Colapso cognitivo e impasse civilizatório
por Démerson Dias
por Démerson Dias
Napalm by Banksy |
Eu deveria ter escrito antes sobre a pós-verdade e seu entorno (logo desde do evento Oxford), inclusive algumas considerações sobre Zygmunt Bauman. Terei que recorrer a uma síntese imprudente, pois inúmeras reflexões estão pendentes dessas considerações.
Pós-verdade é um “não algo”. É basicamente a mentira com outro nome, só que elevada a um status de valor transcendente. Como se houvesse algo acima da verdade, capaz de estar além dela. No entanto é apenas uma mentira que não se pretende nominar. Nesse sentido é “não algo” descrito a partir de seu avesso. Ou a afirmação da negação pura e simples. Algo como se uma sub-dialética fosse apresentada como anti-dialética.
Convém ressalvar que a “verdade” para os que se ocupam sinceramente do conhecimento não é um estado, mas, no máximo, estágio. Está circunstanciada tanto na história, quanto no contexto, dentre outras características. Sempre podem existir verdades contraditórias se os contextos o forem e, dessa forma, quem lida com o conhecimento pode apreciar, não apenas as verdades restritas, ou circunstanciadas, como ter certeza que uma verdade não necessariamente anula a outra. O conhecimento, nessa perspectiva é, portanto, território de tolerância.
Deveria concluir assim, e teria uma boa inscrição lapidar. Mas a realidade não nos permite esses luxos.
Sobre a pós-verdade, trata-se, basicamente, da exaltação da representação das coisas em oposição à própria realidade (no nível em que é possível reconhecê-la). Ou seja, não é apenas um equívoco de percepção. Ela existe com o pressuposto de que deve, necessariamente, negar, enquanto representação, aquilo que supostamente afirma.
Estamos de volta à “Alegoria da Caverna”, agora, na perspectiva daqueles que, como numa síndrome de Estocolmo, reivindicam ferozmente a validade das sombras, contra a voz do inoportuno rebelde, que teima em alertar para a origem e definição das sombras. Adicionalmente, a primazia das sombras se sustenta também pelo medo à liberdade.
A “realidade virtual” potencializa essa paranoia, proporcionando uma “repaginada” das sombras que, agora, apresentam cintilações que as tornam ainda mais atrativas e “reais “, inclusive algoritmos “inteligentes” e bolhas de confirmação para nossas ignorâncias.
O que Platão propunha revelar, a apropriação dessas novas terminologias se esforça para mistificar, validar e revigorar: a atualidade e o dogmatismo em torno das sombras. E cabe, inclusive, a banalidade do mal nessa perspectiva. A necessidade de validar as sombras justifica até o extermínio dos que enxergam, ou anunciam, a luz (dialogando com as equivalências simbólicas). Surge como um imperativo moral diante da manutenção da ordem e da realidade como conhecida. Qualquer semelhança com o ciclo político que o Brasil está adentrando não é acidental, ou coincidência.
A pós-verdade é velha conhecida nossa, cresceu exponencialmente com o surgimento do mercadismo, vulgo marketing.
Através do mercadismo, o pior produto pode se tornar o “mais” imbatível (superlativos, hipérboles e pleonasmos apelativos são apreciáveis) e eficaz, a opinião do marqueteiro, imediatamente, se assenhora da consciência social (projetada), ou é guindada a palavra de autoridade. E sempre será possível atribuir autoridade a algum manequim profissional que disponibiliza seu nome ou imagem. Não importa a verdade, importa a verdade que se pretende proclamar. E essa é a principal síntese da chamada pós-verdade.
Importante advertir que a mídia comercial (dita imprensa), não apenas se apropriou, como ampliou efusivamente o mercadismo e a pós-verdade, editorializando propagandas e, sobretudo, a ideologia vigente, a ponto de tornar-se seu principal partido. A pós-verdade não alcançaria o atual status sem o “index” da mídia. Por isso sempre que essa afirmar querer prevenir ou combater as fakenews (sinônimo da pós-verdade) devemos entender essa investida como uma batalha pelo monopólio da pós-verdade.
