Démerson Dias
Síntese:
Essa reflexão discorre sobre as seguintes perspectivas.
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Bode no telhado em Bariri. 2015. Cinegrafista amador anônimo |
1) Por enquanto, a burguesia acha que salvou
Bolsonaro e a sim mesma, da enrascada em que se meteu ao flertar com
o fascismo.
2) Em tese, o próximo movimento cabe ao campo
oposto. Se o foco permanecer apenas no fora Bolsonaro, sem consolidar
o combate às reformas neoliberais, mas principalmente, sem colocar a
sociedade precarizada no núcleo das pautas e das lutas, estaremos
apenas “esquentando os motores” para 2022.
3) Talvez as esquerdas tenham perdido o bonde da
história, permitindo que a própria burguesia encontrasse formas de
acomodar sua aventura fascista. Um novo pacto republicano traz de
volta o protagonismo institucional ao centro da política. Esse
protagonismo vinha “descendo para as ruas” diante dos paradoxos
lançados por Bolsonaro.
4) Está fora desse texto a reflexão do que será
o legado bolsonarista na política nacional, se é que ele foi
efetivamente desarmado. O primeiro desdobramento desse fenômeno foi
o desembarque das linhas auxiliares da burguesia, MBL, Dória etc, do
barco bolsonarista.
Agora nova cisão ocorre diante do abandono da
investida frustrada que havia mobilizado o que sobrou do
“bolsonarismo raiz”, como caminhoneiros e classes médias
subalternas. O agronegócio apoiador de Bolsonaro não deve sofrer
com essa ação frustrada, já que sua pauta é condizente com a da
burguesia nacional e imperialista.
Fatalmente setores populares sofrerão os maiores abalos, ou acabarão
“pagando o pato” pelos erros de seu líder.
O
inesgotável “quid pro quo” burguês brasileiro
Ao
contrário do que estão se apressando alguns, a montanha do golpe
bolsonarista não pariu um rato. A burguesia brasileira, que flertou
com o fascismo, chamou Michel Temer para realizar a redução de
danos.
Era
isso, ou arriscar expor a farsa da democracia burguesa, o que abriria
um flanco para manifestações populares que poderiam distorcer a
democracia de fachada existente no país.
Esse movimento, além de salvar a agenda de
reformas neoliberais, da contaminação sistêmica pelos desvarios
bolsonaristas, salva também a democracia burguesa da constatação
de que o país viveu mais um momento de fiasco do “capitalismo raiz
da burguesia nacional”.
Agora, inclusive a esquerda da ordem, poderá, em
coro com a mídia, reafirmar que “o Brasil tem jeito” e o jeito é
o capitalismo, fim da história, utopia liberal. Como se queira.
Não é difícil entender o sentido da intervenção
de Michel Temer, é a volta do pacto republicano burguês. Alguém,
ou algo fez a visão de meia polegada de Bolsonaro entender que,
antes que ele demolisse a república, a república devoraria a ele e,
principalmente, seus filhos, o fragílimo calcanhar de Aquiles do
patriarca.
Era previsível. Para tentar protegê-los,
Bolsonaro já havia cedido aos militares e, posteriormente, ao
Centrão.
Agora, formal ou politicamente, entrega, novamente
seu mandato, para salvar a família. Típico de qualquer cretinismo.
A diferença é que os militares em torno dele são
a fração mais incompetente das Forças Armadas, e a competência do
Centrão sempre foi o fisiologismo capitalista, nunca a governança.
A vetusta e embalsamada figura de Michel Temer é
uma intervenção de outro nível. Republicano que conhece o caminho
das benesses estatais, mas transita solenemente pelas cortes.
Bolsonaro é uma expressão franca e patética da
burguesia. Um cão de guarda raivoso que, por falta de opção, e
devido à estupidez típica da burguesia, foi o que sobrou para dar
andamento ao projeto de dominação burguês.
Projeto que está explícito nas estatísticas. O
Brasil possui a pior exclusão social do mundo, mesmo sendo uma das
maiores economias.
Mais uma vez, um acordo republicando muda tudo
para que tudo permaneça como está. Pelo menos até o próximo
soluço hidrofóbico de Bolsonaro.
Enquanto isso, os de sempre seguirão pagando pela
crise, inclusive com suas vidas. A burguesia no Brasil, também,
nunca perde, mesmo diante de seus fiascos. Dessa vez Bolsonaro
ofereceu algo caro, perdeu parte do controle sobre a boiada, a
começar pelos caminhoneiros de seu curral particular.
Como se trata de mais um remendo, algumas
variáveis vão depender de como evoluam esses atores secundários.
Bolsonaro segue vivo e o bolsonarismo, mais ainda.
