A
base do fascismo, do preconceito e da intolerância é a
desinformação.
Renato
Russo
Charge: Ivan Cabral |
As manifestações do dia 15 de março foram democráticas. Esse é meu
melhor esforço para não desmerecer pessoas conhecidas e amigos que
lá estiveram. Não fosse por esses, não me incomodaria em dizer com
maior contundência de que, efetivamente, se tratou.
Apontada
a concessão, é forçoso circunstanciar o termo democracia. Em
primeiro lugar, numa democracia cabem, inclusive, manifestações
antidemocráticas.
Em segundo lugar, foram democráticas em proporção
direta à precária democracia em vigor no país. Convém advertir,
que, para quem é de esquerda, trata-se basicamente de um arremedo de
democracia (democracia para privilegiados, para
os demais, o “apartheid”).
Dito
de outra forma, o que é “festa da democracia” para a maioria dos
manifestantes é pouco mais que um deslumbramento juvenil, sob a
perspectiva daqueles que forjaram a recente democratização do país
com suor, sangue e memória (existem os “órfãos do PT”, contra ou a favor do lulismo, mas
a conversa com esses é em outro nível).
Setores,
em grande medida, estranhos à democracia. Muito pouco afeitos ao
respeito ao direito e liberdade do outro. O pais que querem "de
volta" é um Estado com mais exceções que o atual (inclusive na corrupção), que expropriou direitos e
liberdades de todos os que não se subordinaram ao regime de força.
Não é democracia.
Ao
contrário, é um país que superamos a custo das vidas de alguns e
ao garroteamento e tutela das esperanças de muitos.
No
fim das contas, o que vimos foi a marcha contra os direitos das
empregadas domésticas, contra os que saíram da faixa do consumo de
subsistência para alcançar bens que dignificam suas vidas, ainda
que dentro de uma sociedade de consumo. Isso só é supérfluo para
os que nunca sentiram falta desses ítens. A esquerda programática
não defende a miséria generalizada e sim a riqueza distribuída, e
nesse aspecto fazem sentido as bandeiras anticomunistas. Porque a
manifestação foi a defesa dos privilégios de uma parcela da
sociedade ao custo da miséria de maiorias, até então,
marginalizadas e excluídas.
Embora
tenhamos informação de que a adesão à intervenção militar não
tenha sido a tônica principal dos manifestantes, faz todo o sentido
que esse segmento se expresse naquele espaço. Pois o outro segmento
que vai às ruas não admitiria sua presença nem mesmo por engano.
E
isso não ocorre por acaso. A defesa (ou reivindicação) da
truculência estatal institucionalizada descende diretamente do
estado policial que criminalizava lutadores e pobres em favor dos
donos do poder e, via de regra, com o silêncio sorridente desse
mesmo segmento que ali se manifestava. Essa face do Estado não
apenas segue existindo como vai sendo aperfeiçoada, e a guerra civil
contra pobres, pretos e brancos pobres como pretos cresce
constantemente.
Chegamos
assim à corrupção. Supostamente uma pedra de toque da
manifestação. Por definição, diante das inúmeras bandeiras,
palavras de ordem e reivindicações políticas (ou a flagrante
ausência delas), o espaço político menos indicado para pautar a
corrupção era justamente aquele.
Não
se via defesa do financiamento público das campanhas, engavetada
pelo mesmo ministro que às altas da madrugada se levanta para soltar
um dos personagens mais corruptos da história recente do país.
Como
pode, a massa que clama pelo combate à corrupção, não reconhecer
o vínculo elementar entre as doações dos grandes grupos econômicos
e as práticas viciadas em relação aos partidos e governos?
Igualmente
flagrante é a focalização em apenas um dos episódios envolvendo a
corrupção no país e em uma única esfera de governo. No caso de
São Paulo foi sintomático que a manifestação deixasse de
mencionar o propinoduto envolvendo a construção do Metrô. Esse
silêncio não pode ter sido acidental. O que foi constatado por um
dos institutos de pesquisa que identificou uma maioria absoluta de
eleitores do tucanato na manifestação.