Realidade alguma foi alterada, nem tornou-se líquida, Mas algumas pessoas insistem em relativizar de tal maneira os referenciais da realidade, que mentira pode se tornar verdade e concreto pode se tornar líquido. Mesmo esse fenômeno não pode se reivindicar original. Impérios foram construídos sobre perspectivas particulares da realidade, geralmente porque dependiam da exclusão dos fatores que os contrariam, ou confrontam como realidade válida.
Tampouco se deve buscar fantasmas ou demônios por trás desses desvios cognitivos. O recrudescimento do individualismo parece ter propiciado uma espécie de validação narcísica em que, mais importante do que a realidade, é a fé pessoal depositada na mesma. Realmente, não se trata de nenhuma novidade.
A virtualização da realidade ofereceu possibilidades de representação quase infinitas em comparação com nosso estado cognitivo. Poderia dizer, epistemológico. Mas não me disponho a levar o debate a uma nova celeuma representativa, qual seja, a da própria apreensão (ou “revelação”) do conhecimento. E as teorias do conhecimento também foram afetadas pelo obscurantismo que reivindica niilismos e inconsistência silogística.
Cabe uma ressalva em defesa de Einstein e da física quântica, utilizados, de forma deturpada, como álibi para justificar o relativismo da pós-modernidade. Os fenômenos físicos relativísticos não respaldam um relativismo absoluto. A relatividade é sempre delimitada por referenciais finitos (e conhecidos, frise-se). O que é relativo, o é, em aferição a determinados referenciais, não em relação A TODOS eles. Como se vê, nem mesmo a física escapou de ser vítima de leitores vulgares.
Retomando, nosso sistema cognitivo, para evoluir, depende de forma crucial, não apenas de conseguir explicar a realidade que nos cerca, como também de ser capaz de categorizá-la. Já a avalanche que nos assalta os sentidos na atual versão da evolução da mercadoria (fetiche), não apenas impede, mas também obstrui essa possibilidade.
Conhecer o fenômeno é resolvê-lo, e um sistema baseado no obscurantismo, para seguir existindo, depende decisivamente de manter as pessoas em desequilíbrio. Ao nos colocarmos “de pé” diante da realidade passamos a nos tornar sujeitos, e um dos pressupostos da realidade vigente é que nunca nos libertemos de ser objeto.
Até pouco tempo, esse fenômeno transitava por aspectos da realidade que nos permitiam manter uma perspectiva de razoabilidade em relação a eles. De certa forma era possível entendê-los como licença criativa, considerá-los numa esfera lúdica, é mesmo tomá-los como parte mesma da esfera do consumo, nas quais seriam cabíveis essas flexibilidades e até uma certa promiscuidade entre forma e conteúdo.
Descuidamos de nos preparar para a predominância das “pessoas jurídicas” sobre as físicas. Permitimos que o direito à propriedade fosse estendido aos objetos que o capitalismo decidiu chamar de pessoas jurídicas, e hoje esses fantasmas controlam, tanto a produção das pessoas, quanto elas mesmas.
Daí inclusive a propriedade intelectual em poder de coisas absolutamente incapazes de possuir qualquer intelecto. A esse respeito convém discernir e contextualizar os critérios e disposições do ambiente acadêmico, em que o conhecimento particular é disponibilizado a coletividade, sendo que essa, via de regra deve anunciar os pressupostos, origem e fonte em que suas conclusões são referenciadas.
Nas corporações comerciais, muito ao contrário, essa prática é terminantemente proibida, exceto para os donos e sócios dos empreendimentos, sendo que os profissionais elaboram e aperfeiçoam o conhecimento, em geral, assinam acordos de confidencialidade, não apenas para que não se conheçam as autorias, mas sobretudo para que os próprios autores jamais possam anunciá-las ou reivindicá-las. Inclusive das que são desastrosas para o conjunto da humanidade.