A burguesia mantém o cão raivoso como primeira
via para impor à esquerda um brete entre ele e uma terceira via
capitalista, que só existe pra isso mesmo, forçar a esquerda a
fazer concessões. Engana-se quem supõe que burguesia acredita em
terceira via.
A democracia burguesa brasileira sempre foi e
sempre será uma via única, uma ditadura burguesa que eventualmente
aceita uma fachada liberal.
O mito fundador do início do século passado,
apregoa que os ricos são bem-intencionados e a indolência e falta
de civismo dos pobres é o único empecilho para que o país alcance
todo seu potencial.
O mito foi inventado para esconder a verdade mais
elementar: o que destrói o país é a burguesia brasileira. E tem
esquerda passando pano para esse mito.
Não
é acidente de percurso
A
solução Michel Temer é previsível. O que parece difícil, é
convencer setores das esquerdas que Bolsonaro não é um acidente de
percurso. Existe algum requinte em despachar o ex-presidente para
essa interlocução. Afinal, alguém que ainda que por pouco tempo,
foi preso.
Mesmo após deposição de ministros, impeachment
de uma presidenta e a prisão do candidato virtualmente eleito para
as eleições de 2018, ainda há quem acredite que está compactuando
com a burguesia quando dialoga com o rodapé do capitalismo
brasileiro.
Considerando o golpe contra Dilma a “Ponte para
o futuro” foi o golpe 1.0 da burguesia, a eleição de Bolsonarismo
foi a ponte para o futuro
2.0. Agora entramos na fase 3.0 da tentativa da burguesia retomar o
controle da
agenda do Estado.
Em outro contexto histórico, Bolsonaro seria o
capitão do mato, donatário, bandeirante, ou a mosca do cocô do
cavalo. Não importa, ele foi a solução encontrada pela burguesia
para impedir o social liberalismo lulista de voltar à gestão do
estado e derrotar o golpe de 2016, pelas urnas. Bolsonaro foi o
movimento que a burguesia para emplacar de forma mais genuína seu
projeto de governo.
Se a intenção da burguesia fosse desconstruir
Bolsonaro, bastaria ter prendido seus filhos no mesmo rito
sumaríssimo que utilizou nas perseguições ao PT.
A burguesia não tentou calar Bolsonaro, nem
combater seu governo. Seu esforço é apenas que ele não distraia os
objetivos da burguesia com suas proverbiais e folclóricas
incontinências verbais.
Os indícios que ligam Bolsonaro a esquemas de
crime organizado, assassinatos por encomenda e corrupção ativa são
infinitamente mais sólidos do que as razões que levaram ao golpe de
2016, seus antecedentes e decorrências. Tudo isso a serviço da
burguesia.
E, surpreendentemente foram considerados pelas
próprias vítimas e setores da esquerda como “parte do jogo”.
Tamanha insensibilidade talvez explique o engajamento apenas retórico
nas causas que efetivamente afligem as parcelas excluídas da
população. É como uma espécie de ônus civilizatório, como me
alegou, tempos atrás, um defensor do lulismo diante da greve de
servidores públicos contra a privatização da previdência em 2003.
Não é acidente, portanto, que apesar de
Marielle, Bebiano, Adriano, além das, cada vez mais incontestáveis,
relações com rachadinhas, milicianismo e como se já não fosse
absolutamente suficiente o elogio explícito a Brilhante Ustra,
Bolsonaro siga livre para produzir novas catástrofes. As regras do
jogo capitalista justificam toda e qualquer opressão.
Resta saber se os desdobramentos do 7 de setembro
foram suficiente, ou se o cachorro doido, acuado, não entendeu o
recado e pode se tornar mais violento. Essa hipótese parece
razoavelmente afastada por mais uma perda de legitimidade. No
entanto, a esfera de apoio miliciana e evangélica não foi
desmontada. Isso ainda permite a Bolsonaro alguma margem de manobra.
Uma certeza podemos ter, qualquer que seja o custo
para a burguesia ao preservar Bolsonaro e sua gangue, a trilha de
mortos só aumenta.
O sonho
oligárquico da esquerda da ordem
Desde que a monarquia aportou
no o Brasil, o país nunca
mais deixou de ser oligárquico (antes era basicamente
vassalo e bandeirante de várias estirpes).
Por isso, quando alguma esquerda insiste em
conciliação de classe, trata-se de autoilusão consciente.
Normalmente para recusar uma solução por fora do ordenamento
burguês.
Essas esquerdas parecem achar que se conquistarem
o pódio
de melhores gestoras do
capitalismo, implique em aumento da zona de influência. Algo como um
“operário padrão” da governança capitalista. Os galanteios dos
países centrais contribuem com a ilusão de que os mandatários
brasileiros exercem o poder, de fato.
Dito de outra forma, o núcleo da esquerda da
ordem tem convicção que não é uma esquerda socialista,
falta seus apoiadores descobrirem o mesmo. E ao resto da esquerda,
notar que não existe conciliação estratégica com esse setor.