Outro
episódio definidor diz respeito a uma faixa solitária e quase
abandonada em Brasília que acusava a “doutrinação comunista”
de Paulo Freire. Apesar de isolada, é bastante emblemática do
conjunto das manifestações.
Especialmente
para esse segmento que foi às ruas não é relevante a escandalosa
superficialidade de suas preocupações, intenções e bandeiras. É
resultado direto da educação cultivada no país ao longo dos anos
de chumbo que pregava obediência aos senhores, intolerância com a
divergência e a exclusão dos injustiçados. A educação, moral e
cívica dos exploradores sobre os explorados.
Suponho
que Paulo Freire só não foi amaldiçoado plenamente pelo conjunto
da manifestação por mera ignorância dos próprios antecedentes
históricos. Quem não conhece, ou não aspira à liberdade, acha que
todo mundo se conforma (ou deveria) com os grilhões.
A
educação libertária defendida convicta e apaixonadamente por Paulo
Freire é o melhor e principal antídoto para manifestações com a
magnitude dos equívocos que vimos desfilar nesse 15 de março.
Raciocínio
comum à expressiva maioria de manifestantes era associar o “combate
à corrupção” à defesa do impeachment. Que triste negligência
política e histórica.
O
centro das denúncias que levaram ao pioneiro Impeachment de Collor
era exatamente a corrupção. No entanto, o que assistimos de fato
foi que a corrupção, muito ao contrário de ser detida, se
aperfeiçoou desde então. O impeachment, portanto já foi testado e
comprovou sua ineficácia como inibidor da corrupção.
Resgatando
Paulo Freire, não é acidental que centenas de milhares de pessoas
ganhem as ruas compelidas a associar as duas bandeiras.
Exatamente
por desprezarem uma educação que ensine a pensar pela própria
cabeça, e não apenas repercutir o que doutrinam os folhetins, é
que aquelas pessoas não estabelecem nexo entre a própria mídia
entusiasta das manifestações e os esquemas de corrupção que
infectam o país de forma generalizada.
A
corrupção é um componente sistêmico, trocar o mandatário implica
apenas em mudar os beneficiários secundários. O principais são os
corruptores, que também não constavam de nenhuma faixa nas ruas.
Um
pouco mais de seriedade nessa discussão e estaria evidente que os
piores efeitos da corrupção não se localizam nas estatais como a
Petrobrás, em que o lucro, afinal, cobre os valores da gatunagem. Os
tentáculos da corrupção são muito mais nocivos, e, às vezes,
fatais, na área dos serviços sociais, demolindo a saúde,
deturpando a educação, violentando a segurança. Esses sim, oriundos
diretamente dos impostos pagos até pelo mendigo que compra cachaça
pra esquentar os ossos no frio das metrópoles.
Mas
os usuários que dependem exclusivamente dos serviços públicos não
eram os que estavam nessa manifestação. Portanto, a pior corrupção
tampouco interessava aos alegres manifestantes.
Uma
triste conclusão assombra, então, os ânimos dos manifestantes.
Embora tenham sido instados a ir às ruas para lutar soberanamente
contra corrupção e pelo impeachment, vulgo, terceiro turno, sua
escassa vocação democrática os leva a caçar gato quando lhes foi
dito que pegariam lebre.
A
gama de problemas apontados em suas reivindicações, ao menos as
sensatas, não se conquistaria apenas pelos trâmites institucionais
vigentes. Não é por outra razão que comunistas falam em revolução.
Parte das mazelas que detectamos na prática política atual não se
alteram sem demolir as bases que sustentam esse modelo. São
inerentes a ele.
Muito
diferente do que supunham expressar os manifestantes, o que nós
assistimos foi tão somente uma marcha de ressentidos e reacionários,
que faziam a defesa do passado, que caducou e que deveria estar muito
bem sepultado. Uma marcha que caberia melhor como um cortejo fúnebre.
Como
querem alguns, o da democracia.