A Dor Como Mercadoria
Démerson Dias
Detalhe de Guernica - Picasso - 1937 |
Ana Victoria
Rodrigues Silva, 6 anos, moradora da favela da Vila Prudente é baleada, e há
controvérsias sobre a recusa de policiais ali presentes em prestar socorro à
menina[1].
Talvez os tiros que a vitimaram tenham partido desses policiais.
João Victor
Souza de Carvalho, de 13 anos, foi morto após abordagem de seguranças de uma
loja Habib’s[2],
ao invés de prestarem socorro, os seguranças o arrastaram e jogaram no chão
“feito um pacote flácido”. Talvez o menino tenha sido assassinado pelo
segurança.
Um jogador de
futebol condenado por ser mandante do estrangulamento, assassinato,
esquartejamento e ocultação do corpo de Eliza Samúdio está em liberdade, não
por progressão da pena, mas porque o Judiciário veio em seu socorro atendendo a
alegação de que a morosidade do próprio judiciário está produzindo uma
injustiça nos termos da lei. Talvez valha a pena mencionar que Eliza era atriz
de filme pornô e estaria, segundo seus assassinos, chantageando o nobre
esportista em razão de um filho de ambos. Há quem considere que em um enredo
como esse e diante do currículo da vítima, o crime seria justificável.
Para alguns a
pena de morte é sumária e dispensa até mesmo culpa. Para outros cabem recursos
e vigilância contra eventuais danos ou deslizes formais. Ou como se diz, para
um dos brasis todos são inocentes até prova em contrário. Para o outro, todos
são suspeitos, culpados e as penas, inclusive a morte, são cumpridas
imediatamente, via de regra os justiceiros estatais preferem aplicar de vez a
pena irrevogável.
Não são apenas
duas realidades sociais. São dois ordenamentos jurídicos distintos. Nos
enganamos dizendo que a lei é descumprida em relação aos pobres, quando, em
verdade, a lei para os pobres é a aplicação mais draconiana e extrema possível
de qualquer ordenamento. O esportista está sendo solto porque é o que garante a
lei a um “réu primário, com bons antecedentes”.
Pretos, pobres
e brancos pobres como pretos e mulheres são assassinados porque nasceram
culpados e seus antecedentes são sempre incriminadores e desprezíveis. Há um
Brasil em estado de exceção permanente.
Essas são apenas
algumas notícias colhidas nos últimos dez dias. Com pouca “sorte” podemos encontrar conjunções trágicas
em qualquer tempo na cobertura de morbidez funcional da mídia.
Uma canção da
década de 70[3],
dizia que "a dor da gente não sai no jornal". Hoje aparece, mas como espetáculo,
como se fosse apenas mais um folhetim fictício. Existe uma exaltação
ritualística da violência, narradores com voz impostada, dramaticidade
ensaiada, cenas cinematograficamente dirigidas, toda essa mis-em-scene banaliza
a dor e nos provoca, não a solidariedade, mas o alívio de não ter sido essa a
nossa vez. A violência parece uma fatalidade, não uma decisão arbitrada pelos “de
cima”.
Pessoas
consomem morbidez e, dado o “ibope” parece que sentem prazer nisso. Talvez
esbocem indignação, ou até desejo de vingança. Mas nada que possa contrariar os
ditames da disseminação do ódio e do medo. Claro, do contrário, a mídia
corporativa não apostaria nesse filão. Vendem dramas e
dores como um estalo de chicote a nos lembrar que sabemos rugir.
A criminalidade
é patrocinada em primeiro lugar pela escancarada iniquidade do país, é
legitimada pela truculência e genocídio estatal. Ingênuo é achar que todos vão
morrer dando graças ao sistema opressor. A violência na sociedade é basicamente
reativa.
Não é que a
criminalidade esteja na moda, está onde e como sempre esteve, a injustiça
também. No entanto, não estamos mais próximos de dar um tratamento humanitário
aos dramas da criminalidade do que estávamos há 30 anos.
Assim como o
crime organizado beneficiou-se do convívio com a inteligência política que
combateu, morreu e perdeu a guerra contra a ditadura de 1964, os esquadrões da
morte tornaram-se, enfim, política de segurança consumada.