A estratégia é a conciliação por cima, não
por baixo. A esquerda socialista, ou cede a isso, ou segue sendo ela
mesma.
O erro lógico e talvez congênito da esquerda
socialista talvez seja não perceber que o papel admitido para as
esquerdas, pela burguesia é servir de anteparo e deixar o povo fora
da política, inventando uma democracia que nunca se realiza. No
sindicalismo popular: pelego.
O bolsonarismo é a prestidigitação criada tanto
pela necrofilia da burguesia, quanto pela presunção narcísica das
esquerdas da ordem.
A esquerda que aposta em 2022 é mais solidária
com a burguesia do que com o sofrimento da população vítima da
maior chacina da história do país.
Não é preciso grande esforço para ter certeza
que tanto FHC, quanto Lula, ou Dilma teriam comportamento diametral
em relação à crise humanitária da pandemia. Ocorre que Sarney,
Itamar e Temer também teriam.
Da mesma forma manter algum compromisso com
reivindicações sociais não é suficiente para romper como a
burguesia, ou com as formas de autorreprodução do capitalismo.
Eis o fator que deveria balizar o debate das
esquerdas. As esquerdas socialistas devem perseguir e cumprir o
projeto estratégico de colocar a classe trabalhadora no poder. E
deixar as demais esquerdas, seguirem seu destino através de acordos
gerenciais com o capitalismo, cujo horizonte alcançará, no máximo,
algo similar às agendas keynesianas, derrotadas pelo neoliberalismo.
No que seja admitido à burguesia de um país periférico, bem
entendido.
É um novo estatuto da disputa entre o socialismo
utópico e científico. Superação
de aparências, ou radical do
capitalismo.
O alcance estratégico dessa segunda via de
esquerda é conhecido. Com a implosão da URSS e as contingências
inerentes à periferia do capitalismo, a burguesia nacional sempre
tenderá a sabotar, da forma mais firme
possível, qualquer alternativa que implique em concessão às formas
liberais que prescrevem, por exemplo, reforma agrária, tributária,
do ensino etc.
Ao contrário do que acalentava a fração
desenvolvimentista do tucanato, as privatizações só têm valor
para a burguesia nacional enquanto forma de enriquecimento no curto
prazo.
O alcance econômico estratégico dessa burguesia
é tão extenso quando a meia polegada da visão bolsonarista.
Enquanto para setores dóceis da esquerda, as privatizações parecem
consolidação de um capitalismo nacional autônomo, na prática,
significa concretamente desnacionalização e enfraquecimento
econômico do país. E, de forma ainda mais desconcertante, cedendo
estatais brasileiras para estatais estrangeiras.
Escapa às teorizações sobre a conciliação de
classe das esquerdas que a burguesia recusou a promessa de Bolsonaro
que só sairia morto do poder. Embora seja evidente que sua deposição
poderia significar uma redução drástica nos índices de
mortalidade que seu governo patrocina, não foi esse o centro da
preocupação da burguesia com Bolsonaro, e sim o dano ideológico
que seus questionamentos às instituições estão patrocinando. Na
impossibilidade de invasão da sede do Supremo Tribunal Federal (STF)
o gado bolsonarismo partiu para ocupar, sem sucesso, o Ministério
da saúde. A contar pelos arroubos, talvez a ocupação servisse para
exigir mais eficácia e agilidade nos óbitos
da pandemia. Afinal, pobres
custam muito caro ao país.
Novamente, tomando como referência o rito sumário
da perseguição ao PT, é mais importante para a burguesia barrar
governos com enfoque social mais consistente, do que combater o
banditismo estatal, o coronelismo e todos os vícios que Bolsonaro
representa.
Não cabe mencionar o fisiologismo, ele está no
cerne do caráter da burguesia brasileira. No entanto, não é um
dado menor que a burguesia prefere ter um fascista no poder do que
evitar a pior crise humanitária da nossa história.
Os que projetam o horizonte político para 2022,
aceitem, ou não, acreditam em algo parecido. Como se alguma omissão
diante da chacina da pandemia fosse condizente com o modelo
republicano burguês de democracia e a solução para isso é o
processo eleitoral. Como se o “mercado democrático” fosse
resposta suficiente para a crise humanitária. Nem os países
centrais do capitalismo apostaram nesse delírio.
Não bastasse tudo isso, o flerte da democracia
burguesa com o fascismo exige um contorcionismo adicional às
esquerdas conciliadoras. Que tipo de acordo é possível com uma
classe que admite o fascismo como resposta política válida?
O que nos coloca, finalmente, diante do impasse
crucial das esquerdas brasileiras.
Aquilo deu nisso
A tolerância às contradições da burguesia
brasileira levou as esquerdas da ordem a validar a opção do
eleitorado por Bolsonaro. Como se diz, aquilo deu nisso.
