, o que abriria espaço para um reposicionamento do status socioeconômico. E Lula seria o líder visionário adiante dessa estratégia.

Essa hipótese, além de ir na contramão da história do país, retoma, com outras cores, o mito de fazer crescer o bolo antes de reparti-lo. Essa perspectiva se nega a reconhecer que a burguesia já abocanhou mais de 90% da riqueza do país17.

Na melhor das hipóteses a tese do bolo visa redistribuir os mesmos 10%, o que implica em exportar a luta de classes para uma guerra entre as classes médias pobres e as miseráveis, o que fatalmente isentaria a socialização de 90% da riqueza do país. Algo como insistir e comemorar a distribuição apenas das migalhas. Um marco típico dos governos Lula.


1Antes que eu seja interpelado sobre estar desarmando a luta contra o impeachment, o que estou considerando aqui é que quanto mais bem sucedida a intervenção de Michel Temer, menor as chances do Impeachment prosperar. A primeira sinalização efetiva virá do posicionamento do STF em relação ao prazo que o legislativo tem para abrir o processo. Se a ira santa de Fux e Barroso se mantém, a corte irá decretar um prazo. Em caso contrário irão apenas “devolver” a bola para o legislativo.

2A democracia liberal é uma teorização utópica da intelectualidade a serviço da burguesia. A fração austríaca, a partir do evento nazista, interpretou com mais precisão os desejos da burguesia. Quando a face ilustrada dessa linha auxiliar governa, temos as soluções keynesianas e de estado de bem-estar. Mas são incursões com prazo de validade e apenas para redução de danos. A gestão neoliberal é a que melhor atende aos interesses e valores morais da burguesia. A confusão entre burguesia e democracia foi um delírio permitido a setores ilustrados que aderiram à revolução burguesa. O capitalismo implica em soluções condizentes com o avanço dos modos de produção, mas também com os apetites e moralidade da burguesia.

3No dia 9 de setembro a live de Bolsonaro expressava basicamente sua a reacomodação forçada a mais uma de suas infindáveis derrotas. Ele é hábil em retificar seu curso para salvar sua pele da repercussão de seus arroubos. Mais uma vez, diversionismo. Curiosamente a carta de coautoria de Michel Temer sinaliza que as garras seguem afiadas, porém, recolhidas.

4Parte do esforço dessa reflexão é demonstrar que após o 7 de setembro de 2021, a eleição de Lula em 2022 se afasta cada vez mais de ser uma revanche contra o golpe de 2016 e passa a ser a redenção do capitalismo que “caiu refém de uma aventura protofacista”. Dialogo nesse sentido com as preocupações expressas por Vladimir Safatle em relação ao retorno de Lula à presidência. Por esse viés, Lula pode ser a própria via alternativa da burguesia aos efeitos de seu primeiro mandato. E o mais provável é que ele concorde com esses termos.

5Ainda é praticamente inexistente no Brasil uma reflexão consistente sobre como se dará a reacomodação do imperialismo, com a China ocupando o lugar da antiga URSS no conflito imperialista. Sem essa mudança na geopolítica, jamais o Brasil alcançaria espaço para surgir como interlocutor entre as maiores economias. Não por acaso, mesmo o “democrático” Biden tenta convencer Bolsonaro a fragilizar a relação com o Brics impondo derrota do modelo tecnológico 5G da Huawei. De seu lado, a China tenta convencer os Brics a apostar numa ruptura com o polo ocidental. Rússia e China estão construindo infraestrutura de comunicação autônoma em relação ao ocidente. Essa batalha pode ter alcance muito superior à corrida espacial. E o Brasil pode ficar dentro, ou fora dela.

6Existem outros fatores nebulosos no apoio da burguesia nacional a Bolsonaro. Não houve movimento de resistência consistente à política de liberação de armas. Isso pode decorrer da divisão apontada no plebiscito do desarmamento. Mas também da absoluta falta de visão de longo prazo da burguesia. Sob Bolsonaro, foram editados mais de 30 atos normativos, como portarias e decretos presidenciais, para desburocratizar e ampliar o acesso às armas e munições. Em fevereiro de 2021, o ex-ministro da defesa, Raul Jungman, alertou ao STF que a política armamentista de Bolsonaro começava a comprometer o monopólio estatal da violência, sinalizando o risco de criar condições para uma guerra civil não estatal.