Mentecaptos
elogiam torturadores em suposto templo da democracia e uma turba de acólitos
baba convulsivamente em seu louvor. Exceto pelos indignados de sempre, pelos
cínicos e pelos bandidos de outros empreendimentos que aquiescem
condescendentemente em silêncio.
Na mídia, mesmo
quando a ênfase da matéria está na palavra dos familiares das vítimas, o
tratamento editorial insinua que se trata do "outro lado". O lado
certo é o da criminalidade, a contestação é suposição. Policiais são vítimas da
violência porque são seu principal instrumento. Para o sistema a morte de
policiais é basicamente dano colateral e efeito moral para instilar ainda maior
violência do aparelho repressor.
Um policial
morto nunca será vinculado ao seu colega de corporação que pratica o sadismo
institucional. Bons policiais morrem, maus policiais também. Uma parcela dos
fora-da-lei são criminosos contumazes, adestrados ou naturalizados. Alguns
outros são peões. A quantidade de mortes de custodiados pelo poder público
desmoraliza qualquer vocação para a justiça que exista no aparato policial. Não
é apenas repressor, cumpre política de extermínio.
O que realça o
Brasil no mapa da morte, além das vítimas diretamente envolvidas nos confrontos
entre policiais e marginais, é que uma infinidade de danos colaterais não são
computados como pessoas inocentes. Nascer, crescer e viver numa favela, já não
fosse suplício suficiente, é preliminar para suspeição. Empresas de segurança
possuem prerrogativas acima da cidadania, poder de polícia e presunção de
inocência.
O combate ao
crime organizado cumpre basicamente o mesmo papel que a guerra ao terrorismo.
São pano de fundo para disputa de poder e mercado. Quando um helicóptero com
mais de 400 quilos de cocaína é
acobertado por todas as instâncias e autoridades, fica claro o embuste da
fachada. O governante que leva o posto avançado da polícia para a boca da
periferia o faz para encobrir que não enviou para lá educação, saúde e
condições mínimas de dignidade. A polícia chega como advertência aos que não se
conformarem da maneira mais subserviente possível. Chega para bater, torturar e
matar. E as pessoas de bem exige que sejam recebidos de braços abertos.
Mas o senso comum
apregoa que pretos, pobres e brancos pobres como pretos, são como escória.
Exército de reserva.
Deveria estar
mais do que claro que as instituições e o poder público não pretender alterar a
situação. O Ministério Público mantém em nível apenas residual o acompanhamento
da ação policial ilegal, ou truculenta. As defensorias de boa vontade não
apenas são violentadas em seu ofício[4],
como correm, seguidamente, o risco de viver a mesma sorte daqueles que
pretendem defender[5].
O país precisa
desmascarar a própria hipocrisia e enxergar que vivemos um ambiente de guerra
civil permanente e o Estado está nas duas frentes, combate e fomento do crime,
não se distingue fundamentalmente da criminalidade. Os criminosos não cumprem a
lei, o Estado jamais pode deixar de cumpri-la. Justamente quando o faz, dá
início à reação em cadeia.
É irrelevante demandar de forma
passiva as autoridades sobre o estado de violência. Dentre as suas finalidades,
a política de extermínio, é uma plataforma higienista, além de cumprir o papel de
manter o medo generalizado em um nível tangível. Que outra razão haveria para
manter a polícia com caráter militar, se não para perseguir os “inimigos
internos” do sistema? E por que nas metrópoles a pedagogia policial é idêntica
à do crime organizado? Às vezes coincidem até no linguajar.
As polícias não
são uma cura para a violência, e sim, uma prescrição de uso contínuo em
qualquer Estado autoritário. E estes são a imensa maioria dos Estados no
planeta.
A violência é
subproduto da injustiça. Quando o Estado deixa de cumprir seu papel fundamental
de indutor, promotor e defensor da justiça, a repercussão se estende por toda a
sociedade. Mas ao estado cumpriria a missão de ser solução para a violência.
Não sua causa.
Se o Estado é
incapaz de ser justo, é necessário redefinir o Estado e inventar um critério de justiça que não seja ódio, nem
vingança, e que seja capaz de impor ou constranger o Estado a cumprir sua função
sem hipocrisia.
Criança Morta-Portinari-1944 |