Infelizmente, não foi uma tolerância passiva,
tanto a esquerda tucana (herdeira direta e primária das diretas já),
quanto as versões petistas, foram eleitas com um discurso
inequivocamente de esquerda. Mas governaram como direita.
Um auto engano conveniente sugere que o povo é
inconsciente e vota embalado apenas no mercadismo (marketing)
eleitoral. Uma concepção condescendente de política.
A eleição de Bolsonaro sugere
que não é bem assim.
As vitórias de FHC, Lula, Dilma
e Bolsonaro, todas possuem como característica a afirmação de que
o modelo de gestão burguês do estado é rejeitado pela população.
É vergonhoso que sucessivos e veementes apelos, em campanha pelas
pautas da educação e saúde, sejam deformadas em políticas que,
quando não destroem frontalmente esses setores, os oferecem para a
predatória exploração capitalista.
Dessa forma, a esquerda da ordem subordina o
potencial do país à indigência intelectual da burguesia
brasileira. E ainda sugerem que essa é a forma ótima
de gestão pública.
Concretamente, acabam validando falácias
neoliberais (estado gerencial, assistencialismo turbinado e outras
balelas) como fosse possível existir um capitalismo ilustrado e
humanista.
Todos os governos de esquerda, antes de Bolsonaro
produziram a desconstituição do projeto constitucional de 1988.
Isso considerando que o PT, tendo Lula à frente, assinou, porém
rejeitou, pela esquerda, o texto constitucional.
E só fez sentido para expressiva parcela da
população votar em Bolsonaro porque tanto a esquerda tucana, quanto
a petista, validaram o gerencialismo privado, fundamentado por
Bresser Pereira.
Não fosse esse comprometimento, o país não
teria superado polêmicas políticas anacrônicas e bizarras.
Um exemplo dessa polêmica é que, após mais de
20 anos de governos de esquerda, em ainda
existam questionamentos com o marco
regulatório para demarcação de terras indígenas.
Em relação aos povos originários, não é
possível existir dúvida de que somos invasores. Supor que é
plausível e sensato que seu direito à terra possa
ser absolutamente subordinado
ao ordenamento dos invasores é padecer de um delírio cognitivo que
só faz sentido no contexto das expropriações capitalistas.
Concretamente a oficialidade do país está
levantando suspeitas sobre quem chegou primeiro na terra, a fazenda
de agronegócio ou os habitantes Parque Xingu?
A Constituição tem mais de 30 anos. O país
deveria, há muito, ter incluído, num debate sobre garantias e
direitos fundamentais, uma política que reparação pelos etnocídios
indígenas, bem como restauração dos espaços originários.
Com base em perspectivas antropológicas
e geográficas teria sido possível estabelecer ou refundar uma
política de convivência entre povos originários e as populações
pós-coloniais. Inclusive de segmentos miscigenados.
É inadmissível que nós, “povo civilizado”
não tenhamos compreensão de que essa discussão é fruto de uma
abstração política, não um dado da realidade territorial do
Brasil. No entanto, governos ilustrados e progressistas de esquerda
pouco fizeram para ir além das medidas de demarcação restritiva
dos direitos dos povos originários. Só por isso é possível ouvir
hoje, idiotas falando em “empreendedorismo indígena”, ou pior,
recatequizando da forma mais bárbara possível esses povos.
Diante
disso, como não reconhecer
que a política brasileira segue validando o extermínio indígena,
em prol do pujante e inequívoco progresso capitalista?
Em questão contígua a essa, no governo Lula, sob
gestão da ex-seringueira e “ambientalista” Marina Silva foi
aprovada legislação florestal que corteja o latifúndio. Ou ainda,
Belo Monte.
Ações, que, inercialmente, autorizaram mudanças
posteriores, que hipotecam o futuro e o destino da questão ambiental
brasileira ao parasitismo internacional e, em boa medida, devolvem o
país ao extrativismo quinhentista (com o genocídio incluído).
O Brasil e o próprio PT, que abrigaram Paulo
Freire, um dos maiores
expoentes em pedagogia da
humanidade, reduziram o tema educação a um dilema financeiro.
Como se o acesso às pastelarias de ensino, que
vendem educação como quem vende pastéis de vento, fosse o
obstáculo decisivo para a superação do problema educacional
brasileiro. Isso abriu caminho para a aberração da Base Nacional
Curricular Comum.
Desde o restabelecimento das eleições, é
absolutamente obrigatório incluir a educação e a saúde na pauta
da campanha eleitoral, em especial para os cargos executivos.
Uma vez no governo, profissionais dessas áreas
são tratados como párias e incompetentes. Nem mesmo uma proposta
de valorização condizente de salários ao nível da importância da
função ocorreu aos competentíssimos governantes.
