sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Só podia ser de Pernambuco

"Só podia ser de Pernambuco"
por Démerson Dias

Foto: Acervo Instituto Paulo Freire
Às elites brasileiras, sobretudo, aquelas que se albergam nos pombais de luxo em Miami, e também as que se orgulham de declinar corretamente as regências nominais óbvias, vira-latas são os demais brasileiros. Dessas que, conforme Ariano Suassuna, dividem a humanidade entre os que foram e os que não foram à “Disney”.
Formalmente, não é demérito comparar a maioria do povo brasileiro, esse exaltado por Darcy Ribeiro, com vira-latas. Demérito seria comparar os vira-latas com aquelas elites.
As regências nominais podem passar incólumes, mas as virtudes humanas não se medem por essas regências.
Para a elite acadêmica mundial, essa que já sabe que a vida não se resume a um parquinho temático, o mais importante intelectual brasileiro é um cabra nascido no Recife.  Antes que Miami turve também o conhecimento geográfico do país (terra plana, geocentrismo etc), Recife fica em Pernambuco.
Uma das formas de medir o valor de um trabalho científico é pelas vezes em que sua obra é mencionada em outros trabalhos. Depois que a matéria da BBC repercutiu no Brasil as informações publicadas na Nature (revista científica britânica e uma das referências acadêmicas mais importantes do mundo), eis que “descobrimos” que Paulo Freire, mais especificamente “Pedagogia do Oprimido”, é a terceira obra mais citada em trabalhos acadêmicos na área de humanidades em todo o mundo (https://blogs.lse.ac.uk/impactofsocialsciences/2016/05/12/what-are-the-most-cited-publications-in-the-social-sciences-according-to-google-scholar/). 
O artigo de Elliott Green, professor da Escola de Economia e Ciência Política de Londres, na Inglaterra, conta que a Nature baseou sua pesquisa no Google Scholar e levou em conta as cem obras mais citadas no mundo. A obra de Paulo Freire teve nada menos que 72.359 citações.
Outro projeto, o Open Syllabus Explorer da Universidade de Columbia aponta que nos países de língua inglesa Pedagogia do Oprimido é a segunda obra mais solicitada nas universidades.
Ou seja, na área do conhecimento, um brasileiro, pernambucano, está entre os intelectuais mais citados no mundo. Não sei quantas estátuas de Paulo Freire existem no Brasil. Na suécia há uma que o equipara a grandes lideranças libertárias de décadas passadas.
Faz muito sentido que uma parcela de brasileiros obscurantistas odeiem e repudiem Paulo Freire. Como pode um sertanejo (não importa que seja de Recife, um dos centros urbanos mais importantes do país, uma das duas capitanias hereditárias que vingaram desde o pactuamento de Tordesilhas.
O que é capaz de destruir o obscurantismo? O esclarecimento, o conhecimento. Mas não é só isso. É preciso odiar Paulo Freire porque ele é um dos brasileiros mais amorosos e generosos que viveu nesse país.
Freire afirmava que só existe diálogo onde existe amor, já que o pressuposto para o diálogo é o respeito pelo outro, não o sentido de posse, ou tutela sobre a consciência do outro.
Acreditava que o conhecimento não é propriedade intelectual de ninguém, e não havia “saber mais ou saber menos: há saberes diferentes”. Assim como “palavra não é privilégio de algumas pessoas, mas o direito de todos”.
Só consegue vincular Paulo Freire a qualquer prática autoritária que nunca teve contato com suas ideias, suas obras. É importante frisar que o mérito pelo qual seu reconhecimento é mundial é exatamente por ter pensado uma pedagogia libertária. Se era essencial após o nazismo e a guerra fria, que dirá agora, quando parcela da humanidade flerta e graceja com o totalitarismo.
Dizia que “ninguém é sujeito da autonomia de ninguém”, mas que a “liberdade é adquirida pela conquista, não pelo presente. Deve ser perseguida constante e responsavelmente”.
Da mesma forma afirmava que “glorificar a democracia e silenciar o povo é uma farsa; discursar sobre humanismo e negar as pessoas é uma mentira.” E que “um verdadeiro humanista pode ser identificado mais por sua confiança no povo, que o envolve em sua luta, do que por mil ações a seu favor sem essa confiança”, porque “líderes que não agem através do diálogo, mas insistem em impor suas decisões, não organizam as pessoas - elas as manipulam. Eles não liberam, nem são liberados: eles oprimem”.
Para Paulo Freire “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”, na medida em que “ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre.”
Uma de suas reflexões mais conhecidas é “Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo.”
Dependendo de quem menciona o fato, Paulo Freire já foi traduzido em 18, 20, ou 40 idiomas. A versão mais citada de Pedagogia do Oprimido é a traduzida para o espanhol. Na sinopse para uma das edições comemorativas da Bloomsbury, uma das editoras que publica Freire fora do Brasil, consta que “a metodologia do falecido Paulo Freire ajudou a capacitar incontáveis pessoas pobres e analfabetas em todo o mundo. O trabalho de Freire assumiu especial urgência nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, onde a criação de uma subclasse permanente entre os menos favorecidos e as minorias nas cidades e nos centros urbanos é cada vez mais aceita como norma . . . Pedagogia do Oprimido inspirará uma nova geração de educadores, estudantes e leitores em geral nos próximos anos. ”
Existem centros de estudos sobre a obra de Paulo Freire na África do Sul, Áustria, Alemanha, Canadá, Coreia do Sul, Espanha, Estados Unidos, Finlandia, Holanda, Inglaterra, Portugal. Recebeu homenagens em pelo menos 35 universidades, entre brasileiras e estrangeiras, como a Universidade de Genebra, a Universidade de Bolonha, a Universidade de Estocolmo, a Universidade de Massachusetts, a Universidade de Illinois e a Universidade de Lisboa. 
Existem crítico de Freire entre os especialistas, é claro. Por exemplo, até mesmo para os Democratas nos Estados Unidos, a proposta de Paulo Freire é perigosamente democrática. Ainda assim, Pedagogia do Oprimido e o Manifesto Comunista de Marx estão entre as obras mais exigidas. Essa visão tacanha de que o que eu não gosto eu não leio não é apropriação dos EUA, é copyright brasileiro mesmo.
Em Pedagogia do oprimido a educação formal é considerada de “concepção ‘bancária’ da educação”. “O educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é "encher” os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante. Dai que seja mais som que significação e, assim, melhor seria não dizê-la.
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A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão.
Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante.
Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los.
Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também. Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro.
O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento como processos de busca.”
Eu teria mais a dizer sobre Paulo Freire, vai ficar pra outra oportunidade. Nessa citação descobri notei novos elementos que merecem reflexão. 
O que deve ficar evidente por essa citação é que o Brasil de maneira geral nunca se pautou pela fórmula sugerida por Paulo Freire, O que prevalece ainda é o método bancário de ensino, algumas escolas e professores se esforçam. Se tivéssemos seguido seríamos uma Finlândia tropical.
Ainda assim, que bom que era Pernambucano. Se fosse estadunidense aqueles brasileiros despossuídos de si iriam deglutir bovinamente, sem qualquer revisão crítica. E Paulo Freire ficaria entristecido.
Vai ser bom assim lá em Pernambuco, Brasil!