Por esse viés, não apenas os produtos dos indivíduos como também suas próprias existências são tuteladas. As corporações enquanto pessoas jurídicas são exemplos muito bem acabado de sombras de algo que simplesmente não têm existência real embora tudo seja elaborado para que sejam presumidas como se, de fato, existissem.
O fim da guerra fria desconstrói a existência do pólo opositor necessário à sustentação auto-reprodução capitalista, em que o “mal” depende da existência o “pior” para justificá-lo. As contingências e complexidades em torno do islamismo não oferecem fantasmas e demônios grandes o suficiente para fazer frente à ganância sem precedentes no modo de produção atual. A lua é insuficiente para explicar as sombras que se espraiam por todas as frações da realidade.
Enquanto a dominação absoluta de todas as formas de realidade ainda está fora de alcance uma forma de transição se faz necessária. Como o controle social ainda depende dos últimos dispositivos nas mãos da instituição em forma de “Estado”, mediações sociais ainda são necessárias e sua instância ainda é a política institucional.
Dessa forma, a pós-verdade é entronizada na política como recurso de transição para um modelo de negação da coletividade através da supremacia das individualidades sob tutela. Se a verdade pode ser individual, pode ser a verdade do tutor. Hoje esse tutor pode dizer estar a serviço de um deus, amanhã será apenas o melhor slogan ou logomarca.
No caso do Estado os intelectuais e cientistas instrumentais foram os cientistas políticos, mercadistas da sociologia. Ainda assim, tampouco estes são os demônios, são basicamente tecnocratas aplicados, como Eichmann. Que sempre estarão dispostos a aprimorar os instrumentos de dominação para o bem geral da coletividade anônima.
Caminhar por entre essas novas tecnologias é como transitar por inúmeros paradoxos, sem saber se romper algum deles pode implicar em dano maior do que o que nos cabe combater. O estado daqueles que confiam nas sombras é o de quem sempre vai recusar a hipótese de que projeções negam a realidade conhecida. Pouca coisa assombra mais a consciência humana do que a negação de uma realidade confortável e aceitável. Inclusive porque a própria mística está embutida nesse contexto. Nas sombras sempre existirão desígnios desconhecidos e inexplicáveis. Mas os senhores e tutores sempre estão à frente dizendo-se portadores, ou detentores da ordem mística.
No caso, a negação das Sombras instala uma gama tão vasta de risco que, por mais desconfortável que seja, o apego às sombras é menos aterrorizante que as possibilidades que se abrem diante de sua inexistência.
Setores do conhecimento tem se enganado na forma como lidam com o obscurantismo. As vítimas do obscurantismo não anseiam pelo esclarecimento, o repudiam por razão sólida. Sabem que o que existe é muito mais do que admitem contemplar. Não lhes falta, portanto, conhecimento. Sobra-lhes certeza de que o mundo em sua completude perceptível é muito mais do que suportam, ou se dispõem apreciar.
É preciso reconhecer que não fomos capazes de garantir uma disseminação equânime do conhecimento. E embora essa questão esteja na raiz da política de destroçamento do ensino forma “partidarizado”, a dicotomia entre obscurantismo e conhecimento, implica também na vitória da indústria cultural sobre o conhecimento (e a pedagogia em voga).
Ao invés de criaturas do aprendizado, nos tornamos criaturas do consumo e, por fim, consumíveis. Nunca foi acidental a formulação da escola sem partido, enquanto a escola estimular a dúvida ao conhecimento estabelecido ela será potencialmente rebelde.
Suspeito que possamos estar diante de mais uma dicotomia evolutiva entre os que almejam dar um passo adiante, e os que se sentem realizados como os contornos das sombras. Talvez essa diáspora do conhecimento seja o mais trágico dos desterros. Mas não tem sido assim “desde” Adão e Eva?
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