Educadores são mantidos como profissionais de
segunda linha, quando são o tênue fio que evita que o país desabe
rumo à indigência cognitiva. Condição que garante maior, ou menor
autonomia de um país em relação à vassalagem colonial e garante
agregar valor à produção dos bens primários.
Na saúde, como se viu na pandemia, os
profissionais desse setor foram a única linha divisória entre vida
e morte. Já que governantes tergiversaram, ou simplesmente foram
solidários com a ação criminosa do governo federal.
O mais ambicioso projeto de inclusão
política que as esquerdas da
ordem conseguem oferecer à população é a oportunidade de se
fingirem donos dos próprios sonhos e desejos, ostentando grifes
alienantes, e almejando fazer parte de uma civilização que lhes
exclui e abomina.
A precarização da saúde e educação funciona
como forte âncora para evitar a sociedade tenha condição e
habilidade para reivindicar seu protagonismo político.
Especificamente sobre o período Lula, se suas
conquistas fossem sólidas e radicais, não estaríamos assistindo um
dos mais brutais ataques aos serviços públicos, no exato momento em
que a pior pandemia da história massacra o país.
A comunidade internacional assistiu estarrecida o
desastre sanitário brasileiro, já que o SUS é referência mundial
em matéria de política universal de saúde.
Acreditar na gestão gerencial do Estado é supor
que o setor privado seja capaz de atender a necessidades estruturais
da sociedade. Pode ser que isso funcione, em alguma medida, em
algum país do centro do
capitalismo, sempre lastreado em exploração de nações
colonizadas. Mas aqui, com uma burguesia perdulária e parasitária,
que patrocina o cretinismo político de parlamentares e governantes,
exige, até mesmo de setores arejados da politica um arrojo maior em
termos de políticas públicas.
Num contexto de esquerda socialista, os
fundamentos políticos e ideológicos precisam ser diametrais.
Torna-se cada vez mais impossível, até mesmo, dialogar com modelos
de gestão capitalistas quando o interlocutor é a burguesia
brasileira.
O povo brasileiro
e sua vocação para a rebeldia
Ao contrário do que pressupõem, acreditam, ou
querem fazer crer algumas esquerdas, o povo brasileiro
é potencialmente rebelde.
São os povos originários lutando contra a
dizimação, os povos de origem africana lutando contra a exploração
e frações de abrasileirados que lutaram contra os desmandos da
corte e pela libertação do território do jugo imperialista.
O Brasil que existia antes dos europeus era
grande, poderoso e mágico. Foi obra do imperialismo ibérico em
conjunto com uma nobreza parasitária sabotar insistentemente que as
potencialidades se afirmassem. A miscigenação que poderia ser
manancial civilizatório, se tornou prática de branqueamento. Sem a
burguesia nacional, caudatária do capitalismo imperialista, o
território brasileiro teria realizado seu potencial, pelo
sincretismo dos povos.
As esquerdas da ordem rompem com um compromisso e
tradição de mais de cem levantes, rebeliões e revoltas populares
que construíram o que existe de história nesse país. Estendidos
por 500 anos de história, não se passariam cinco anos, sem algum
tipo de revolta social.
Somente a partir do golpe republicano, ou seja, em
menos tempo do que curou o Quilombo de Palmares, com a exaltação
burguesa e militarista e a invenção do mito fundador, essa história
de lutas foi soterrada a um patamar de folclore.
Ações que moveram índios, negros, patrícios ou
nacionalistas, mulheres e homens, por um mote simples: o direito de
existir de forma autônoma e soberana.
O direito de construírem seu próprio país, ou
nação.
Estamos aparvalhados diante dos dilemas da
institucionalidade burguesa, enquanto deveríamos pensar e sentir
como sente e pensa a maioria da população. Para esse latente Brasil
real, pouco importa a face de “quem sobe ou desce a rampa”.
A esquerda que pretende apenas ser uma guarda de
turno, ou fazer queda de braço para ser a cara do opressor, cumpre o
papel de impedir que os excluídos se reconheçam como protagonistas
da própria história.
Não deveria fazer sentido, para quem reivindica a
tradição de esquerda, ser protagonista num contexto civilizatório
que admite meio milhão de mortos.
Principalmente porque essas formas de etnocídio
não são uma excepcionalidade no país que exterminou (e segue
exterminando) etnias inteiras de povos originários.
Neste mesmo momento, outro meio milhão de
brasileiros apodrece em nossas cadeias. Pelo menos metade deles não
faz ideia de que existe um ordenamento jurídico no país, porque
este ainda não os alcançou.
Tratamos a fome e a miséria como estatística.
Assim como a guerra civil em curso que alcança os
mais altos índices do mundo em extermínio populacional, num país
em que apenas formalmente a pena de morte não existe. Se aprovada a
versão bolsonarista do excludente de ilicitude, passará a existir
sub-repticiamente.