7Se consolida no lulismo, mas não se resume a ele, a desistência de setores da esquerda de fazerem política para além das instituições. Ao horror da crise sanitária, o argumento válido é apenas reivindicar maior eficiência, ou menos descaso, o resto são lamentáveis estatísticas. Nenhuma liderança política se dispôs a liderar um esforço autônomo de defesa civil para enfrentar a calamidade da pandemia. A segmentação das forças sociais entre partidos, sindicatos e movimentos sociais é uma concepção instrumental burguesa. O eleitoralismo é uma distorção originaria dessa concepção.

8O Lulismo, talvez um dia explique ao país a opção por Dilma. Não eram poucas as alternativas, todas potencialmente concorrentes com a imagem de Lula como gestor competente. Explique também a razão para que tanto a luta contra o golpe, quanto sua denúncia posterior ter se tornado pauta secundário para o PT. Reeleições possuem caráter plebiscitário, mas a eleição de Dilma implica em aposta do eleitorado no avanço da agenda progressista de Lula. Infelizmente, o que houve foi o governo Dilma regredindo a padrões tucanos de gestão política, somado uma perceptível inabilidade para o diálogo democrático institucional.

9Nesse aspecto também, o PT se mostrou menos coerente que o tucanato. Anos depois, em 2010, o deputado José Genoíno assentou em sessão da CCJ discurso de Lula à época da constituinte, em que consta que o PT “apresentou em março de 1987 um projeto de Constituição nos parâmetros permitidos pelo capitalismo, mas que minorava o sofrimento da classe trabalhadora”. Já em 2013 por ocasião dos 25 anos a Constituição, Lula explicaria esse contexto dizendo que com a constituição que o PT defendia o país seria ingovernável. Uma afirmação que torna inequívoco seu compromisso com a gestão neoliberal do estado, em moldes próximos ao “neoliberalismo tropical” defendido por Bresser Pereira, agregado à rendição tucana ao monetarismo/rentismo.

10Nos meus 20 anos de sindicalismo indiquei Bresser Pereira como o principal formulador do neoliberalismo brasileiro. Embora não seja uma indicação precisa, a atuação dele no governo FHC foi decisiva para a definição do contorno do neoliberalismo brasileiro. Ele não é o único e, provavelmente, nem é o principal formulador dessa vertente.

11Os fetiches pró e contra a construção de Belo Monte são fruto da vocação autoritária do lulismo. Em vez de pautar o debate estratégico com as forças políticas da sociedade, o governo preferiu impor sua vontade a despeito das reivindicações democráticas. O mesmo já havia ocorrido em 2003 na privatização da previdência do setor público. Questão que pavimentou o surgimento do PSOL.

12Fugiria à proposta do texto a consideração das propostas meramente protocolares, produtivistas e quantitativas em relação à educação.

13No primeiro ano do governo Lula, em uma discussão de uma das frações políticas de sustentação ao governo, um interlocutor mencionava a exigência de um choque republicano no Brasil. Hoje tão mais distantes das conquistas da Constituição de 88, que não basta mais refundar a república. E quanto mais tempo se passa, mais radical vai sendo a solução necessária para reverter as regressões políticas do país. Um pouco mais, e 64 terá sido realmente um milagre.

14Reivindico afetivamente a caracterização de Darcy Ribeiro. A rigor, o povo brasileiro só não existe porque a burguesia no país não permite. E as esquerdas conseguem contribuir com esse recalcitrante aborto histórico.

15O Projeto de Lei 882/19, de Sérgio Moro e Jair Bolsonaro pretende que o assassinato pelas forças policiais possa ficar impune, se decorrer de medo, surpresa ou violenta emoção. Não ocorrer aos proponentes da lei que agir nessas condições deveria ser pressuposto inerente à ação policial. Além disso consagra o caráter covarde e amador à polícia, que não precisa mais se preocupar em alvejar partes não vitais das vítimas.

16“Lula é responsável, com Dilma, por incrementar o estado policial que se volta contra ele”. Instrumentalização política de mazelas sociais feitas por defensores de Lula tenta o retirar de onde o PT colocou muita gente: dentro de um robusto estado policial. Cecília Olliveira. The Intercept. Edição virtual de 25 de Janeiro de 2018. Acessado em 10/9/2021.

17Utilizei aqui um dado genérico para não precisar elaborar uma comparação entre o que foi o período lulista e a demolição bolsonarista.