Assim como a democracia brasileira, mas em sentido inverso.
A situação política, econômica, institucional
está na berlinda.
A resposta consequente para as esquerdas seria uma
mudança radical de pauta. Na verdade é preciso romper com a pauta
imposta pela governabilidade capitalista.
Em vez de defender uma posição de resistência,
será preciso pautar o rompimento com a ordem das contrarreformas. A
debacle econômica do governo Bolsonaro está lançando a economia
num horizonte que nos aproxima das condições próximas às que
inspiraram o Argentinazo de 2001.
Com o rearranjo promovido por Temer, isso foi
retoricamente arrefecido. Mas a crise alavancada pela
internacionalização dos preços do petróleo não vai diminuir, ao
contrário.
As esquerdas comprometidas com a superação do
capitalismo, em
invés de pautar a
centralidade das ações exclusivamente na derrota da experiência
fascista da burguesia, deveriam construir laços e condições para
estarem de prontidão quando o momento em que a instabilidade
institucional alcançar seu ponto de maior fragilidade.
Esse momento também pode ser oferecido pelo
desespero do bolsonarismo em seus estertores.
No entanto, é preciso uma nova forma de política.
Na verdade uma política que hoje é considerada arcaica no Brasil.
Sobretudo pelos auspícios da esquerda da ordem, parece que a boa
política é aquela “civilizada”, praticada nos gabinetes,
acompanhada de rapapés, quitutes e retórica, com alta dose de
demagogia gerencial.
Evidentemente é preciso romper com a parcela da
esquerda que tem como projeto estratégico a ambição de seguir
sendo a melhor gestão capitalista do país que a burguesia permite.
Nossa tradição histórica merece e exige mais
que isso.
Por enquanto, os diálogos virtuais ainda estão
disponíveis para conspiração emancipatória. É momento de começar
a conclamar e preparar o povo para a luta contra a carestia, contra o
autoritarismo, contra a violência policial, em defesa da saúde,
educação e de soberania.
Só quem está de olhos muito fechados não
percebeu que o ordenamento jurídico já foi plenamente dinamitado
pelas últimas investidas do bolsonarismo, a serviço da burguesia.
Quem quer que assuma em 2022 irá se deparara com
inúmeros paradoxos. O Estado brasileiro da constituição de 88 não
existe mais. Até mesmo os serviços públicos foram contaminados
pela retórica empreendedora, por mais paradoxal que seja alguém
supor que empreendedorismo e atividade pública sejam compatíveis.
Paira sobre a esquerda o desafio de criar
condições para um novo regime constituinte, mas para isso é
necessário que a convicção quanto a uma nova ordem tenha sido
elaborada a partir da base da sociedade.
E aqui cabe a ressalva que estou considerando essa
hipótese, embora não reconheça entre os atores mais expressivos da
esquerda, ninguém com a disposição e capacidade necessárias para
impulsionar o que é latente na sociedade e na luta pela
sobrevivência.
Se há uma lição a aprender com o bolsonarismo é
que ele não teve pudor de dizer o que pensa. E para isso afrontou
séculos de construções teóricas e morais, pelo menos, desde o
início do iluminismo, e, principalmente do último século e suas
guerras.
É lastimável que esses que têm diante de si uma
tradição de luta libertária, ouçam gritos com toda sorte de
perversidade e insensatez, mas sintam-se constrangidos em assumir de
forma incondicional a causa da solidariedade aos excluídos.
E o problema é exatamente esse, as esquerdas
brasileiras fazem parte dos incluídos e sendo incapazes de, pelo
menos, estabelecer uma empatia que vá além da retórica doutrinária
e instrumental.
Eu poderia dizer que é preciso sujar os pés no
barro, dos esgotos a céu aberto que assolam metade da população
brasileira. Visitar a fome que destroça famílias, lares e
esperanças.
Mas a pandemia também trouxe para a atualidade,
nossas reuniões por banda larga e atividades com segurança
sanitária. Ocorre que o problema ainda vai mais fundo do que isso.
Falta-nos, pelo menos nos colocarmos à altura do
que propõe o pacifista Martin Luther King jr, em seu discurso no
Cornell College no ano de 1962. “Pode ser que tenhamos que nos
arrepender nesta geração, não apenas pelas palavras e ações
mordazes das pessoas más, mas pelo silêncio terrível das pessoas
boas.” Hoje, estamos aquém dessa advertência.
Não deveria fazer sentido na esquerda alguém
reivindicar e lutar arduamente ser mandatário
num contexto civilizatório e
num ordenamento jurídico que admite meio milhão de mortos como
efeito colateral. Ou ainda que trata questões como a fome, a miséria
e o desemprego como indicador estatístico.
É inegável que o bolsonarismo grita com
estardalhaço. Erramos porque confiamos que apenas nossa fala com bom
senso e radicalidade teórica seja o contraponto suficiente. Quando o
necessário é trazer a voz das ruas para o cenário político.
É caduca a crença de que é preciso “conceder”
consciência política aos excluídos. Eles estão sobrevivendo ao
capitalismo, apesar dos infindáveis flertes das esquerdas com as
balelas institucionais. Até o momento, essa fração expurgada da
civilização existe por si mesma, não porque os arranjos
republicanos permitiram.
Na verdade sobrevivem exatamente apesar desses
arranjos. E a pandemia deu a dimensão da vitalidade desse povo, que
ainda nem existe nos manuais e teorias políticas que consagramos.
Nossa tarefa irrecorrível é garantir que a
consciência existente seja um embrião para uma prática
transformadora. O tempo da catequese das cartilhas foi pulverizado
tanto pela ditadura, quanto pela reestruturação produtiva.
O índice da inclusão não é mais apenas dar
voz, pois qualquer um tem sua voz imortalizada num aplicativo.
Além de apostar em lideranças locais, com sua
vitalidade e aceitar também seus equívocos. Parar de discutir a
fome e amplificar a voz dos famintos. Deixar de reivindicar os
excluídos, e trazer para a arena política sua retórica e suas
ações inorgânicas. Essa mesma percepção alavancou a
evangelização conservadora e nos deixou vendo poeira.
A esquerda socialista precisa parar de acreditar
que proclama o comunismo e ir aprender com quem ainda está
cultivando suas sementes. Não são os movimentos políticos
organizados e institucionais, nem a aristocracia das esquerdas que
estão preservando nossas raízes.
O povo está onde sempre esteve. É ele que está
no “lugar comum” da emancipação da classe trabalhadora. Dizendo
de forma pós moderna, é com eles que está o lugar de fala da
revolução.
A burguesia retomou o controle do jogo. Colocaram
o bode no telhado.
Se deixamos o bode, ele cai do telhado e morre e,
com sua morte, “os problemas acabaram”.
Se o tiramos, quem vier depois vai retomar sua
missão. De qualquer forma, tudo retornará ao “ciclo virtuoso”
burguês, concentração nababesca da riqueza de um lado, exclusão,
morte e luta desesperada (ou consumista) pela sobrevivência.
A cilada está armada e a burguesia oferece 2022
como fetiche. E volta à disputa invocando o mérito de ter
“neutralizado” o cão raivoso, já que não foi a ação decisiva
das oposições que aplacou a onda bolsonarista (ao menos por
enquanto).
Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF),
Michel Temer, et caterva tornam-se fiadores em potencial da terceira.
Isso se Bolsonaro não for desidratado exponencialmente até lá.
Se não entendemos que essa institucionalidade foi
parida pela burguesia, portanto é dela o dever de embalá-la,
seguiremos presos ao ciclo conservador,
ou reacionário. E vamos,
felizes, lutar para salvar a democracia burguesa de si mesma,
enquanto ela lucra com nossa dedicação e esforço.
O que importa é salvar o povo da maldita
democracia burguesia, não resolver as crises dela. Nossa luta não
começou, nem vai terminar com a deposição de Bolsonaro e sua
gangue.
Ousar lutar, ousar vencer!
* Démerson Dias. Servidor Público Federal no
TRE/SP e ex-dirigente sindical.
Apêndice:
Hipóteses em torno da conciliação de classes após 64.
Esse texto consolida reflexões que venho fazendo
ao longo dos últimos anos. Mas é baseado mais em práxis política
e alguma articulação de memórias do que em fundamentações
teóricas.
Minhas observações derivam de mais de trinta
anos de experiência e observação do funcionamento do aparelho do
Estado, especificamente, mas não exclusivamente, em nível federal.
Acho pertinente expor essas considerações para
aferição dos contornos e deficiências da análise. Apesar do ponto
de fuga singular, essas considerações abrangem os embates ocorridos
com as gestões do estado desde 1988 até o presente.
Tanto o tucanato, quanto o lulismo tentaram
parcerias com a periferia desenvolvimentista do capitalismo.
FHC sucumbiu ao rentismo no embate ocorrido no
PSDB que desautorizou o polo desenvolvimentista de seu governo.
O lulismo historicamente se constituiu a partir de
uma concepção antiestatista dentro da esquerda. Numa perspectiva
até mais conservadora que o tucanato.
As vitórias do partido no Rio Grande do Sul
trouxeram para o centro de sustentação do PT uma concepção mais
avançada que a do tucanato, no entanto esse setor não teve espaço
condizente com esses avanços nos governos Lula. Muito pouco da
experiência acumulada nos executivos do RS pautou, ou foi pautada
nos governos do PT. Nem mesmo os avanços de elaboração sobre
espaço público e espaço estatal da política.
Tampouco
concepções sociais
arrojadas
como o “direito achado na
rua” que circulou por ali nos tempos de gestão petista, engajou
uma visão minimamente libertária do ordenamento jurídico. Ao
contrário a política carcerária recrudesceu nos anos Lula. O
sistema foi aprimorado sem que isso implicasse em ampliação efetiva
da administração da justiça no país.
Talvez tenha ocorrido exatamente o contrário.
Matéria do The Intercept
em 2018 afirma que foi o aparato repressor patrocinado por Lula e
Dilma que constituiu o estado policial que levou Lula à prisão.
Assim como a legislação antiterrorismo aprovada
por Dilma à guisa de medidas para dar mais segurança à realização
das olimpíadas paira sobre movimentos sociais, dando, inclusive,
mote ao bolsonarismo para rotular de terroristas os movimentos
sociais.
A experiência de governo gaúcha teve importância
(sobretudo em algumas polarizações com o segmento sindical
paulista, também no poder), mas aparentemente a opção preferencial
de Lula por Dilma ajudou a neutralizar historicamente aquelas
experiências.
No poder, o lulismo não recorreu ao arcabouço
neoliberal bresseriano herdado da era FHC. Mas também não
desarticulou seu desmonte, menos ainda as privatizações.
Embora tenha se valido de um discurso
anti-privatista, Pac, Fies, Prouni e sua atuação nas agências
reguladoras introduziu variáveis de fortalecimento do avanço do
setor privado em áreas de atuação social do estado.
Inclusive no avanço de concepção privada na
gestão dos bancos públicos. Os importantes avanços nas políticas
do BNDES ratificam essa estratégia, alavancando de forma
impressionante as oligarquias privadas e o “livre empreendedorismo
social”.
Nesse último aspecto chega a ser cruel
estabelecer que a reposta à miséria estrutural produzida pelo
capitalismo possui como principal solução,
ou o assistencialismo, ou o empreendedorismo dos miseráveis.
Como se o mercado fosse uma entidade isenta de
ideologia e preconceito e a meritocracia existisse. E ainda que o
capitalismo brasileiro não funcionasse a partir de um voraz lóbi
sobre os orçamentos públicos. Valeria buscar saber sobre o destino
do empreendedorismo da baixada do Glicério, enaltecida por Lula como
o momento mais marcante de sua gestão.
Apesar da lamúria de FHC é durante o período
lulista que fica consagrado no país um modelo social liberal.
Uma radicalização no sentido errado, já que foi
encarada tanto pelas classes médias, quando pelo núcleo da
burguesia como uma investida frontalmente contraditória com
compromisso do lulismo com esse segmento, que é o setor que
efetivamente dita os rumos políticos e econômicos do país.
O lulismo pagou caro para, atender apenas
superficialmente as necessidades materiais e políticas dos excluídos
e ainda pagou pesada fatura por isso.
O caráter antiestatal do PT o aproxima mais da
burguesia nacional do que as contradições internas do antigo
tucanato. A polêmica entre desenvolvimentismo e monetarismo é
típica da intelectualidade liberal.
Embora a vitória do rentismo se alinhe ao
neoliberalismo, o debate só perdeu atualidade com a renovação do
tucanato pela captura hostil de João Dória.
Setores à esquerda do PT seguem defendendo que é
possível fazer o partido restaurar o protagonismo do estado social
através de uma inflexão em direção ao público não estatal.
Contudo, essa percepção só tem validade num
contexto de uma nova fase de um social liberalismo, o que,
aparentemente está fora do horizonte do capitalismo mundial, em
particular dos países periféricos. A crise de 2008 e ainda mais a
pandemia de 20/21 praticamente soterram movimentações “virtuosas”
na disputa capitalista.
Ainda assim, seria necessário demover o próprio
Lula de seu projeto narcísico estratégico. Um simulacro segundo o
qual, o reposicionamento do país entre as dez maiores economias
possibilitará um distanciamento do país da zona periférica do
capitalismo, o que abriria espaço para um reposicionamento do status
socioeconômico. E Lula seria o líder visionário adiante dessa
estratégia.
Essa
hipótese, além de ir na contramão da história do país, retoma,
com outras cores, o mito de fazer crescer o bolo antes de reparti-lo.
Essa perspectiva se nega a reconhecer que a burguesia já abocanhou
mais de 90% da riqueza do país.
Na melhor das hipóteses a tese do bolo visa
redistribuir os mesmos 10%, o que implica em exportar a luta de
classes para uma guerra entre as classes médias pobres e as
miseráveis, o que fatalmente isentaria a socialização de 90% da
riqueza do país. Algo como insistir e comemorar a distribuição
apenas das migalhas. Um marco típico dos governos Lula.